Queixa contra jornalista de O Mirante a propósito da cobertura da reunião pública da Câmara de Alpiarça

Conselho Deontológico

Queixa nº 12/Q/2023

Assunto: Queixa contra a jornalista Ana Isabel Mateiro Matias Borrego a propósito da cobertura da reunião pública da Câmara de Alpiarça

Fundamento da queixa:

  1. O Conselho Deontológico recebeu, no passado dia 12 de fevereiro, uma queixa assinada por João Manuel Monteiro Serrano a propósito da cobertura, por parte da jornalista Ana Isabel Mateiro Matias Borrego, do jornal O Mirante, da reunião pública da Câmara de Alpiarça ocorrida a 26 de janeiro de 2023.
  2. Em causa está, designadamente, a notícia com o título “Câmara da Chamusca acusada de deixar apodrecer barco emprestado”, divulgada pelo jornal O Mirante (online) no dia 01 de fevereiro de 2023.
  3. O queixoso afirma que, na reunião, apresentou “uma ocorrência com a Câmara Municipal da Chamusca relativamente a uma embarcação tradicional Avieira” que a associação que dirige – Associação Independente para o Desenvolvimento Integrado de Alpiarça (AIDIA) – tinha emprestado à Câmara da Chamusca.
  4. Diz igualmente que considerou este assunto “de interesse particular”, “não podendo ser considerado de interesse público”.
  5. Acrescenta que, ao contrário do que foi publicado, não fez qualquer acusação (relativamente à Câmara da Chamusca) e que, na reunião, sublinhou que “o assunto estava a ser resolvido por acordo entre as partes”.
  6. Diz ainda que, na mesma intervenção, apresentou outros quatro assuntos, que considera “de interesse público e comunitário”, lamentando que o jornal não tenha dado importância a estas matérias.
  7. Conta que, no final da sessão, a repórter falou com ele e “apenas mostrou interesse em saber o que se tinha passado com a Câmara da Chamusca”. Em resposta, disse ter informado a jornalista de que “o assunto era particular” e que “não mostrava qualquer interesse para ser publicado”, pedindo-lhe “para não o fazer”, alegando que “iria criar um enorme e desnecessário atrito com o presidente da Câmara”.
  8. Considera que a jornalista, ao publicar a notícia sobre o assunto relativo ao diferendo com a Câmara da Chamusca (que o queixoso considera de índole pessoal) e nada escrever sobre os restantes assuntos que abordou (que considera de interesse público), “teve uma atitude que fere a ética e a deontologia profissional” e abusou da sua “boa-fé“.
  9. Posteriormente, o queixoso enviou ao CD uma publicação do jornal o Mirante sobre a mesma matéria, naquilo que classifica de “coluna pretensamente humorística”

 

Procedimentos:

Na sequência da queixa, o CD enviou algumas questões ao queixoso e à direção do jornal O Mirante.

Ao queixoso perguntou:

1 – As frases que o jornal publica enquanto afirmações do presidente da Associação Independente para o Desenvolvimento Integrado de Alpiarça foram ou não proferidas na referida reunião pública da autarquia? Estão incorretamente citadas? Se sim, a que nível?

2- Tendo em conta que a jornalista que assistiu à reunião falou com todas as partes envolvidas no assunto em causa – tanto com o presidente da associação como com a autarquia, que respondeu, resposta essa traduzida no texto -, porque é que acusa a jornalista de ter “uma atitude que fere a ética e a deontologia profissional”?

3 – Há no trabalho jornalístico publicado, que nos envia, alguma afirmação ou afirmações da jornalista que considere reveladoras de “uma atitude que fere a ética e a deontologia profissional”? Se sim, quais em concreto?

Ao jornal O Mirante, o CD deu conhecimento da queixa recebida, perguntando se a jornalista em causa, ou a direção do jornal, queriam dar a sua posição relativamente às acusações.

Em resposta, o queixoso aponta o artigo 3º do Código Deontológico dos Jornalistas, dizendo que a jornalista em causa “tinha o dever de informar sobre todos os pontos” por ele apresentados na sessão pública da Câmara Municipal de Alpiarça, “e não ter somente isolado um deles”.

E acrescenta: “Se publicou sobre este tema particular, porque é que nada publicou sobre os assuntos que apresentei, considerados de interesse público?”

“Quando não informa sobre tantos assuntos de interesse comunitário -estes e vários outros -, não estará a contribuir para restringir o acesso às fontes de informação? Não terei razão para afirmar que a ação desta jornalista fere o código deontológico dos jornalistas?”, questiona ainda, juntando diversos documentos sobre atividades que a associação que dirige tem desenvolvido na região.

Apontou igualmente o artº 4 do Código Deontológico, que estipula que o jornalista “deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja”.

Da parte do jornal, o CD recebeu um esclarecimento, assinado pelo diretor editorial, António Palmeiro.

Começa o diretor por referir o facto de a jornalista em causa não ser sindicalizada, para concluir: “o órgão sindical em causa não tem competências disciplinares sobre a mesma, mas respondemos pelo respeito que o sindicato e o conselho nos merecem”.

Sobre a queixa em concreto, António Palmeiro alega que “o queixoso interveio na sessão, no ponto dedicado ao público, sendo a mesma sessão à porta aberta”.

Acrescenta ainda: “Bem sabe o queixoso, atendendo a que já desempenhou funções de chefe de gabinete do município de Alpiarça, que ao intervir na sessão camarária o estava a fazer publicamente e que a sua intervenção podia ser objeto de notícia”.

Por último, o diretor editorial do jornal insiste: “se o queixoso entende que o assunto é particular, não se entende por que motivo foi a uma sessão camarária, bem sabendo que esta tem cobertura jornalística e que costuma ser assistida por vários munícipes”.

Análise:

  • O queixoso aponta questões a dois níveis:
  1. entende que o assunto sobre o qual a jornalista escreveu era “de interesse particular”, não podendo, por isso, ser transformado em notícia
  2. questiona o porquê de a jornalista ter apenas escrito sobre essa matéria, deixando de fora os outros assuntos por ele abordados, que considera “de interesse público e comunitário”.
  • Quanto à primeira parte da questão, a matéria em causa tinha que ver com a cedência de uma embarcação pela AIDIA à Câmara da Chamusca e um posterior protocolo assinado entre as duas entidades para partilha de custos na recuperação da bateira, entre verbas da associação e verbas da autarquia.
  • Tendo em conta que o assunto envolve a aplicação de verbas públicas, será matéria de incontestável interesse público, que remete sempre para a divulgação de factos/acontecimentos que o público tem o direito de conhecer a bem de uma sociedade democrática e da aplicação transparente dos dinheiros públicos.
  • O queixoso pode considerar que o assunto em causa, porque envolvia a associação que preside, é de interesse particular, mas, no caso em ­­questão, não se trata de matéria do foro privado
  • Tendo o assunto sido abordado numa reunião pública de câmara no período dedicado às intervenções dos munícipes, ele tornou-se público a partir desse momento, e não apenas após a divulgação da notícia.
  • Sobre a segunda parte da questão, tanto a Constituição da República (artº 37 e artº38) como o Estatuto do Jornalista (artº7) consagram a liberdade de expressão e criação dos jornalistas, não estando sujeita “a impedimentos ou discriminações, nem subordinada a qualquer tipo ou forma de censura” (Estatuto do Jornalista).
  • No exercício da profissão, a decisão sobre a elaboração ou não de notícia coloca igualmente na equação o interesse jornalístico das matérias tratadas, assim como as opções editoriais. De outra forma, o “interesse público” poderia sempre ser alegado para, no limite, fazer propaganda.
  • Fazer uma notícia relativa a uma reunião de câmara não é o mesmo do que fazer uma ata da reunião, na qual todos os assuntos ali abordados devem constar.
  • Neste caso, de tudo o que ouviu, a jornalista, no uso da liberdade de expressão e criação, considerou que o interesse jornalístico recaía sobre o assunto do qual fez notícia.
  • O facto de não terem sido feitas outras notícias sobre os outros assuntos abordados pelo queixoso na reunião camarária não seria impeditivo de a associação a que preside, pelos seus próprios meios, os divulgar, tal como fez com outras iniciativas que promoveu, como é prova a documentação que enviou ao CD.
  • Já quanto à consideração, por parte da direção do jornal, de que o CD não teria competências disciplinares sobre a jornalista, o CD recorda que as suas funções não são disciplinares. O CD é um órgão autónomo do Sindicato dos Jornalistas que zela pelo cumprimento das normas de deontologia profissional, emitindo pareceres e/ou recomendações, apreciando, na perspetiva deontológica, a conduta profissional dos jornalistas, sejam eles sindicalizados ou não.

Deliberação:

  • No que se refere à notícia em causa, o CD considera que a jornalista respeitou os preceitos do Código Deontológico, pois sempre esteve identificada enquanto tal, tendo falado com todas as partes envolvidas (o queixoso e a Câmara da Chamusca).
  • Relativamente ao assunto que o queixoso enviou posteriormente ao CD, relacionado com o mesmo assunto, referente a uma secção do jornal O Mirante (O Cavaleiro Andante) que não integra a elaboração de notícias (o exercício do jornalismo), entrando sim no campo da opinião, o CD remete para a recomendação que elaborou em fevereiro de 2022 – https://jornalistas.eu/queixas-sobre-opinioes-dos-jornalistas-esclarecimento-do-conselho-deontologico/
  • Quanto ao facto de o assunto em causa, segundo o queixoso, ser “de interesse particular”, não pode o CD aceitar tal alegação, uma vez que, além de ter sido exposto publicamente numa reunião de câmara é nitidamente uma matéria de “interesse público” pois envolve a aplicação de dinheiros públicos, logo sujeito a um necessário escrutínio.
  • Relativamente à alegação (por parte do queixoso) de que não fez qualquer acusação, tal como refere a notícia, logo no título – “Câmara da Chamusca acusada de deixar apodrecer barco emprestado” –, tal situação está suportada nas declarações feitas pelo queixoso na reunião de Câmara e que estão transcritas (citadas) no corpo da notícia, não as tendo o queixoso desmentido, mesmo quando questionado pelo CD.

Lisboa, 14 de março de 2023

O Conselho Deontológico

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