Conselho Deontológico
Queixa nº 11/Q/2023
Assunto
Queixa de Tiago Almeida contra três notícias publicadas em meios de comunicação social de Tomar, relativas ao suicídio de um agente da PSP
Queixa
- O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (adiante CD) recebeu, a 15 /02/2023 uma queixa assinada por Tiago Almeida, “sobre a violação dos deveres do jornalista, mais concretamente sobre a notícia do suicídio de um agente da PSP em Tomar em plena esquadra. No meu entendimento, as publicações em causa violam o dever de “preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva da intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas”.
- O queixoso anexou as ligações eletrónicas das notícias em causa:
JORNAL ON-LINE “TOMAR NA REDE”
Polícia suicida-se na esquadra de Tomar
Tomar em choque com morte de polícia
“Este jornal online faz inclusivamente a identificação do agente, com fotografia, link para perfil do Facebook, descrição do agregado familiar, entre outros”, diz o queixoso, referindo-se à última notícia.
JORNAL CIDADE DE TOMAR
Agente da PSP coloca termo à vida na Esquadra de Tomar
RADIO HERTZ:
Tragédia na Divisão da PSP. Agente suicidou-se em plena esquadra
- Tiago Almeida termina com a seguinte observação: “De notar igualmente que nenhuma das peças jornalísticas está assinada”.
Procedimentos
- Lidas as notícias em causa, foram enviados aos respetivos responsáveis editorais as seguintes questões:
- a) como justificam (editorialmente) a notícia?
- b) se têm algum tipo de ‘cuidado’ com as notícias de suicídios (e se esta foi uma exceção)?
- c) se refletiram previa e internamente sobre a publicação da notícia?
- d) Se a pressão para publicar primeiro, online, influenciou a vossa opção?
Relativamente à segunda notícia do Tomar na Rede, foi acrescentada a seguinte questão:
- e) a vossa segunda notícia, também do dia 13/2, inclui pormenores que se podem considerar da esfera privada (foto, nome, família, morada, etc.). Porquê?
- O diretor da Rádio Hertz, João Franco, foi o primeiro a responder. Relativamente à primeira questão, informou que “A notícia sobre a morte (suicídio) de um agente da PSP na Divisão Policial de Tomar é justificada pelo interesse público, numa tendência que a Rádio Hertz reforçou nos dois dias seguintes, não só com a publicação de um comunicado que nos foi remetido pela Associação Sindical dos Profissionais da Polícia – que não se inibiu a dar conta de que esteve em causa um suicídio – como também numa entrevista telefónica feita a Paulo Santos, dirigente daquela Associação, que não deixa de apelar para que «não se secundarize» a situação ou até mesmo para que «não se esconda». A Rádio Hertz quis, acima de tudo, dar voz à própria Polícia de Segurança Pública numa lógica de alertar para as situações a que os seus profissionais dizem estar expostos. Infelizmente, no caso concreto, dada a problemática, não era possível editar a notícia sem referir que esteve em causa um suicídio”; sobre a segunda questão, Franco responde que b) “A conduta da Rádio Hertz tem sido pautada pela dimensão humana. A prova disso mesmo fica patente nas publicações que fizemos sobre esta lamentável ocorrência. Ao contrário de determinadas notícias editadas por outros órgãos de comunicação social, a Hertz nunca publicou a fotografia da vítima e nem tão-pouco o seu nome, apesar de estarmos inseridos num meio relativamente pequeno, onde as informações chegam a todos através das redes sociais. Nem mesmo à realização do funeral fizemos qualquer referência, precisamente com o propósito de proteger a identidade da vítima e de salvaguardar, dentro das nossas possibilidades, a estabilidade emocional de familiares e amigos. Ainda em resposta a V. Exas, a Hertz evita fazer publicações relativamente a outras situações do género, num registo que facilmente poderá ser comprovado nas nossas diversas plataformas.” Finalmente, juntando as respostas às duas últimas questões, o diretor da Hertz diz que c) e d) “A notícia é publicada com a verdade sobre aquilo que, de facto, ocorreu, mas sempre numa lógica de proteger os mais envolvidos diretamente neste tipo de situações” e que exitiram pormenores que chegaram a conhecimento da redação e que não foram usados.
- Do Tomar na Rede recebemos respostas de José Gaio, diretor e proprietário. A publicação é justificada a) “em primeiro lugar por ter sido o primeiro caso de suicídio na esquadra da PSP de Tomar. Em segundo lugar porque o problema do suicídio nas forças policiais é um assunto na ordem do dia, é abordado por quase toda a comunicação social e não pode ser escamoteado”; relativamente ao cuidado com este tipo de notícias b), “este caso mereceu maior destaque e teve maior impacto mediático e social por se tratar de um agente da polícia e tendo em conta o local e as circunstâncias do suicídio. Normalmente, nas notícias sobre suicídio colocamos em nota de rodapé os Contactos e Serviços Disponíveis no âmbito da campanha nacional de prevenção do suicídio”. JG revela ainda que d) “o tratamento jornalístico foi idêntico a outros casos. Não concordamos que se ocultem os casos de suicídio, como acontecia antes do 25 de abril. Deve-se falar sobre o assunto, tal como defendem a maior parte dos especialistas. É uma forma de prevenção e é nessa perspetiva que tratamos o assunto.” Relativamente à segunda notícia, que inclui pormenores que se podem considerar da esfera privada, o diretor do Tomar na Rede esclarece e) “Limitamo-nos a reproduzir a nota necrológica da agência funerária partilhada no Facebook e afixada em vários locais públicos do concelho, sendo que importa ter em conta o caráter de proximidade da comunicação social local”.
- O responsável editorial do Tomar na Rede faz acompanhar a sua mensagem para o CD de sete links para outras tantas notícias, embora só três sobre o mesmo caso, de órgãos de comunicação local e nacional, questionando se “também contactaram os outros órgãos de comunicação que noticiaram o caso?”. O CD respondeu de imediato que, agradecendo e tendo lido o material enviado, se circunscreve, como sempre faz, às notícias que são citadas na queixa.
- O diretor do Cidade de Tomar, António Madureira, fez chegar ao CD as seguintes respostas a) “A notícia é justificada pelo facto de ter chocado a comunidade tomarense, pelo que temos de informar os nossos leitores.”b) “Naturalmente, dar à estampa notícias como aquele a que se refere este email merecem-nos um cuidado tratamento. Veja-se que o termo ‘suicídio’ nunca é utilizado, nem é paradigma do jornal Cidade de Tomar. Ou seja, a morte merece do Cidade de Tomar especial cuidado. No presente caso a própria PSP de Tomar confirmou a notícia.” Acrescenta ainda que “ao invés de outros órgãos de comunicação local, nunca referimos ter o malogrado guarda da PSP cometido suicídio, bem como que sofria de doença de foro depressivo”, anexando links para outras publicações onde se noticia o sucedido. c) Efectivamente, fizemos reflexão sobre o sucedido. E, face ao modo como aconteceu o falecimento, ponderámos nada escrever. Todavia, como órgão de comunicação local e tendo presente o dever de informar, demos a notícia, com extremo cuidado para com a família do falecido guarda da PSP. No entanto, considerámos que os nossos leitores também têm o direito de estar informados e nós o dever de informar. d) Finalmente, permita que vos transmita que estranho o referido neste vosso ponto d). Cidade de Tomar, ao longo da sua história de 87 anos, a entrar no 88.º ano de edição semanal é, totalmente, alheio a qualquer pressão. Mesmo, em várias vezes, com prejuízo próprio. O nosso sentido e postura de informar não se compadece com qualquer, dito, amiguismo.”[Esclarecimento: parece ter havido alguma confusão na interpretação desta questão, que dizia respeito à pressão das audiências, para publicar em primeiro lugar, e não a qualquer outro tipo de pressão, como se deduz da resposta do diretor do Cidade de Tomar].
Análise
- O Código Deontológico é omisso relativamente a este tema. É certo que o ponto 10) refere que “O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público”, mas a associação é remota. Da mesma forma, o Estatuto do Jornalista (artigo 14º) fala em “Preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva da intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas,” citação que o queixoso usou para fundamentar a sua participação.
- [curiosamente, num Projecto de Código de Deontologia Profissional do Jornalista, de 1972, pode ler-se que “O jornalista deve evitar a descrição pormenorizada de actos violentos, sobretudo quando considerar que ela pode contribuir para estimular a prática de crimes e suicídios”].
- O tratamento dos casos de suicídio pelo jornalismo é um dos temas mais incómodos na profissão. A afirmação é sustentada pelo facto de ser raro encontrar a notícia de um suicídio tratado individualmente e como tal identificado. As exceções acontecem quando se trata de figuras públicas ou, mais recentemente, quando determinada organização decide, ela própria, dar essa notícia, situação muito premente com o aparecimento da Internet e das redes sociais, em concreto (é o que tem acontecido com algumas organizações sócio-profissionais ligadas às forças de segurança, que têm trazido o tema da saúde mental entre os seus associados, e do número de suicídios em concreto, para a atualidade informativa).
- Em 2020 a Direção Geral de Saúde divulgou um manual para jornalistas sobre prevenção do suicídio em que se refere que “em 1974, David Phillips descreveu cientificamente o aumento das mortes por suicídio após a vasta divulgação de caso nos meios de comunicação social, devido ao efeito da sugestão do ato. O sociólogo norte-americano deu a este fenómeno o nome de Efeito Werther”.
- Nesse manual também se refere que “A Organização Mundial da Saúde criou um manual de apoio com orientações para a elaboração de notícias sobre suicídio. Este documento assenta no princípio de que a disseminação correta de informação e a consciencialização (awareness) para o problema a partir de uma fonte fidedigna é essencial para a eficaz passagem de informação sobre suicídio.”
- “Atualmente, o Efeito Werther é consensual na comunidade científica. O fenómeno de aumento da mortalidade por suicídio deve-se, por um lado à mimetização das circunstâncias de um suicídio descritas pelos meios de comunicação social por parte de quem acede à notícia e, por outro, à noção de suicídio por contágio (processo pelo qual um comportamento suicidário numa determinada região geográfica ou comunidade aumenta a probabilidade que ocorram outros suicídios ou tentativas de suicídio)”, lê-se ainda no manual.
- Há, contudo, quem entenda que existe um “efeito protetor das notícias nos comportamentos suicidários pela apresentação de estratégias alternativas para lidar com as adversidades e com o stress”, designando-se por Efeito Papageno (de acordo com o mesmo documento).
- O manual inclui indicações sobre ‘Como reportar um suicídio’ e ‘Como não reportar um suicídio’ (evitando destacar, divulgar pormenores sobre o método usado ou o local, por exemplo).
- A análise dos casos suscitados na queixa permite perceber que há duas situações diferentes: de um lado estão a notícia do Cidade de Tomar, a primeira do Tomar na Rede e a da Rádio Hertz, que são basicamente iguais, com poucos pormenores e linguagem neutra (sobretudo a do Cidade de Tomar). Mesmo assim, a Hertz começa com ‘Tragédia na Divisão da PSP’ e a primeira do Tomar na Rede tem como título “Polícia suicida-se na esquadra de Tomar”. Do outro lado está a segunda notícia do Tomar na Rede que é caracterizada por pormenores, que, basicamente, não têm qualquer relevância para o sucedido (o nome do agente, o local de residência, a família, etc.).
Deliberação
- O CD, reconhecendo que o assunto é delicado, assume como princípio que casos individuais de suicídio não devem ser noticiados. E não é, por exemplo, o facto da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia emitir um comunicado sobre o assunto, menos de 24 horas depois do sucedido, que obriga os jornalistas a mudar de perspetiva.
- Mesmo que, no limite, a opção seja a de noticiar, há dois considerandos importantes do ponto de vista do CD: a necessidade de contextualizar sempre as situações, diminuindo o impacto dos casos isoladamente (mesmo que isso signifique atrasar a publicação), e, noticiando-os, fazê-lo de uma forma o mais neutra possível.
- Neste contexto, compreendendo o interesse dos meios de comunicação de Tomar em noticiar um caso que rapidamente se terá tornado do conhecimento da população local, a notícia do Cidade de Tomar é a que mais se aproxima dessas preocupações, acrescida eventualmente de mais contexto e, se possível, menos focada no caso em concreto.
- Seria importante, como surge na primeira notícia do Tomar na Rede (ainda que de forma incompleta), incluir referências à Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio.
- Já a segunda notícia do Tomar na Rede é, no entender do CD, um exemplo do que não deve ser feito, não havendo qualquer justificação para a sua publicação. Muito menos será aceitável o argumento da reprodução da nota necrológica da agência funerária.
- Sendo, precisamente, um dos links enviados ao CD pelo diretor do Tomar na Rede, o CD aproveita para elogiar a forma como o Expresso noticiou o problema dos suicídios entre os elementos das forças de segurança.
- Relativamente à observação, feita pelo queixoso, de que nenhuma notícia é assinada, isso revela-se irrelevante para a essência do caso.
Lisboa, 02 de março de 2023
O Conselho Deontológico