Queixa contra artigo publicado no Expresso

Conselho Deontológico

Queixa nº 24/Q/2024

 

Queixa contra os autores do artigo “O caso de Nilson Arias e de como Portugal lhe escancarou as portas”, publicado pelo jornal Expresso

  1. Natureza da Queixa

O Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas recebeu a 5 de dezembro de 2023 uma queixa, enviada pela empresa de advogados Dower, em representação de Nilsen Giordano Arias Sandoval, Irma Patricia Romero Espinosa, Juan Diego Arias Romero, Nilsen Andres Arias Romero e Cristian Fernando Arias Sandoval, contra o jornalista Micael Pereira e a direção do jornal Expresso.

Em causa está um artigo assinado por Micael Pereira e pelo jornalista equatoriano Paul Mena, do jornal El Universo, publicado a 14 de julho de 2023 no site do Expresso e a 15 de julho no jornal em papel, intitulado “O caso de Nilson Arias e de como Portugal lhe escancarou as portas”. No superlead do mesmo lia-se: “Ex-gestor da petrolífera estatal do Equador comprou 14 casas em Lisboa e em Cascais com dinheiro corrupto.” Na versão online do jornal foram ainda utilizadas as seguintes chamadas para o artigo: “comprou 14 casas em Lisboa e Cascais com dinheiro ‘sujo’” e “Corrupto do Equador investe em Portugal”.

Os queixosos defendem que a informação veiculada no artigo do Expresso é “ofensiva do bom nome” dos participantes, “consubstanciando imputações graves que em nada beneficiam o interesse jornalístico nem o debate público”.

Os queixosos questionam o facto de o artigo afirmar “que Nilsen Andres, Juan Diego e Cristian, filhos e irmão de Nilsen Arias, respetivamente, adquiriram nacionalidade portuguesa, levantando suspeitas sobre a forma de obtenção da nacionalidade.”

Referem-se especificamente às seguintes passagens que, consideram, insinuam “que a alegada nacionalidade portuguesa dos referidos Participantes adveio de pretensos investimentos em Portugal com dinheiro obtido de forma ilícita e ilegítima”:

  1. “[…] Nilsen Arias, acusado de corrupção e branqueamento de capitais nos Estados Unidos e a ser investigado no Equador, canalizou para Portugal vários milhões de euros em compras de imóveis e obteve nacionalidade portuguesa para um dos seus filhos”.
  2. “[…] o facto de um dos filhos dele, Nilsen Andres Arias, atualmente com 21 anos, surgir numa informação de 2021 do Registo Central do Beneficiário Efetivo (RCBE) como tendo nacionalidade portuguesa é uma indicação de que o pai aderiu aos vistos gold.”
  3. “Também um irmão de Arias, Cristian, obteve nacionalidade portuguesa segundo uma informação do RCBE em que ele aparece como sócio dos sobrinhos numa empresa de comércio de produtos saudáveis em Rio de Mouro, a Kinoha.”

É considerado pelos queixosos que os jornalistas levantam “suspeitas sobre Nilsen Arias e todas entidades com quem estabeleceu relações” quando o artigo refere que “Arias tinha estatuto de Pessoa Politicamente Exposta (PEP), o que deveria obrigar a um cuidado redobrado com a origem do dinheiro por parte de banco, advogados, agências imobiliárias e autoridades, mas aparentemente ninguém lhe levantou problemas”. A este propósito, os queixosos questionam também o uso no artigo da expressão “como surfar a lei”.

Na queixa lê-se ainda que, “no que concerne aos Participantes Patrícia Romero e Juan”, mulher e filho de Nilsen, “os referidos Participados levantam suspeitas e fazem insinuações”, nomeadamente no seguinte excerto:

“Em junho de 2018, 13 meses depois de Arias sair da Petroecuador e já não ser formalmente um PEP em Portugal, a mulher dele comprou seis apartamentos […] por um milhão de euros. Essa aquisição foi feita por uma estrutura complexa montada com a ajuda dos advogados na EDGE. Os seis imóveis foram comprados pela Falcon Pyramid Investimentos Imobiliários, LDA, uma empresa com sede em Lisboa, detida por uma firma na Madeira, a Million Signs S.A., por sua vez, controlada por Patrícia Romero através de uma companhia em Singapura, a Asiapt Consultancy PTE, LTD. Em novembro de 2019, todos os apartamentos foram revendidos por 1,9 milhões de euros a outra empresa portuguesa, a Delicate Constellation, Lda., controlada pelo filho mais velho de Arias, Juan.”

Sintetizando o propósito da queixa, afirma-se na mesma que:

  1. “O Participante Nilsen Arias não foi condenado nem se declarou culpado em qualquer processo, seja por corrupção ou por branqueamento de capitais”
  2. “Patrícia Romero, Nilsen Andres, Juan e Cristian não são investigados pela prática de qualquer ilícito”
  3. “nem tampouco os Participantes Nilsen Andres, Juan e Cristian têm nacionalidade portuguesa.”

Por fim, alega-se que não foi dada aos queixosos a hipótese de exercerem o direito ao contraditório: “Os Participados não contactaram os Participantes, não os informaram que estava a levar a cabo a investigação, não lhes concederam sequer o direito ao contraditório, nem tampouco

cuidaram de ouvir a sua versão dos factos”, optando por “especular e criar teias da conspiração, por meio de imputação de factos que sabiam falsos, suspeições e insinuações falaciosas”, lê-se na queixa.

Em suma, pelo exposto, os queixosos consideram estar em causa um desrespeito pelo artigo 14 do Estatuto do Jornalista, que diz que “constitui dever fundamental dos jornalistas exercer [sic] a respectiva actividade com respeito pela ética profissional, competindo-lhes (…) informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião” e “procurar a diversificação das suas fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos de que se ocupem”; e que é dever do jornalista “abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência”.

Consideram ainda que está em causa uma violação dos seguintes pontos do Código Deontológico dos Jornalistas:

  • O ponto 1: “O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público. “
  • O ponto 2: “O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais.
  • O ponto 8, que começa por estipular que “o jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado.”
  • O ponto 10: “O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.”

 

  1. Procedimentos

A 18 de dezembro, o CD enviou três questões a Micael Pereira e à direção do Expresso. Para maior clareza, elencamos as mesmas, juntamente com as respostas, recebidas a 26 de dezembro, em nome do jornalista e da Direção do jornal:

  1. Os visados foram contactados antes da publicação da investigação, no sentido de ouvir a sua versão dos factos, sendo-lhes dada a possibilidade de exercerem o direito ao contraditório? Se sim, em que circunstâncias decorreu esse pedido de esclarecimentos?

“Nilsen Arias e o seu irmão Cristian Arias receberam uma lista de questões para esclarecimento. Essas questões foram enviadas a 11 de julho de 2023  pelo meu colega do ICIJ Paul Mena, jornalista do jornal El Universo, em nome do seu jornal e em nome do Expresso”, esclarece Micael Pereira, acrescentando que “também foram enviadas no mesmo dia questões para os advogados de Nilsen Arias em Portugal (sociedade de advogados Edge), que estiveram muito envolvidos na montagem de uma complexa operação de transmissão de propriedades.” Foram enviados ao CD ficheiros com cópias dessas comunicações, especificando os respectivos emails para onde foram remetidas.

  1. Como justificam a opção por expressões taxativas como “dinheiro corrupto”, “dinheiro ‘sujo”‘ e “corrupto do Equador investe em Portugal”, tendo em conta que processos judiciais contra Nilson Arias ainda estavam a decorrer?

Esclarece Micael Pereira que a frase “corrupto do Equador investe em Portugal” e a expressão “dinheiro sujo” não estão presentes no artigo em causa, “publicado na versão em papel e na versão digital do semanário Expresso”, referindo-se a “chamadas na versão online do Expresso, que são da responsabilidade dos editores.”

Ainda assim, considera o jornalista que “o uso desses termos e da expressão ‘dinheiro corrupto’ — que vem incluída no artigo — justificam-se”, pelos seguintes argumentos:

  1. “O artigo explica, logo no início, que Nilsen Arias foi acusado de corrupção e branqueamento de capitais nos Estados Unidos e estava a ser investigado no Equador. O artigo também explica que ‘Arias esteve preso em Nova Iorque, mas declarou-se culpado e saiu da cadeia depois de ter pago uma caução, passando a colaborar com a justiça norte-americana’.”
  2. “A informação acumulada de forma independente, enquanto jornalista de investigação no Equador e membro do ICIJ, pelo meu colega Paul Mena sobre as companhias offshore de que Nilsen Arias e a sua família foram e são beneficiários efetivos e os montantes recebidos com origem em entidades que se relacionam com negócios na Petroecuador onde Arias tinha responsabilidade e/ou influência deixam claro que este alto ex-funcionário da petrolífera estatal equatoriana recebeu pagamentos corruptos.”

Foram enviadas ao CD cópias da acusação produzida pelo Ministério Público norte-americano em janeiro de 2022, que diz respeito a “atos de corrupção e branqueamento de capitais”, e um ficheiro “com informação produzida pelo tribunal nos Estados Unidos onde o processo decorre”, onde “é possível verificar que Nilsen Arias declarou-se culpado nesse processo logo em janeiro de 2022.”

Foi ainda remetido ao CD um artigo que o jornalista Paul Mena publicou a 16 de março de 2023” (intitulado “Sobornos en Petroecuador: $ 5,7 millones ingresaron a una cuenta ‘offshore’ ligada a Nilsen Arias Sandoval”), “em que conta como uma empresa no Panamá, a Administraciones Carey del Sur S. A., passou a ser controlada em 2013 pela mulher de Nilsen Arias, Patricia Romero Espinosa, tendo essa empresa recebido numa conta do Credicorp Bank 5,7 milhões de dólares entre 2013 e 2017 com a maioria desse dinheiro a ter origem numa companhia offshore de Antonio Peré Ycaza, um indivíduo que se declarou culpado nos Estados Unidos, tendo assumido que lavou dinheiro para pagamentos corruptos a funcionários da Petroecuador.”

  1. Em que se baseiam para afirmar que Nilsen Andres Arias Romero e Cristian Fernando Arias Sandoval têm nacionalidade portuguesa?

Micael Pereira afirma que “o documento que prova que Nilsen Andres Arias Romero e Cristian Fernando Arias Sandoval têm nacionalidade portuguesa foi obtido junto do Registo Central do Beneficiário Efetivo (RCBE) em Portugal, e é relativo à empresa Kinoha – Comércio de Produtos Saudáveis, Lda”. Uma cópia do mesmo foi remetida ao CD e nela “ambos são identificados como tendo nacionalidade portuguesa”. Nesse documento, “Juan Diego Arias Romero é identificado com nacionalidade equatoriana (sendo que, ao contrário do que é dito na queixa apresentada pelos advogados de Nilsen Arias, ele não é referido no artigo como tendo nacionalidade portuguesa).”

Na sequência destas respostas, o CD procurou esclarecimentos adicionais junto da empresa de advogados Dower, responsável pela queixa. As questões, que detalhamos em seguida, foram enviadas a 9 de janeiro e as respostas chegaram a 24 de janeiro.

  1. Os jornalistas que assinam o artigo garantem que enviaram uma lista de questões a Nilsen Arias e ao seu irmão Cristian Arias, a 11 de julho de 2023 (para os emails nilsen.arias@gmail.com, nilsenarias@yahoo.es, cristian_arias@yahoo.com), bem como à sociedade de advogados Edge (para os seguintes emails: rparente@edge-il.com, rparente-2260c@adv.oa.pt, fbs@edge-il.com, fbsalgueiro-17610l@adv.oa.pt). O CD recebeu cópias destes contactos, que remetemos em anexo. Na vossa queixa alegam que nunca foi dada aos vossos clientes a hipótese de exercer o direito ao contraditório. Não tinham conhecimento do envio destes emails pelos jornalistas?

Respondeu Joana Moreira Magalhães, associada da Dower, sobre os emails “alegadamente” enviados para para os endereços referidos, que:

  1. “O email nilsen.arias@gmail.com não é utilizado por Nilsen Arias;”
  2. “O email nilsenarias@yahoo.es não existe desde 2018;”
  3. “O email cristian_arias@yahoo.com não é utilizado por Cristian Arias;”
  4. “Os emails rparente@edge-il.com, rparente-2260c@adv.oa.pt, fbs@edge-il.com e fbsalgueiro-1760l@adv.oa.pt pertencem a advogados, os quais estão obrigados, nos termos do art. 92.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, ‘a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços’, pelo que nunca poderiam responder a quaisquer questões que lhes fossem colocadas, como Micael Pereira e Paul Mena bem sabiam.”

Acrescenta a advogada que, “ainda que assim não fosse, o email, alegadamente, enviado para Nilsen e Cristian Arias foi enviado no dia 11/07/2023 às 19h15 e solicitava uma resposta até às 19h do dia 12/07/2023 e o email enviado para os advogados foi enviado no dia 11/07/2023 às 15h34 e solicitava uma resposta até às 15h30 do dia 12/07/2023, ou seja, a ter sido concedido prazo para se pronunciarem, o prazo concedido foi inferior a 24 horas. Não é, naturalmente, razoável esperar que alguém responda a um email em tão curto prazo, muito menos quando se trata de um assunto desta natureza”, considera. E acrescenta: “Claro está que a intenção nunca foi conceder qualquer efetivo direito ao contraditório, mas tão só cumprir formalismos e apenas (tentar) evitar responsabilidades futuras.”

 Joana Moreira Magalhães refere ainda que “também não foi enviada qualquer comunicação ou permitido o exercício do direito ao contraditório a Irma [Patricia Romero] Espinosa, Juan Romero e Nilsen Romero, também eles visados na Notícia.”

  1. O Registo Central do Beneficiário Efetivo (RCBE) em Portugal, relativo à empresa Kinoha – Comércio de Produtos Saudáveis, Lda, identifica Nilsen Andres Arias Romero e Cristian Fernando Arias Sandoval como tendo nacionalidade portuguesa (remetemos o mesmo em anexo). Como justificam este facto, tendo em conta que a vossa queixa alega que tal não é verdade?

Afirma a Dower na resposta que:

  1. O RCBE tem eficácia meramente declarativa, motivo pelo qual não pode servir de prova para qualquer facto.
  2. Ainda que assim não fosse, o RCBE da mencionada sociedade não foi efetuado pelos visados, foi efetuado pelos escritórios que lhe prestavam assessoria e existiu, claramente, um lapso no preenchimento do campo em crise. Os visados têm, à data de hoje, nacionalidade equatoriana.

Uma questão adicional foi enviada à Dower a 12 de fevereiro, remetendo em anexo os documentos enviados pelo Expresso referentes ao processo a decorrer nos Estados Unidos:

  1. Afirmam na queixa que nos enviaram que “o Participante Nilsen Arias NÃO foi condenado nem se declarou culpado em qualquer processo, seja por corrupção ou por branqueamento de capitais”. Os documentos em anexo referem-se a uma acusação produzida pelo Ministério Público dos Estados Unidos em janeiro de 2022, respeitante a atos de corrupção e branqueamento de capitais; na página 2 do documento “summary of actions” depreende-se que Nilsen Arias se declarou culpado nesse processo (“Plea Agreement Hearing as to Nilsen Arias Sandoval held on 1/19/2022, Plea entered by Nilsen Arias Sandoval (1) Guilty Count 1.). Agradecemos que nos ajudem a perceber este ponto, para podermos concluir a análise à vossa queixa.

Na resposta, recebida a 26 de fevereiro, a Dower sustenta que “o Processo Penal Americano é diferente do nosso” e que “interpretar os atos praticados no processo Americano à luz do processo português pode induzir – e induziu, neste caso – em erro quanto ao valor jurídico dos atos.”

Joana Moreira Magalhães, associada da Dower, afirma que Nilsen Arias “efetivamente, efetuou um acordo de cooperação com as autoridades Americanas para que, na eventualidade de existir qualquer prova contra si – que não existe –, possa beneficiar de atenuantes na aplicação de qualquer pena. Todavia, este acordo não significa que Nilsen Arias assuma ter praticado qualquer ato ilícito típico e que será condenado. Aliás, se a acusação nada provar contra o nosso Constituinte, este será absolvido.”

Acrescenta a advogada que “o referido processo não está sequer em fase de julgamento e, por conseguinte, ainda não foram analisadas as provas constantes nos autos” e que “em Portugal vigora o Princípio da Presunção da Inocência, consequentemente nunca os jornalistas poderiam afirmar publicamente, sem uma sentença transitada em julgado, que o cidadão Nilsen Arias é corrupto e que o dinheiro investido em Portugal resulta de atos de corrupção – o que, diga-se desde já, é falso.”

  1. Análise

O CD sintetiza, em seguida, as questões deontológicas que considera poderem estar em causa no artigo publicado pelo jornal Expresso, a partir da queixa enviada pela empresa de advogados Dower.

  1. O uso das expressões “dinheiro corrupto”, “dinheiro ‘sujo”‘ e “corrupto do Equador investe em Portugal”.
  1. As expressões foram usadas em títulos e chamadas para o artigo no jornal e, na visão dos queixosos, atentam contra o bom nome do principal visado, Nilsen Giordano Arias Sandoval, uma vez que, alegam os advogados da Dower, “o Participante Nilsen Arias não foi condenado nem se declarou culpado em qualquer processo, seja por corrupção ou por branqueamento de capitais”.

O artigo do Expresso afirma que “Arias esteve preso em Nova Iorque, mas declarou-se culpado e saiu da cadeia depois de ter pago uma caução, passando a colaborar com a justiça norte-americana”, num processo relacionado com “atos de corrupção e branqueamento de capitais”. Os queixosos argumentam que as diferenças entre os processos penais em Portugal e nos Estados Unidos inviabilizam que daqui se conclua que Nilsen Arias se declarou culpado. Sustentam que Arias “efetuou um acordo de cooperação com as autoridades Americanas para que, na eventualidade de existir qualquer prova contra si – que não existe –, possa beneficiar de atenuantes na aplicação de qualquer pena.”

Entende o CD que, independentemente das diferenças que possam existir entre a lei penal dos dois países, se alguém se declara culpado e efetua um acordo de cooperação para salvaguardar a “eventualidade de existir qualquer prova contra si”, é válida a leitura feita pelos jornalistas e o enquadramento feito ao longo do artigo publicado no Expresso.

Apesar do que se acabou de dizer, considera o CD que uma coisa é o enquadramento da informação, que investiga legitimamente investimentos que podem ter origem duvidosa, outra, bem diferente, é afirmar taxativamente que se trata de dinheiro corrupto. Com efeito, no que se refere ao uso de expressões taxativas como “dinheiro corrupto” e “dinheiro ‘sujo’”, presentes no superlead e em chamadas online para o artigo, recomendar-se-ia um maior cuidado. Considera o CD que não há suficiente fundamentação no artigo para justificar o seu uso.

  1. As alegadas “suspeitas e insinuações” sobre outras entidades e restantes visados no artigo.
  1. Os queixosos afirmam que os jornalistas levantam “suspeitas sobre Nilsen Arias e todas as entidades com quem estabeleceu relações”, apontando com exemplo o seguinte excerto do artigo do Expresso: “Como ex-responsável pelo comércio internacional da Petroecuador, Arias tinha estatuto de Pessoa Politicamente Exposta (PEP), o que deveria obrigar a um cuidado redobrado com a origem do dinheiro por parte de banco, advogados, agências imobiliárias e autoridades, mas aparentemente ninguém lhe levantou problemas”.

A afirmação é feita no primeiro parágrafo do artigo e é contextualizada nos seguintes. Tendo em conta, não só o estatuto de PEP, mas todos os outros dados em torno dos visados expostos pelos jornalistas, nomeadamente os processos legais em curso no Equador e nos Estados Unidos, bem como as investigações jornalísticas que apontam para indícios de uma teia mais vasta de negócios por clarificar, não deixa de nos parecer válido o enquadramento feito: explica-se o contexto e afirma-se que, aparentemente, não foram levantadas quaisquer questões pelas várias entidades envolvidas nos avultados investimentos do visado em Portugal. A afirmação é meramente factual e entende o CD que é lícita.

  1. Na queixa lê-se também que o artigo levanta “suspeitas” e faz “insinuações sobre Patrícia Romero e Juan (a mulher e o filho mais velho de Nilsen Arias), nomeadamente quando explicam como foram feitos vários negócios no ramo imobiliário, entre 2018 e 2021 — incluindo a compra de seis apartamentos por um milhão de euros, em junho de 2018, pela mulher de Nilsen Arias, Patrícia Romero, através de “uma estrutura complexa montada com a ajuda dos advogados da EDGE”, imóveis esses revendidos “em novembro de 2019” por ”1,9 milhões de euros a outra empresa portuguesa, a Delicate Constellation, Lda., controlada pelo filho mais velho de Arias, Juan.”

Afirmar que uma aquisição de património imobiliário “foi feita por uma estrutura complexa” e explicar os vários passos desse processo não é, só por si, uma acusação. O que Micael Pereira faz nessa passagem do referido artigo é explicar quem e através de que empresas comprou e vendeu o quê.

  1. A questão da forma como teria sido obtida a alegada nacionalidade portuguesa de Nilsen Andres Arias Romero e Cristian Fernando Arias Sandoval.
  1. O artigo do Expresso afirma taxativamente que Nilsen Arias “obteve a nacionalidade portuguesa para um dos seus filhos”. Mais à frente no artigo lê-se que “o facto de um dos filhos dele, Nilsen Andres Arias, atualmente com 21 anos, surgir numa informação de 2021 do Registo Central do Beneficiário Efetivo (RCBE) como tendo nacionalidade portuguesa é uma indicação de que o pai aderiu aos vistos gold.” ​​ Diz ainda o artigo que “também um irmão de Arias, Cristian, obteve nacionalidade portuguesa, segundo uma informação do RCBE em que ele aparece como sócio dos sobrinhos numa empresa de comércio de produtos saudáveis em Rio de Mouro, a Kinoha.”

No referido documento do RCBE, referente à empresa Kinoha – Comércio de Produtos Saudáveis, Lda, são efetivamente identificados Nilsen Andres Arias Romero e Cristian Fernando Arias Sandoval como tendo nacionalidade portuguesa.

Alegam os advogados da Dower que “o RCBE tem eficácia meramente declarativa, motivo pelo qual não pode servir de prova para qualquer facto”, acrescentando que a informação constante no documento estava errada: “o RCBE da mencionada sociedade não foi efetuado pelos visados, foi efetuado pelos escritórios que lhe prestavam assessoria e existiu, claramente, um lapso no preenchimento do campo em crise. Os visados têm, à data de hoje, nacionalidade equatoriana.”

A ser verdade, conclui-se que há duas afirmações contidas no artigo do Expresso que estarão incorretas: que Nilson Arias “obteve a nacionalidade portuguesa para um dos seus filhos” e que esse é um indício de que “aderiu aos vistos gold”.

Os jornalistas terão sido induzidos em erro pelo “lapso” dos “escritórios” que efetuaram o registo daquela sociedade. O RCBE é um documento oficial e, se contém informação errada, a responsabilidade não é dos jornalistas.

  1. A questão da audição dos visados, garantindo o respeito pelo direito ao contraditório.

Os autores do artigo em análise enviaram questões aos visados Nilsen Arias e ao seu irmão Cristian Arias, a 11 de julho de 2023, bem como aos advogados que os representaram nos processos em causa. Deram, em ambos os casos, um prazo de resposta de cerca de 24 horas.

  1. Alega a empresa autora da queixa que, no caso dos visados, os endereços de email para onde foram enviadas as questões já não existem ou não são utilizados pelos mesmos.

Considera o CD que os jornalistas devem sempre procurar ativamente obter uma resposta dos implicados nas suas investigações, procurando garantir que as suas questões são efetivamente recebidas. Tomando por certa a informação prestada pelos queixosos, não aparenta ter sido o caso.

  1. A Dower questiona também a duração do prazo para resposta, afirmando que “não é, naturalmente, razoável esperar que alguém responda a um email em tão curto prazo, muito menos quando se trata de um assunto desta natureza”.

Considera o CD que é comum e compreensível um jornalista pedir uma resposta aos envolvidos apenas quando a sua investigação está em fase final. Não obstante, o CD reafirma que os jornalistas devem garantir que os visados receberam efetivamente as suas questões e que tiveram efetivamente a hipótese de responder às mesmas. Para um caso desta complexidade, um prazo de 24 horas não parece razoável.

  1. No caso dos advogados da sociedade Edge, representantes de Nilsen Arias em Portugal, envolvida “na montagem de uma complexa operação de transmissão de propriedades”, defende a Dower que esses mesmos advogados “estão obrigados, nos termos do art. 92.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, ‘a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços’, pelo que nunca poderiam responder a quaisquer questões que lhes fossem colocadas”.

Neste caso, considera o CD que, mesmo que entendam que todas as informações requeridas se enquadram no “segredo profissional” a que estão obrigados, era recomendável que a sociedade de advogados Edge tivesse respondido isso mesmo aos jornalistas. Ignorar a comunicação não é um indício de respeito pelo trabalho jornalístico.

  1. A Dower refere ainda que “também não foi enviada qualquer comunicação ou permitido o exercício do direito ao contraditório a Irma [Patricia Romero] Espinosa, Juan Romero e Nilsen Romero, também eles visados na Notícia.”

Olhando apenas para o que é descrito ao longo do artigo, o CD entende que a tal não estavam obrigados os jornalistas que o assinam, uma vez que não são feitas nesses parágrafos acusações diretas às três personalidades referidas pela entidade autora da queixa. Elas apenas são referidas na exposição factual sobre a “estrutura complexa” que envolveu os negócios referidos e na dedução sobre a obtenção de nacionalidade portuguesa de Nilsen Romero.

Não obstante, não podemos ignorar, mais uma vez, que o texto está enquadrado pela afirmação contida no superlead: “Ex-gestor da petrolífera estatal do Equador comprou 14 casas em Lisboa e em Cascais com dinheiro corrupto.” Este enquadramento condiciona a forma como o leitor perceciona a exposição de factos que se seguem, podendo induzir uma nuvem de desconfiança sobre todos os que são referidos no artigo, colocando-os à sombra do “dinheiro corrupto”. Tendo em conta esse enquadramento, considera o CD que poderia ter contribuído para uma maior transparência e clareza do exposto que os jornalistas procurassem também uma reação de Irma Patricia Romero Espinosa, Juan Romero e Nilsen Romero.

 

  1. Deliberação

Pelo exposto, o CD entende que o uso das expressões “dinheiro corrupto”, “dinheiro ‘sujo”‘ e “corrupto do Equador investe em Portugal” advém de um facto: a admissão de culpa do principal visado num processo envolvendo corrupção e branqueamento de capitais num tribunal dos Estados Unidos. Considera-se, contudo, que os negócios em causa na acusação do Ministério Público norte-americano não permitem concluir, só por si, que todos os fundos da família Arias são originários de “dinheiro corrupto”.

Naturalmente, a investigação jornalística não se limita ao que chega aos tribunais e não fica circunscrita à conclusão de processos judiciais. É função do jornalismo questionar de onde vêm fundos sem aparente justificação e expor matérias que aparentem carecer de transparência. Grande parte do artigo em análise levanta questões pertinentes e debruça-se sobre a exposição de uma estrutura complexa de negócios que envolvem várias empresas para compra e venda de imóveis. Essa exposição está apresentada de forma factual, deixando ao leitor a possibilidade de tirar as suas ilações sobre a natureza mais ou menos suspeita de tais “complexidades”.

Contudo, o enquadramento que é feito no superlead condiciona todo o artigo, por mais rigoroso que seja o seu conteúdo subsequente. Os jornalistas não devem tecer afirmações e acusações taxativas sem provas concretas.

Quanto ao ponto 3 da análise, considera o CD que, na alegada obtenção de nacionalidade portuguesa de dois filhos de Nilsen Arias, os jornalistas foram induzidos em erro por um lapso administrativo, pelo qual não foram responsáveis, muito embora determinasse as suas conclusões acerca da investigação realizada. Ainda assim, considera o CD que tal erro poderia ter sido esclarecido caso tivesse sido efetuada uma correta audição de todas as partes, como de seguida se refere.

Com efeito, no que diz respeito ao ponto 4 da análise, o CD entende que o direito ao contraditório não foi devidamente acautelado, por não se ter dado um tempo razoável para que os mesmos pudessem responder.

Considera ainda o CD que este fator prejudicou os esclarecimentos e possibilitou equívocos no texto, como algumas imputações nele contidas.

Pelo exposto, considera o CD que o artigo assinado por Micael Pereira não respeitou inteiramente o disposto primeiro artigo do Código Deontológico dos Jornalistas:

  • “1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso (…).”

Lisboa, 15 de março de 2024

O Conselho Deontológico

 

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