O Sindicato dos Jornalistas (SJ) escreveu hoje aos deputados dando-lhes conta das suas observações às três propostas de Lei do Governo para o sector audiovisual, agendadas para apreciação amanhã, 25 de Junho, na Assembleia da República. O SJ lembra que o Governo não o consultou, ao arrepio da Constituição.
Lembra ainda o SJ que também a Alta Autoridade para a Comunicação Social não foi consultada pelo Governo, como é da Lei, sobre as propostas n.º 66/IX (Nova Lei da Televisão), n.º 67/IX (Reestruturação do sector empresarial do Estado na área do audiovisual) e n.º 68/IX (Modelo de financiamento do serviço público de radiodifusão e de televisão).
É o seguinte o texto integral da carta dirigida pelo Sindicato dos Jornalistas aos deputados da Assembleia da República
Senhores Deputados
Eleitos pelo Povo para soberanamente decidirem sobre o quadro legal do nosso país, os senhores Deputados vão discutir amanhã três propostas de Lei fundamentais para o sector da Comunicação Social. Trata-se das propostas relativas a actividade de televisão, à reestruturação do sector empresarial do Estado na área do audiovisual e ao modelo de financiamento do serviço público de televisão e de radiodifusão.
Representando a maioria dos profissionais de informação, depositário de um vasto e responsável património de análise e de intervenção e gozando da plenitude de direitos constitucionalmente protegidos, entre eles direito de participação na elaboração de legislação respeitante ao sector em que se insere, o Sindicato dos Jornalistas considera oportuno e necessário:
a) trazer ao conhecimento dos senhores Deputados, para os devidos efeitos, que o Governo, autor das referidas propostas, não consultou o Sindicato dos Jornalistas nem sobre as matérias a legislar nem sobre os termos em que se propõe fazê-lo;
b) sublinhar que sempre manifestou a sua disponibilidade para cooperar com todos os governos na elaboração de legislação do sector;
c) evidenciar o seu legítimo receio de que as organizações representativas dos restantes trabalhadores da comunicação social tenham sido igualmente ignoradas:
d) chamar a atenção para o facto de tão-pouco a Alta Autoridade para a Comunicação Social ter sido solicitada, nos termos da Lei, a pronunciar-se sobre tais iniciativas;
e) denunciar a postura autista do Governo, ignorando a disponibilidade, a capacidade e as prerrogativas das organizações representativas dos trabalhadores do sector da comunicação social, bem como as competências do órgão independente com competências nas matérias versadas nas propostas agora apresentadas.
Não obstante, o SJ não se demite da sua responsabilidade de contribuir a todo o tempo para o melhor resultado das iniciativa, pelo que vem trazer ao conhecimento de V. Exas. algumas notas sobre as preocupações essenciais que as referidas propostas suscitam a este Sindicato.
Assim:
1. Sobre a Proposta de Lei N.º 66/IX (Aprova a nova lei da televisão)
1.1. Definições (Art.º 2.º)
O conceito “serviço de programas televisivo” é manifestamente equívoco. Se é o equivalente à expressão vulgar de “canal”, como parece decorrer dos artigos 48.º e seguintes, significa, por exemplo, que cada “serviço de programas”, ou cada “canal” deve ter um director responsável pelas emissões e um responsável pela informação. Em tese, pode discutir-se, não se rejeitando à partida, mas há que ter em conta as consequências da sua aplicação compaginada com os artigos 31.º e 34.º.
O termo “entidade reguladora” suscita dúvidas sobre a real dimensão da sua independência. Como se sabe, uma entidade administrativa não é verdadeiramente independente. A distinção entre órgão independente (a Alta Autoridade para a Comunicação Social) e uma entidade administrativa (o Instituto da Comunicação Social, a Anacom… ou nova entidade como parece decorrer do Art.º 89.º) não é meramente semântica, pois a Constituição da República Portuguesa impõe a existência de um órgão que, pelas suas atribuições (assegurar a liberdade de imprensa, independência e pluralismo, etc. – Cfr. Art.º 39.º da CRP), não pode deixar de ser realmente independente da Administração, do Governo.
A lei deve definir claramente que o serviço público de televisão é assegurado por dois canais de âmbito nacional.
1.2. Concorrência e concentração (Art.º 4.º)
Para efeito da avaliação da concentração, devem ser consideradas todas as empresas e/ou órgãos de comunicação social e não apenas as que operam no sector de televisão.
1.3. Transparência da propriedade (Art.º 5.º)
Idem
1.4. Registo dos operadores (Art.º 12.º), requisitos dos operadores (Art.º 13.º), atribuição de licenças e autorizações (Art.º 18.º) e observância do projecto aprovado (Art.º 19.º)
A presente proposta mantém a omissão dos diplomas vigente e anteriores relativamente a uma garantia essencial: a de apresentação, manutenção e fiscalização de um “caderno de encargos”, através do qual o candidato a operador se proponha fixar um conjunto de obrigações que derivam da circunstância de beneficiar da concessão de um bem público escasso e em virtude da qual adquire deveres para com a comunidade. Assim, tal caderno deveria precisar e quantificar, por exemplo, a oferta dos operadores quanto aos requisitos previstos no artigo 10.º e explicitar como se propõem desenvolver práticas de auto-regulação, as quais constituem uma das obrigações gerais (Cfr. Art.º 30.º, n.º 1)
1.5. Restrições (Art.º 14.º)
Compreendendo-se os objectivos e o alcance da redacção deste artigo, que aliás mantém a do diploma em vigor, mas parece não se adequar à concessão especial de um serviço de programas à chamada sociedade civil prevista no artigo 51.º.
1.6. Licenciamento (Art.º 16.º)
A Proposta omite qualquer intervenção da Alta Autoridade para a Comunicação Social no licenciamento e autorização para o exercício da actividade de televisão, contrariando o disposto no nº 4 do Art.º 39.º da Constituição que impõe a intervenção daquela entidade nos processos de licenciamento de estações emissoras de rádio e televisão.
1.7. Observância do projecto aprovado (Art.º 19.º)
Além das observações acima, em articulação com a análise de outros artigos, cumpre-nos chamar a atenção para os riscos da aprovação tácita de modificações: a não ser que a entidade reguladora possua meios e condições realmente proporcionais às atribuições e competências que lhe serão adstritas, é elevada a probabilidade de tal prazo ser esgotado antes que possa avaliar devidamente as modificações.
1.8. Director (Art. 31.º)
A lei deve assegurar, por todos os meios, a independência dos serviços informativos face à restante programação, de forma a não os fazer depender de meros critérios de oportunidade comercial ou de audiência. Assim, o SJ entende que deve ser criado obrigatoriamente o cargo de director de informação, independente do director de programação, superiormente responsável pelos programas de informação e a quem caberá elaborar o estatuto editorial, com intervenção do conselho de redacção.
1.9. Conselho de redacção e direito de participação dos jornalistas (Art.º 34.º)
A fim de evitar a ocorrência de novos incidentes acerca do problema de se saber se na RTP há apenas lugar a um Conselho de Redacção ou se é razoável a eleição de conselho nos vários centros de produção e mesmo em cada canal, é de toda a conveniência adoptar uma redacção menos equívoca para a definição de “serviço de programas televisivos” (ver notas ao artigo 2.º).
1.10. Concessão geral de serviço público de televisão (Art.º 48.º)
A divulgação do acervo documental proveniente dos arquivos da Radiotelevisão Portuguesa merece todas as cautelas, designadamente no que se refere à protecção dos direitos de autor das obras a divulgar, bem como ao risco de uso descontextualizado de materiais em arquivo, pelo que a lei deve prever expressamente a ulterior regulamentação legal desse serviço.
A lei deve garantir ainda que a propriedade dos arquivos da RTP não pode ser alienada para o sector privado, devendo manter-se como um bem do domínio público.
1.11. Serviços de programas regionais (Art.º 50.º)
O Sindicato dos Jornalistas discorda da fragmentação da RTP em estruturas ou empresas regionais de duvidosa rentabilidade, em virtude da reduzida escala do seu mercado, e com efeitos negativos na coesão nacional e na justa repartição dos recursos públicos. Com efeito, não estão reunidas as condições para assegurar o financiamento regional equilibrado, assim como não estão afastados os riscos de perda de independência dos programas regionais de televisão face aos poderes instituídos nas regiões.
1.12. Concessão especial de serviço público (Art.º 51.º)
É perigosamente vaga a previsão de que a concessão autónoma seja transmitida para uma entidade “cuja organização reflicta a diversidade da sociedade civil”, embora a redacção presente remeta os seus termos para futura lei e para o contrato de concessão (Cfr. n.º 2). A admitir-se esta possibilidade, a presente proposta deveria fixar as balizas essenciais de tal organização e os critérios e regras para a candidatura de entidades, associações e outras pessoas colectivas à mesma concessão, sob pena de abrir caminho ao arbítrio, ao compadrio e ao aventureirismo de consequências imprevisíveis.
1.13. Exercício dos direitos de resposta e de rectificação (Art.º 61.º)
A dimensão da resposta ou rectificação deve obedecer ao princípio da proporcionalidade. No entanto, para responder a curtas referências ofensivas ou inverídicas, a lei deve assegurar para a resposta um mínimo de 300 palavras.
1.14. Decisão sobre a transmissão da resposta ou rectificação (Art.º 62.º)
Tal como nas publicações periódicas, tal competência deve ser exclusiva do director, ouvido o conselho de redacção quando se suscitem dúvidas, designadamente em virtude de a resposta conter matéria susceptível de responsabilização penal.
1.15. Crimes cometidos por meio de televisão (Art.º 65.º)
O Sindicato dos Jornalistas sempre defendeu que os jornalistas não estão acima das leis em matéria de responsabilidade penal pelos seus actos profissionais. Embora possa discutir-se noutro contexto a proporção em causa, o Sindicato está de acordo com o princípio de cominação agravada de crimes cometidos através da televisão, tal como sucede na imprensa (Cfr. Art.º 30.º, Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro).
2. Sobre a Proposta de Lei N.º 67/IX (Aprova a reestruturação do sector empresarial do Estado na área do audiovisual)
2.1. Concentração da RTP e da RDP numa sociedade gestora de participações sociais (Art.º 3.º)
Sem embargo de reconhecer-se a vantagem na obtenção de economias de escala através da concentração de espaços e equipamentos que possam beneficiar de uma utilização comum, a fusão, consubstanciada nesta disposição, infunde preocupações relevantes quanto à utilização multiplicada de trabalho de jornalistas.
2.2. Conselho de Opinião (Art.º 6.º do diploma e artigos 21.º e 22.º dos Estatutos da RTP)
Concretiza-se a fusão dos conselhos de opinião da RTP e da RDP, criando-se um único para a sociedade anónima gestora de participações sociais Rádio e Televisão de Portugal, mas altera-se a sua composição.
Dos seus 27 membros, doze são representantes do poder político e accionista, dez representam associações de naturezas e extracções diversas, cinco são cooptados e apenas dois são designados pelos trabalhadores – sendo um representante dos trabalhadores da RDP e outro dos da RTP – , extinguindo-se a garantia de que metade sejam jornalistas. Extingue-se igualmente a garantia de representação das organizações patronais e sindicais.
No domínio das competências, a proposta confirma a opção marcadamente ideológica do Governo de não reconhecer ao Conselho de Opinião nem a qualquer instância de regulação independente a faculdade de intervir na designação das administrações da RTP e da RDP.
2.3. Direitos dos trabalhadores (Art.º 10.º)
Este dispositivo levanta as mais sérias preocupações quanto ao futuro profissional dos trabalhadores. A circunstância de carecer de aprovação dos dois conselhos de administração (RTP SGPS e RTP – Serviço Público de Televisão SA) a lista nominativa dos trabalhadores a transferir para a nova entidade de serviço público abre caminho a uma selecção discricionária dos trabalhadores a transferir a abre a porta ao despedimento colectivo dos que eventualmente não sejam “escolhidos”. O Sindicato entende que a posição contratual deve transmitir-se automaticamente e sem perda de direitos para a nova entidade.
Não pode merecer acolhimento, pelos riscos de imposição e de abuso de poder que encerra, o dispositivo que prevê a eventual caducidade do instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, o qual deve manter-se em vigor até ser substituído por outro negociado com os sindicatos representativos.
3. Sobre a Proposta de Lei N.º 68/IX (Aprova o modelo de financiamento do serviço público de radiodifusão e de televisão)
3.1. Sobre o princípio da responsabilização da colectividade
Como se sabe, o Sindicato dos Jornalistas tomou a iniciativa, em Outubro de 2001, de propor à reflexão, nomeadamente pelo Parlamento, uma nova filosofia para o financiamento do serviço público de televisão (SPT), a qual assentava:
a) na assumpção do financiamento do SPT pelo Estado, isto é, pelos cidadãos contribuintes;
b) na renúncia, pelo menos progressiva, do SPT à publicidade, aceitando-se a manutenção e criação de algumas formas de financiamento que não comprometessem a liberdade editorial e a dignidade do serviço público, designadamente através do patrocínio de alguns programas;
c) na concomitante compensação ao esforço adicional do Estado no financiamento do SPT, através da taxação das receitas de publicidade dos operadores comerciais de televisão.
3.2. Sobre as contribuições dos operadores comerciais
O Sindicato considera que se mantém válida a sua doutrina relativamente às formas de libertar o serviço público de rádio e televisão dos constrangimentos da publicidade e da “vocação” comercial desta actividade, pelo que renova e reformula parcialmente a sua proposta no domínio da taxação das receitas comerciais, no pressuposto de que esta auxiliará o Estado a suportar os encargos com o referido serviço.
Nesta conformidade, uma vez que a RDP se mantém sem publicidade e a RTP reduzirá as suas quotas, o Estado deverá criar uma taxa sobre as receitas de publicidade dos operadores comerciais de rádio e televisão, devendo esta ser devidamente ponderada em função do contexto económico que tais empresas atravessam.
3.3. Sobre a equidade social da contribuição
A aceitar-se como mais justa e tecnicamente mais exequível a recolha da contribuição para o audiovisual através da facturação de consumo de energia eléctrica, não pode aceitar-se que tal sistema incida exclusivamente sobre os consumidores domésticos (Cfr. Art.º 3.º, n.º 2). Com efeito, é sabido que boa parte dos “consumos” dos “produtos” do audiovisual ocorre em ambientes não domésticos, seja em espaços de comércio, escritórios e serviços e mesmo estabelecimentos industrias, seja em estabelecimentos de hotelaria, restauração, cafetaria e diversão.
Assim, a aceitar-se, a referida contribuição deveria incidir sobre todos os consumos de energia eléctrica, com as excepções previstas na proposta de lei (Cfr. Art.º 4.º, n.º 1) e outras de expressão social, como instituições de solidariedade social, etc.
Senhores Deputados, este é, por agora, o modesto contributo que podemos dar. O Sindicato dos Jornalistas mantém, no entanto, a sua total e permanente disponibilidade para contribuir, com a sua experiência, conhecimentos e reflexões, na análise das propostas.
Na certeza da maior atenção, apresentamos os melhores cumprimentos e os votos de que os Senhores Deputados decidam pelo que melhor proteja a liberdade e a qualidade da informação.
Este texto tem ficheiro(s) anexo(s). Como estão em formato pdf, poderá visualizá-los carregando nos links respectivos, desde que tenha o Acrobat Reader instalado. Caso não tenha este software no seu computador, poderá efectuar o download em www.adobe.com.