Conselho Deontológico
Queixa nº 23/Q/2024
Queixa contra a jornalista Sandra Felgueiras sobre o “caso das gémeas luso-brasileiras” tratadas no Hospital Santa Maria
O Conselho Deontológico (CD) recebeu no passado dia 18 de dezembro de 2023 uma queixa do advogado da família das gémeas luso-brasileiras com Atrofia Muscular Espinhal que foram tratadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
A queixa apresentada versa sobre a alegada divulgação “de imagens e factos indevidos e para os quais não foi dada a competente autorização” de peças jornalísticas divulgadas no programa da TVI “Exclusivo”, apresentado pela jornalista Sandra Felgueiras.
Na reclamação, o advogado da mãe das crianças refere, designadamente, a divulgação indevida da imagem das duas menores em diversas peças jornalísticas emitidas desde o passado dia 04 de novembro de 2023 naquele programa da TVI/CNN. A este respeito, a família fez chegar ao CD, no passado dia 26 de janeiro de 2024, uma nova denúncia, igualmente sobre a divulgação da imagem das duas crianças numa peça jornalística emitida em janeiro.
Na queixa inicial, além do uso indevido da imagem das duas crianças, o advogado da família refere a divulgação da morada da família em Portugal, em imagens aéreas mostradas por aquela estação televisiva e em partes de um processo jurídico referente ao pai das crianças que foram incluídas numa das reportagens, onde se podia ler a morada da família em Portugal.
Aponta ainda a divulgação indevida de “conversas gravadas ‘off the record’, sem autorização, cortadas e totalmente fora de contexto”.
Ponto prévio:
O CD questionou a jornalista em causa que, na resposta enviada, através de um advogado do Grupo Media Capital, questiona a “competência legal ou funcional” do Conselho Deontológico para apreciar a sua conduta enquanto jornalista, lembrando que não é sócia do Sindicato de Jornalistas.
A este respeito, o CD recorda que é um órgão de autorregulação dos jornalistas, sendo sua função analisar queixas ou situações que considera suscetíveis de violarem as normas deontológicas.
Lembra igualmente uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de janeiro de 2003, onde se afirma: “Compete aos Sindicato dos Jornalistas e ao seu Conselho Deontológico, no cumprimento dos seus deveres estatutários, pronunciar-se sobre a conduta de jornalistas relativamente a atos por estes praticados no exercício da sua profissão”.
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8544688545ed292780256ce200513977?OpenDocument&Highlight=0,sindicato,dos,jornalistas
Esta decisão voltou a ser confirmada na tomada de posição sobre a queixa colocada por Rui Fino do Jornal da Madeira, no mesmo caso, contra os membros do então Conselho Deontológico, que foram todos absolvidos.
Relação de Lisboa confirma absolvição do Conselho Deontológico no «caso Rui Fino»
Análise da queixa:
Quanto à divulgação da imagem das duas crianças:
O queixoso refere que “foram sempre usadas e publicadas imagens de ambas as meninas, sem qualquer tratamento, sem que a face/cara tenha sido escondida, ocultada ou disfarçada, sem o mínimo cuidado e proteção em relação à reserva da sua vida privada e sem que a família e quem detinha o poder para tal tivesse dado qualquer autorização para a utilização da imagem das meninas em contexto jornalístico e/ou televisivo”
“Houve, desde então, uma exposição mediática de forma negativa, cruel e despreocupada com o tratamento da imagem da mãe e das filhas, que afetou a estabilidade emocional e colocou em risco a integridade física e emocional para todas elas, impedindo, inclusivamente, o regresso ao lar, em Portugal, neste momento”, acrescenta.
Aponta ainda a “utilização sem qualquer cuidado ético e deontológico da imagem das meninas, permitindo que imediata e facilmente sejam reconhecidas em qualquer lado”, considerando que tal “denegriu, profundamente, a imagem de família perante à sociedade, designadamente, nas redes sociais, onde, aliás, já surgiram injúrias e ameaças de todo o tipo”. “Tais factos causam alarme na família e uma sensação de desconforto e insegurança”, insiste.
Quanto a esta matéria, o CD questionou a jornalista, tendo perguntado porque optou por mostrar a imagens das menores, sem preocupação em disfarçar/ocultar a cara para impedir a identificação imediata das crianças. Na resposta, a jornalista diz que a utilização nas reportagens da imagem das crianças “não foi uma decisão” unicamente sua, “mas antes uma decisão coletiva dos autores da reportagem e da direção de informação da TVI, sustentada em informação e opinião jurídica nesse sentido”.
Não obstante – continua –, “a decisão de utilização das imagens da menores partiu do pressuposto inicial de que não só a imagem das menores já era publica e tinha sido recorrentemente utilizada para servir os interesses de publicitação do seu caso e de angariação de fundos pela família, tendo sido já diversas vezes utilizadas em inúmeros meios de comunicação social portugueses e brasileiros, como na autorização pela mãe da sua utilização – tendo inclusivamente grande parte delas sido por esta fornecidas aos jornalistas”.
“Tendo agora conhecimento, através da queixa apresentada, da aparente revogação da autorização concedida, a jornalista Sandra Felgueiras vai suscitar a questão junto da sua direção de informação para que, em novas peças de reportagem, tal utilização seja ponderada”, acrescenta a jornalista.
Sobre a alegada disponibilização das imagens das crianças aos jornalistas, questionado também pelo CD, o queixoso afirmou: “Não há qualquer tipo de autorização concedida para exibição da imagem das crianças, ainda mais em programa televisivo que apenas denigre a imagem das mesmas e não trata com qualquer cuidado deontológico a imagem de duas menores indefesas”. Insiste ainda que, para uso da imagem das menores, os jornalistas precisavam “de autorização expressa”, o que diz não ter acontecido, lembrando os emails trocados com a TVI sobre a matéria, em que fazem referência ao “uso indevido da imagem das crianças, sem autorização e fora do contexto para o qual foram partilhadas publicamente” (a campanha de angariação de fundos).
A jornalista da TVI responde ainda que considera não existir “qualquer limitação legal, nem deontológica, à utilização da imagem das menores, já que não foram vítimas de qualquer crime, nem se encontram submetidas a qualquer medida de proteção tutelar” pelo que “a autorização do progenitor detentor do poder paternal é suficiente e bastante”.
Quanto à divulgação da morada da família e violação da privacidade:
O advogado da família identifica também a divulgação de imagens aéreas da casa da família em Portugal e de dados pessoais sensíveis, designadamente o CPF brasileiro (correspondente ao NIF), na televisão, como violadores da privacidade.
Questionada sobre este assunto pelo CD, a jornalista respondeu que as imagens de drone utilizadas na reportagem da casa adquirida pela família das crianças “não permitem a sua identificação, nem muito menos o conhecimento da sua morada”. “
“São apenas imagens aéreas, não incluem qualquer fachada ou identificação de arruamento e permitem percecionar o nível de vida da Família das beneficiárias do medicamento recebido”, acrescentou.
A este respeito, o Conselho Deontológico, depois de visionar a reportagem emitida no dia 24 de novembro, constatou que não só foram emitidas estas imagens (ao minuto 27:14) como, logo no início da mesma reportagem (ao minuto 01:31) , foi mostrada uma parte de um processo referente a um caso jurídico no Brasil envolvendo o pai das crianças – que também esteve com elas em Portugal – e onde se pode ler a morada da casa onde estava a família, que mais à frente aparece nas referidas imagens aéreas.
Quanto à divulgação de “conversas gravadas ‘off the record’, sem autorização, cortadas e totalmente fora de contexto”:
Na queixa, a família das crianças alude à transmissão, a 4 de novembro, de uma gravação “feita com um telemóvel” e sem que a mãe delas “soubesse, nem tivesse dado autorização para a divulgação das imagens gravadas ocultamente”.
O CD questionou igualmente a jornalista sobre esta matéria, tendo esta explicado:
“A TVI e a equipa do programa exclusivo não usaram nas entrevistas que gravaram com a Sr.ª Daniela Martins qualquer câmara oculta ou meio dissimulado de recolha de Imagens. A recolha da entrevista em casa da Sr.ª Daniela, no Rio de Janeiro, aconteceu em dois momentos distintos, foi sempre acompanhada por um jornalista no local e registada integralmente por câmaras normais de qualidade Broadcast, sempre visíveis e devidamente autorizadas”.
“Se na primeira parte da entrevista a Sr. Daniela contou à jornalista Anabela Vaz Jacinto, que se encontrava à distância a realizar a entrevista, uma determinada versão dos factos, num segundo momento, depois de terem sido recolhidas imagens de uma sessão de fisioterapia das gémeas em sua casa, evidentemente autorizadas, e ainda quando as câmaras estavam ligadas, adiantou ao jornalista Nelson Garrone, que estava presente, que tinha mentido à sua colega de Lisboa e contou então a verdadeira história que ficou registada na câmara que ainda estava ligada”, acrescenta.
Refere ainda que “o jornalista Nelson Garrone estava perfeitamente identificado junto da Srª Daniela Martins como Jornalista e nunca foi referido durante toda a conversa, nem por si, nem pela queixosa, que as declarações ou informações que estavam a proferir eram em ‘of the record’.”
Acrescenta que a mãe das crianças “sabia evidentemente que estava a falar com um jornalista, sabia que estavam presentes câmaras de filmagem e que a versão que então apresentou ao jornalista era evidentemente contraditória com a primeira que havia apresentado à jornalista Anabela Jacinto”.
Na resposta, a jornalista considera ainda “incompreensíveis e injustificáveis as acusações não fundamentadas apresentadas pela queixosa”, insistindo: “Repete-se, o único interesse e motivação dos jornalistas na investigação tratamento e elaboração das reportagens sobre o tema referido nos autos foi exatamente o de cumprirem com a sua função de jornalistas, relatando uma situação de claro interesse público jornalístico e colocando as questões que se impunham aos seus responsáveis e intervenientes”.
“É por isso completamente falso que a jornalista Sandra Felgueiras tenha assumido qualquer comportamento suscetível de configurar a violação do seu Código Deontológico ou no Estatuto dos Jornalistas, como se alega na aludida queixa”, considera.
Conclusão:
1 – Quanto à divulgação das imagens das duas crianças, o CD recorda o artigo 8º do Código Deontológico: “O jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, direta ou indiretamente, as vítimas de crimes sexuais. O jornalista não deve identificar, direta ou indiretamente, menores, sejam fontes, sejam testemunhas de factos noticiosos, sejam vítimas ou autores de atos que a lei qualifica como crime. O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.”
O CD lembra igualmente que, ao contrário da interpretação da jornalista, que defende não existir “qualquer limitação legal, nem deontológica, à utilização da imagem das menores, já que não foram vítimas de qualquer crime, nem se encontram submetidas a qualquer medida de proteção tutelar”, esta leitura não está de acordo com a letra do artigo acima referido. Como se pode ler, a não divulgação da imagem de menores tem uma abrangência mais alargada, pois os menores não devem ser identificados, sejam eles testemunhas de factos, vítimas ou autores de crimes.
Aliás, mesmo que a mãe tivesse divulgado a imagem das crianças, como o fez no caso da campanha de angariação de fundos, o jornalista é absolutamente responsável por toda a informação por si divulgada e, em abstrato, a ter havido uma má opção por parte dos pais, isso não legitimaria uma má opção por parte do jornalista.
O CD sublinha ainda que o ponto 8 do Código Deontológico foi revisto no 4.º Congresso dos Jornalistas, em janeiro de 2017 – uma revisão confirmada no referendo de 26, 27 e 28 de outubro do mesmo ano – sendo que esta revisão foi considerada um progresso na defesa dos direitos das crianças, indo para além da proteção conferida pelo Estatuto do Jornalista, que apenas prescreve a proteção da identidade nos casos de vítimas de crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual, contra a honra ou contra a vida privada, ou quando se trate de menores objeto de medidas tutelares sancionatórias (Lei n.º 64/2007, de 06/11).
A este respeito, o CD remete ainda para a sua recomendação sobre casos que envolvam crianças (https://jornalistas.eu/recomendacao-do-cd-sobre-noticias-envolvendo-menores/), em que se recorda, designadamente, que “o critério que deve presidir à proteção da imagem de menores assenta, antes de mais, em princípios éticos e deontológicos, pelo que as condições do seu tratamento e divulgação não devem estar dependentes apenas do rigor ou da boa vontade dos respetivos pais, encarregados de educação ou autoridades responsáveis pela sua tutela”.
Assim, e em conclusão deste caso, o CD considera que a jornalista não cumpriu com o definido no Código Deontológico, pois deveria ter usado todos meios ao seu dispor para impedir o reconhecimento das menores nas imagens divulgadas.
O CD solicita ainda que o uso de imagens de crianças seja sempre ponderado por todos os jornalistas no exercício da sua profissão e saúda a iniciativa da jornalista em “suscitar a questão junto da sua direção de informação para que, em novas peças de reportagem, tal utilização seja ponderada”.
2 – Quanto à divulgação da morada da família e violação da privacidade, o CD recorda que às imagens aéreas da casa se juntou – na mesma reportagem – a revelação da morada da família em Portugal através da divulgação de parte de uma peça processual relativa ao pai das crianças e lembra o artigo 10º do Código Deontológico, que estipula: “(…)O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”.
O CD reconhece o interesse público do assunto tratado e conclui que as imagens não são, por si só, identificadoras da morada, mas lembra que a esta acabou por ser revelada na mesma reportagem e considera que os jornalistas deveriam ter tido maior cuidado na proteção da privacidade da família.
3 – No que se refere à divulgação de conversas que a família diz terem sido ‘off the record’, “sem autorização e retiradas fora do contexto”, o CD lembra que o Código Deontológico, no seu artigo 4º, indica que “O jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja” e que “a identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificar-se por razões de incontestável interesse público e depois de verificada a impossibilidade de obtenção de informação relevante pelos processos normais”.
O CD entende que a recolha de informação/testemunhos por meios leais significa que esta decorre apenas quando as câmaras estão ligadas e a fonte disso tem conhecimento.
Contudo, o CD recorda que, na resposta dada pela jornalista, é feita alusão a uma posição contraditória da mãe das crianças assumida perante diferentes jornalistas da equipa em diversos momentos. Diz a jornalista que, numa primeira fase, a mãe deu uma determinada informação a uma jornalista (que com ela falou à distância, a partir de Lisboa), mas, mais tarde, reconheceu ao jornalista que esteve na sua casa ter mentido à jornalista que com ela tinha falado anteriormente, tendo então contado uma história diferente.
A este respeito, é igualmente preciso ter em conta, tal como refere o artigo 3º do Código Deontológico, que “o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar”.
A ser verdade o relato da jornalista – que tendo em conta as posições contrárias assumidas pelas partes não é possível apurar com exatidão –, esta liberdade de informar poderia estar a ser posta em causa por informações contraditórias assumidas pela mesma fonte.
Assim, apesar de reconhecer que os jornalistas poderiam ter confrontado a mãe com o depoimento recolhido na gravação em que esta não sabia estar a ser gravada, dando-lhe a hipótese de poder fazer em ‘on’ a mesma declaração, o CD considera que, de facto, neste caso, apenas com a gravação oculta se conseguiu salvaguardar o interesse de o público ter acesso a esta versão dos factos, pois a mãe apenas assim assumiu que tinha enganado a jornalista com quem falou à distância.
Lisboa, 14 de fevereiro de 2024
O Conselho Deontológico