Pedido de revisão da queixa nº 24, feito pelo jornalista Micael Pereira, do Expresso, e a posição do Conselho Deontológico

Pedido de revisão da queixa nº 24, feito pelo jornalista Micael Pereira, do Expresso, e a posição do Conselho Deontológico

 

  1. Enquadramento

O jornalista Micael Pereira enviou ao Conselho Deontológico (CD), a 1 de abril de 2024, um pedido de revisão da deliberação sobre a queixa relativa ao artigo “O caso de Nilson Arias e de como Portugal lhe escancarou as portas”, publicado a 14 de julho de 2023 no site do Expresso e a 15 de julho no jornal em papel.

Reproduzimos na íntegra a fundamentação do pedido, seguido dos comentários deste Conselho Deontológico:

  1. «Antes de proferida a decisão da presente queixa, esse Conselho Deontológico deveria ter dado a oportunidade ao EXPRESSO de se pronunciar sobre os últimos esclarecimentos prestados nos autos pelos advogados de Nilsen Arias.
  2. Não o tendo feito, preteriu esse Conselho o princípio geral da audiência dos interessados, o que se deixa aqui invocado, para os devidos efeitos.
  3. Em todo o caso, como se dizia, nos últimos esclarecimentos que prestaram a esse Conselho, a 26 de fevereiro de 2024, os advogados de Nilsen Arias afirmam que o seu cliente efetuou um acordo de cooperação com as autoridades americanas, mas que “este acordo não significa que Nilsen Arias assuma ter praticado qualquer ato ilícito típico e que será condenado”.
  1. No entanto, face ao teor de tal resposta, verifica-se que aqueles advogados omitiram que, além de ter estabelecido um acordo de cooperação com as autoridades norte-americanas, Nilsen Arias assinou uma declaração de culpa (“plea guilty”) num processo em que o Departamento de Justiça o acusa de ter recebido 17,7 milhões de dólares em subornos.                                                                                                 
  2. Escrevem ainda os referidos advogados naquele esclarecimento, que “em Portugal vigora o Princípio da Presunção da Inocência, consequentemente nunca os jornalistas poderiam afirmar publicamente, sem uma sentença transitada em julgado, que o cidadão Nilsen Arias é corrupto e que o dinheiro investido em Portugal resulta de atos de corrupção – o que, diga-se desde já, é falso.”
  1. Acontece que, os advogados de Nilsen Arias esquecem-se que, embora em Portugal vigore o princípio da presunção da inocência, isso é válido apenas para o processo penal e de um ponto vista jurídico.
  1. Nem o EXPRESSO, nem o El Universo escreveram que Nilsen Arias foi condenado em tribunal.
  1. Mas, os factos que estão em causa existem fora do julgamento e do processo penal e podem ser recolhidos elementos sobre esses factos pelos jornalistas — que, aliás, têm o direito de os analisar e interpretar, dentro de princípios de rigor e honestidade, e de reportar sobre eles.
  1. Existe corrupção, enquanto prática social e económica, fora do processo penal e do processo do código penal.
  1. Onde está escrito que os termos “corrupto” ou “dinheiro sujo” não podem ser usados fora do contexto de um julgamento ou do processo penal?
  2. Onde está escrito que os jornalistas não podem concluir, com base no seu trabalho e não em sentenças transitadas em julgado, que alguém é corrupto?
  1. Se o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas tem um entendimento diferente sobre isto, deve fundamentá-lo devidamente.
  2. Atividade que, salvo melhor opinião, não realizou.
  3. Por outro lado, a interpretação do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas de que “os negócios em causa na acusação do Ministério Público norte-americano não permitem concluir, só por si, que todos os fundos da família Arias são originários de ‘dinheiro corrupto’” parece-nos passível de ser questionada.                                                    
  4. Nenhum dos artigos publicados no EXPRESSO e no El Universo, pelo ora requerente e pelo jornalista Paul Mena, dizem que todos os fundos da família Arias são originários de dinheiro corrupto, mas focam-se no que está em causa — e que são, por um lado, 17,7 milhões de dólares de subornos recebidos por um funcionário público equatoriano (Nilsen Arias) e, por outro, um investimento de 8 milhões de euros em imóveis em Portugal que ele e a sua família fizeram, através de um esquema de transferências de dinheiro com origem em companhias offshore, e no período subsequente a ter recebido esses pagamentos corruptos.
  1. Os jornalistas autores dos artigos analisados por esse Conselho nos presentes autos, recolheram elementos de prova, assentes em documentos, sobre os pagamentos corruptos recebidos por Nilsen Arias e sobre todo o esquema de branqueamento na compra de imóveis em Portugal — tendo partilhado alguns desses elementos com esse Conselho Deontológico, já no âmbito da presente queixa.
  1. Ao contrário do que os advogados de Nilsen Arias invocam no esclarecimento prestado a esse Conselho, a sociedade de advogados Edge foi confrontada pelo EXPRESSO e pelo El Universo não por causa de uma atividade legítima de representação de um cliente, ou enquanto representantes legais desse cliente, mas pelo seu papel no esquema de branqueamento, ao atuarem como recetores de transferências bancárias de origem suspeita, e como agentes imobiliários, falhando de forma clara nos seus deveres de due diligence perante uma pessoa politicamente exposta (PEP), como era o caso de Nilsen Arias.
  2. Daí o dever de os jornalistas confrontarem os advogados envolvidos diretamente no esquema.
  3. Sendo, aliás, sintomática a circunstância de até hoje essa sociedade de advogados não ter protestado ou contestado os factos pelas quais foi denunciada nesses artigos.
  1. Acresce a isso — de forma muito irónica — que mais de um mês antes de os advogados de Nilsen Arias terem garantido a esse Conselho Deontológico que é falso que o seu cliente seja corrupto, foi tornado público pela Bloomberg (a 11 de janeiro de 2024) e outros media novas declarações de Arias num processo-crime em que este ex-quadro da PetroEquador admite ter sido subornado por várias empresas de comércio de petróleo (Trafigura, Gunvor, Vitol e Sargeant Marine) – cfr., a mero título exemplificativo,

https://www.bloomberglinea.com/latinoamerica/ecuador/exejecutivo-petrolero-de-ecuador-dice-que-trafigura-le- pago-sobornos/

https://www.bloomberg.com/news/articles/2024-01-11/trafigura-paid-me-bribes-former-top-ecuador-oil-official-says

  1. Houve ainda várias notícias publicadas sobre este processo em que Arias é citado, conforme se pode constatar dos seguintes links:

www.reuters.com/legal/ex-vitol-oil-trader-heads-us-trial-ecuador-bribery- charges-2024-01-02/

https://www.ecuadortimes.net/this-is-how-the-conspiracy-of-nilsen-arias-and-his-bribes-in-petroecuador-was-born/

  1. E além de tudo isso, sabe-se hoje que o intermediário da Vitol que pagou subornos a Nilsen Arias foi condenado nesse caso agora em março:

https://www.swissinfo.ch/eng/ex-vitol-oil-trader-aguilar-found-guilty-in-us-bribery-case/72945557

  1. Estas declarações de Nilsen Arias, de janeiro deste ano, atestam bem sobre a atitude dos seus advogados na argumentação apresentada a esse Conselho.
  2. Por outro lado, o EXPRESSO e o El Universo deram 24 horas de prazo para obter respostas juntos dos visados, não por falta de seriedade ou de vontade de fazer a confrontação dos

factos, mas porque tem acontecido que figuras como Nilsen Arias, envolvidos em corrupção, com grandes meios ao seu dispor e sem quaisquer escrúpulos, tentam impedir a publicação de artigos com recurso a providências cautelares ou fazendo divulgar de forma desleal e clandestina a informação com que são confrontados noutros media menos credíveis, para fazer com que os factos apurados sejam desvalorizados.

  1. E ao contrário do que os advogados de Nilsen Arias sugerem, as perguntas que foram colocadas não eram complexas nem difíceis de responder — eram muito diretas e objetivas, e possíveis de responder em 24 horas.                                                                                   
  2. Reproduz-se aqui tais perguntas:
    Porque é que Nilsen Arias e a sua mulher se candidataram a um programa de vistos dourados em Portugal?
  3. Quando é que esperam tornar-se cidadãos portugueses?
  4. Que justificação deu Nilsen Arias aos seus advogados em Portugal para os milhões de euros que investiu na compra de propriedades em Lisboa e Cascais entre 2015 e 2021?
  5. As autoridades portuguesas contactaram Nilsen Arias depois de este ter sido indiciado nos Estados Unidos por alegada corrupção e branqueamento de capitais?
  6. Estão dispostas a entregar o património que acumularam em Portugal?
    6. Tencionam estabelecer-se em Portugal?
  7. Porque é que empresas ligadas a si receberam pagamentos da Heico Investments LLC, da C K Global Sourcing Co Ltd, de Jorge Luis Zapater Tapia e do cidadão chinês Kwok Yan?
  8. Por que razão efectuou pagamentos a Boris Ortega Toledo, Romala Corp, Paracamiones Cia. Ltda. e Alkimiaconst S.A.?
  1. Ainda, as questões de confrontação foram enviadas para os emails nilsen.arias@gmail.com, nilsenarias@yahoo.es e nilsenarias@yahoo.es, porque esses emails de Nilsen Arias e do seu irmão Cristian já tinham sido usados antes em correspondência anterior do jornalista Paul Mena trocada com esses indivíduos, em que respondeu por eles uma sua advogada no Equador.
  1. Além disso, esses emails de Nilsen Arias de Cristian Arias foram usados por eles em queixas que apresentaram contra instituições públicas no Equador, de que o requerente tem cópia.
  1. Por último, esclarece o ora requerente que não foram remetidas questões para Patrícia Romero e para os seus dois filhos, porque os jornalistas não conseguiram, infelizmente, obter os seus contactos, apesar de todos os esforços nesse sentido.»

 

  1. Análise

O CD decidiu aceitar o pedido de revisão e analisa em seguida os principais argumentos apresentados pelo jornalista Micael Pereira.

  1. De facto, as últimas respostas da empresa de advogados Dower não foram enviadas ao Expresso, para que as pudesse comentar. O CD não considerou necessário esse procedimento para poder prosseguir com a análise da queixa. É inegável que há sempre esclarecimentos adicionais ou argumentos que as partes podem prestar quando confrontadas com a resposta do oponente, mas cabe ao CD avaliar se essas diligências são determinantes para uma análise equilibrada das matérias que estão no cerne da questão, sob pena de estes processos se tornarem infindáveis.
  2. Neste caso, o CD considera que teria sido relevante sublinhar que foi assinada também uma declaração de culpa — e não apenas de cooperação — por parte de Nilsen Arias, no processo que o envolve nos Estados Unidos — e admite que essa possibilidade de esclarecimento extra do Expresso teria tornado a análise mais rigorosa.

Contudo, o espírito do que é dito na análise do CD não se altera com esta nova informação: «Entende o CD que, independentemente das diferenças que possam existir entre a lei penal dos dois países, se alguém se declara culpado e efetua um acordo de cooperação para salvaguardar a “eventualidade de existir qualquer prova contra si”, é válida a leitura feita pelos jornalistas e o enquadramento feito ao longo do artigo publicado no Expresso.»

Logo de seguida, diz-se que «uma coisa é o enquadramento da informação, que investiga legitimamente investimentos que podem ter origem duvidosa, outra, bem diferente, é afirmar taxativamente que se trata de dinheiro corrupto». Mesmo perante estes esclarecimentos adicionais vertidos no pedido de revisão, o CD mantém o fundamental: «não há suficiente fundamentação no artigo em questão para justificar» o uso das expressões «dinheiro corrupto», «dinheiro “sujo”» e «corrupto do Equador investe em Portugal». E o facto é que, no artigo em análise, não está apresentada como provada a alegada relação entre os «17,7 milhões de dólares de subornos recebidos por um funcionário público equatoriano (Nilsen Arias)» e o «investimento de 8 milhões de euros em imóveis em Portugal que ele e a sua família fizeram».

O CD não coloca em causa que os jornalistas disponham de indícios sólidos e até de provas concretas decorrentes da sua investigação, apenas constata que elas não estão vertidas no artigo em análise — de maneira a validar o uso de expressões como “dinheiro corrupto”.

  1. Quanto à questão da presunção de inocência e ao âmbito do trabalho jornalístico, sublinha Micael Pereira que «os factos que estão em causa existem fora do julgamento e do processo penal e podem ser recolhidos elementos sobre esses factos pelos jornalistas». O CD concorda e isso mesmo é sublinhado na deliberação: «Naturalmente, a investigação jornalística não se limita ao que chega aos tribunais e não fica circunscrita à conclusão de processos judiciais. É função do jornalismo questionar de onde vêm fundos sem aparente justificação e expor matérias que aparentem carecer de transparência. Grande parte do artigo em análise levanta questões pertinentes e debruça-se sobre a exposição de uma estrutura complexa de negócios

que envolvem várias empresas para compra e venda de imóveis. Essa exposição está apresentada de forma factual, deixando ao leitor a possibilidade de tirar as suas ilações sobre a natureza mais ou menos suspeita de tais “complexidades”.»

Em seguida, afirma o CD: «contudo, o enquadramento que é feito no superlead condiciona todo o artigo, por mais rigoroso que seja o seu conteúdo subsequente. Os jornalistas não devem tecer afirmações e acusações taxativas sem provas concretas.» Porque, novamente, não está exposta no artigo em análise — e é só sobre esse que o CD se pronuncia — suficiente fundamentação para afirmar taxativamente que o dinheiro aplicado em Portugal é corrupto.                                  

  1. Quanto à justificação apresentada por Micael Pereira para dar um prazo de apenas 24 horas para obter respostas do visado e da sociedade de advogados que o representava (o receio de «recurso a providências cautelares» para impedir a publicação do artigo ou a divulgação «desleal e clandestina» da «informação com que são confrontados noutros media menos credíveis, para fazer com que os factos apurados sejam desvalorizados»), considera o CD que estes argumentos devem ser tidos em conta.

Considera também, contudo, que são debatíveis quais os prazos mínimos aceitáveis e que essas legítimas preocupações com a possibilidade de sabotagem do trabalho jornalístico não devem sobrepor-se ao respeito efetivo pelo direito ao contraditório.

 

III. Deliberação

Não obstante as novas e relevantes informações veiculadas no pedido de revisão, o CD mantém a principal conclusão da sua deliberação anterior: não há suficiente fundamentação no artigo em análise para legitimar o uso, no superlead e em chamadas para o mesmo, das expressões «dinheiro corrupto», «dinheiro “sujo”» e «corrupto do Equador investe em Portugal».

 

Lisboa, 11 de Abril de 2024

O Conselho Deontológico

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