Sobre o ponto 6 do Código Deontológico

A faculdade de invocação abusiva do ponto 6 do Código Deontológico do Jornalista (relativa à eventual denúncia de fonte traiçoeira) determinou o Conselho Deontológico a analisar o problema à luz de várias situações e a ponderar a sua eliminação, a fim de evitar que a excepção possa ser invocada como regra.

1. A 4 de Maio de 1993, os jornalistas aprovaram, por escrutínio secreto com urnas nas redacções, o Código Deontológico que se encontra em vigor. Esse código visou retirar a carga ideologicamente datada do texto anterior e integrar os adquiridos da experiência de cerca de 15 anos.

2. É neste contexto que o novo código inclui um complemento à norma tradicional sobre o dever de sigilo das fontes confidenciais de informação, cuja redacção passou a ser: «6. (…) O jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes confidenciais de informação, nem desrespeitar os compromissos assumidos, excepto se o tentarem usar para veicular informações falsas.» Porque se introduziu este acrescento? Na ocasião, estava bem fresca a memória de dois casos que tiveram grande notoriedade.

3. No primeiro, um jornalista, que investigava certas decisões de um membro do Governo, recebeu informações comprometedoras da parte de um deputado do mesmo partido do governante. Fiando-se na verosimilhança das informações, o jornalista publicou-as e guardou segredo da fonte. Qual não foi o seu espanto quando o mesmo deputado subiu à tribuna para denunciar aquilo que considerou uma campanha orquestrada contra o governante! Sentindo-se vítima de uma armadilha, o jornalista interpelou de imediato o então Conselho Técnico e Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, solicitando autorização para, em defesa da sua integridade profissional e para fazer a denúncia de uma trama partidária, revelar a fonte de informação. O Conselho Técnico e Deontológico desobrigou o jornalista do sigilo da fonte, tendo em atenção o ocorrido e o propósito da revelação.

4. No segundo caso, muito idêntico ao primeiro, um agente da polícia «leu» a um jornalista as passagens de um «documento oficial» importante para uma investigação jornalística em curso. Assim que as publicou, fiado na fonte, que manteve confidencial, o jornalista verificou tratar-se de um documento apócrifo, inventado com o fim específico de o descredibilizar e sabotar a investigação jornalística. O jornalista, indignado, procedeu da mesma forma que o anterior, solicitando ao Conselho Técnico e Deontológico dispensa da obrigação de sigilo, o que lhe foi concedido.

5. Em face destes casos, entendeu o colectivo dos jornalistas que o novo código deveria conter a excepção que por duas vezes fora aberta pelo Conselho Técnico e Deontológico, de certo modo para deixar claro que o compromisso de sigilo tem limites.

6. De 1993 até à data nunca tinha ocorrido qualquer caso conhecido de revelação de fonte confidencial com base na excepção constante do ponto n.º 6. do Código Deontológico. No entanto, o Conselho Deontológico foi tendo conhecimento de várias opiniões individuais de jornalistas que, reflectindo sobre esta matéria, defendem que tal excepção deve ser eliminada do Código.

7. Para estes jornalistas, se forem cumpridas, com rigor, as regras de aceitação de uma fonte confidencial, não pode, em princípio, colocar-se o problema da necessidade da sua denúncia. Na verdade, ao aceitar uma fonte confidencial, o jornalista tem de saber que se inverte o ónus da prova, quer perante o público, quer perante os tribunais: num caso normal de informação com fontes identificadas (como determina o princípio geral do Código Deontológico) o jornalista interpõe a fonte entre si e a responsabilidade; havendo fonte confidencial, é o jornalista que se interpõe entre a fonte e a responsabilidade. Ora, para o jornalista poder dar a garantia de que tudo fará para proteger a fonte, é preciso que esta corra um efectivo risco (pessoal, profissional ou familiar) com a revelação, é necessário que suscite ao jornalista uma confiança indestrutível e, acima de tudo isso, é indispensável que forneça ao jornalista os meios factuais de prova do que vai ser publicado, já que não será possível o recurso à prova testemunhal. Aliás, ainda recentemente, dois jornalistas assumiram, com grande dignidade, toda a culpa e dever de reparação num processo em que se tinham baseado em fontes confidenciais, mas recusaram proteger-se com a invocação dessas fontes. Ossos do ofício, quando se tem interiorizada a noção de um ofício digno!

8. Existe ainda uma outra limitação a uma hipotética revelação de fonte confidencial: é indispensável que não haja a mais pequena dúvida de que a informação prestada foi premeditadamente falsa, sabendo a fonte que, com a publicação, decorre um prejuízo irreparável ou um perigo real para o jornalista que nele confiou. Não faria sentido denunciar todas as fontes confidenciais só porque se enganam ou mesmo as que enganam deliberadamente mas não causando dano irreparável ao jornalista.

9. Segundo outras opiniões, acresce ainda uma outra limitação à denúncia da fonte confidencial, que decorre da natureza de compromisso de lealdade que é o comportamento ético: o jornalista tem de saber distinguir muito claramente se o efeito da sua denúncia vai atingir a fonte porque foi fonte ou a vai atingir por ter sido elemento de uma intriga para sabotar ou descredibilizar uma investigação. Se alguma punição ocorrer sobre a fonte ela tem de ter como fundamento a conspiração dolosa e nunca o simples facto de ter sido fonte.

10. Todos os críticos desta excepção no Código acentuam ainda a sua inutilidade prática. Na verdade, se se trata de uma fonte confidencial de informação, é muito duvidoso que o jornalista tenha meios eficazes de o provar, ao público ou em juízo. O mais certo é ficar a palavra de um contra a palavra de outro – o que não dá, por certo, para condenar o denunciado. E não se creia que se ganha algo de substancial, em termos de prova, com a obtenção de declarações de fontes através de telefones em alta voz, para outros jornalistas testemunharem. O valor desse testemunho é escasso e reverte-se contra o próprio jornalista: se tinha tal desconfiança na fiabilidade da fonte para ter de a ouvir através de telefone em alta voz, como é que aceitou publicar informação, guardando sigilo de identidade?

11. Por fim, na perspectiva dos que criticam a inclusão desta excepção no Código Deontológico, ela tem uma perversidade ínsita, que é a de parecer conferir um poder ao jornalista, num documento que se vocacionou para elencar os deveres. A excepção, uma vez inscrita no Código, permite uma leitura «jurídica» da ética profissional, dando a aparência, ao jornalista, de que a pode invocar sempre que, pelo seu exclusivo critério, parecer configurar-se a situação prevista. Nada de mais falso: um código de ética profissional é não só um compromisso individual, mas sobretudo colectivo. Nenhum jornalista pode permitir-se ser julgador único de uma situação que, a desembocar na denúncia de uma fonte confidencial, atinge todo o colectivo dos jornalistas e a credibilidade da profissão. Por isso, mesmo para os que vêem argumentos válidos na possibilidade de denúncia da fonte confidencial traiçoeira parece ser preferível a eliminação da excepção inscrita no Código. Desse modo, sempre que uma situação excepcionalíssima ocorresse, o jornalista estaria obrigado a recorrer ao apoio de um colectivo credível, prestigiado e que lhe esteja próximo: o seu conselho de redacção, o Conselho Deontológico ou outra instância acreditada no seio da classe. E teria de ser com o apoio da prudente reflexão de um colectivo que o jornalista poderia ver-se desobrigado de um dever inscrito no Código Deontológico. Mas não seria isso uma transgressão ao Código? Naturalmente. Mas é preferível transgredir uma norma escrita num código, depois – e em nome – de uma dolorosa reflexão ética, a atropelar a ética sustentado na formalidade de uma norma escrita.

12. É neste ponto que está o debate sobre o n.º 6 do Código Deontológico do Jornalista, de 1993. A discussão não está fechada. Para o seu aprofundamento e aconselhamento do Conselho Deontológico, convidam-se todos os jornalistas e interessados nestas questões para uma reunião informal na próxima terça-feira, dia 15, pelas 21 horas, na sede do Sindicato dos Jornalistas.

Partilhe