Queixa contra “a dualidade na forma como as raças são tratadas nas notícias publicadas pelo Observador”

Conselho Deontológico

Queixa nº 15/Q/2023

 

ASSUNTO

Queixa recebida a 19/4/23 e assinada por Tiago Mendes contra “a dualidade na forma como as raças são tratadas nas notícias publicadas pelo Jornal Observador”.

 QUEIXA

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (adiante CD) recebeu a 19 de abril de 2023, uma queixa assinada por Tiago Mendes em que este expressa a sua “preocupação com a dualidade na forma como as raças são tratadas nas notícias publicadas pelo Jornal Observador. o que considero uma violação dos princípios éticos do jornalismo.”.

Em concreto, o queixoso refere-se a duas notícias: uma, de 17/4/23, com o título “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado“, e uma segunda, de 19/4/23, com o título “EUA. Jovem de 20 anos morta a tiro depois de grupo de amigos se enganar no caminho e se aproximar da casa errada“. Segundo o queixoso, “ao contrário da primeira notícia, a segunda não mencionou a raça da vítima, que era branca. Isso sugere claramente uma dualidade na forma como as raças são tratadas nas notícias, o que é inaceitável. O jornalismo deve ser imparcial e objetivo, e não deve haver qualquer tipo de discriminação ou tendência sensacionalista.” argumenta Tiago Mendes.

O consulente pede ao Conselho Deontológico “que investigue essa situação e tome medidas apropriadas para garantir que as notícias publicadas pelo Jornal Observador estejam de acordo com os princípios éticos do jornalismo. Além disso, sugiro que a CD forneça orientações claras aos meios de comunicação social sobre como abordar as questões de raça e discriminação nas notícias.”.

 PROCEDIMENTOS

 

Após a leitura das duas notícias o CD entendeu contactar o diretor do Observador, Miguel Pinheiro, e o jornalista autor da notícia “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado”, José Carlos Duarte.

 

No dia 27/4/23 seguiram separadamente para Miguel Pinheiro e José Carlos Duarte as seguintes questões:

 

1) Como Justifica editorialmente o uso de “jovem negro” no título e no lead da notícia “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado”?

 

2) Considera que o título e o lead da notícia, de dia 17 de abril, violam o artigo 9º do Código Deontológico dos Jornalistas?

 

3) Na queixa recebida pelo Conselho Deontológico, o autor afirma que as duas notícias do Observador em análise mostram “claramente uma dualidade na forma como as raças são tratadas nas notícias…”. Como comenta estas acusações? E qual o critério editorial que deve ser praticado no Observador?

 

4) Existe no Observador algum manual de estilo que contemple questões éticas e deontológicas? Caso não exista, questões como a suscitada pelo queixoso são discutidas regularmente pela redação?

 

A  08/5/23 o CD recebeu a resposta conjunta do diretor do Observador e do jornalista em causa:

 

– Relativamente à questão 1, é dito o seguinte: “A notícia refere-se a um jovem, menor de idade, que foi baleado, tendo a polícia assumido oficialmente estarem em causa neste crime “componentes raciais”. Tendo em conta a versão oficial, o facto de ser um jovem negro não só não estará desligado do móbil do crime, como consubstanciou motivo bastante para que o próprio Kansas City Police Department desse conta disso na análise preliminar que fez numa conferência de imprensa (https://youtu.be/h_f8gYx53Bw?t=159).

Por todos estes motivos, do ponto de vista jornalístico, dado o interesse público, entendemos justificar-se – e mantemos tal entendimento – a referência a essa característica, que seria apenas irrelevante se não houvesse suspeita de qualquer relação com a motivação do crime. A opção editorial foi idêntica, aliás, à de outros órgãos de comunicação internacionais de referência, como é o caso da BBC (https://www.bbc.com/news/world-us-canada-65299127).

 

– Sobre se o título e o lead da notícia podem violar o artigo 9º do Código Deontológico, (questão 2), os dois jornalistas do Observador argumentam: “O referido artigo do Código Deontológico dos Jornalistas tem a seguinte redação: “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual”. Não se vislumbra, assim, de que modo a redação de uma notícia que dá conta de um crime, em que existe, segundo a policia, uma alegada “componente racial”, pode ser um tratamento discriminatório. Bem pelo contrário. Trata-se de uma notícia que não esconde aquelas que são oficialmente as suspeitas seguidas pelas autoridades e que apontam para um cenário de violência com motivação racial. Mais uma vez, é relevante notar que foi o mesmo critério editorial seguido, por exemplo, pela BBC.”

 

– Acerca de uma eventual dualidade na forma como as raças são tratadas (questão 3), contrapõe o Observador: “Em primeiro lugar, importa ter em conta que as duas notícias tratam situações totalmente diferentes, ainda que possa haver detalhes comuns. No caso de Kaylin Gillis, trata-se de uma mulher de 20 anos que foi baleada quando o carro em que seguia entrou por engano num caminho privado, numa zona rural do estado de Nova Iorque. Aqui, as suspeitas apontam para que o crime terá sido motivado não por qualquer questão racial, mas por uma entrada em propriedade privada – o idoso que vivia naquela propriedade disparou sobre o carro, quando se apercebeu que este estava num terreno que lhe pertence. Desconhece-se qualquer questão racial como alegada motivação, pelo que a alusão a uma característica da vítima dessa natureza seria, isso sim, discriminatória. Repetimos, também aqui, que a avaliação feita pela redação do Observador neste caso vai igualmente ao encontro do que foi feito pela BBC (https://www.bbc.com/news/world-us-canada-65307556)”.

 

– Finalmente na resposta à 4º questão, é referido que “o Observador não dispõe de um manual de estilo. Todas as questões como a suscitada são sempre avaliadas à luz do Código Deontológico dos Jornalistas e levadas, se necessário, às reuniões do Conselho de Redação”.

 

ANÁLISE

 

O uso de “Jovem negro” no título de uma notícia, é por princípio, à luz do código deontológico dos jornalistas, uma situação condenável e que por isso deve ser evitada. O mesmo caso se aplica ao, hipotético, uso de “jovem branco”, ou à menção de qualquer raça.

 

No caso concreto da notícia em análise, “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado“, há efetivamente uma questão racial, tal como referem o diretor e o jornalista do Observador, que deve constar na redação da notícia e do lead, como aparece no observador “… Tia fala num “crime de ódio”, advogado culpa “dinâmicas raciais”. Polícia não descarta “motivações” raciais.”, mas que ainda assim não justifica o uso no título de “Jovem negro”.

 

Podemos ainda refletir de forma mais aprofundada sobre a notícia e o seu título e, provavelmente, concluír que o facto de um jovem de 16 anos ser baleado por ter tocado na campainha errada, é motivo suficiente para a indignação de qualquer ser humano em qualquer parte do mundo. O mesmo, infelizmente, não se poderá afirmar quando se escreve “Jovem negro”.

 

Acresce, que a publicação de uma fotografia do jovem baleado, no topo da notícia, dá a informação ao leitor da raça da vítima, não justificando a duplicação de informação.

 

Prova disso, é que na segunda notícia (EUA. Jovem de 20 anos morta a tiro depois de grupo de amigos se enganar no caminho e se aproximar da casa errada”), não é referido no título nem na notícia a raça da jovem de 20 anos, mas o leitor tem essa informação através da imagem.

 

Quanto à “dualidade na forma como as raças são tratadas nas notícias publicadas pelo Jornal Observador” referida na queixa, ela é real no que se refere, exclusivamente, ao título pois as razões dos atos praticados não podem ser motivo para identificar uma raça seja ela qual for, ao contrário da justificação do diretor e do jornalista do Observador referindo que na segunda notícia (EUA. Jovem de 20 anos morta a tiro depois de grupo de amigos se enganar no caminho e se aproximar da casa errada”) “as suspeitas apontam para que o crime terá sido motivado não por qualquer questão racial, mas por uma entrada em propriedade privada…”.

 

A “dualidade na forma como as raças são tratadas” já não pode ser alegada no desenvolvimento da notícia, onde as motivações, sejam elas raciais ou não, devem constar na prosa tal como o Observador escreveu, e bem, no último parágrafo da primeira notícia (“Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado“) “O caso ganhou mediatismo não só pelos contornos do crime, como também pela questão racial. Na cidade de Kansas City, no Missouri, várias pessoas saíram às ruas para protestar contra a decisão judicial. É que o suspeito, um homem branco, foi libertado 24 horas depois.”. 

 

O facto de jornais de referência internacionais, mas locais relativamente aos acontecimentos das notícias em análise, terem uma determinada opção editorial não deve impedir os jornalistas portugueses de informarem de forma mais conscienciosa e pedagógica perante uma, possível, discriminação. 

A este propósito, relembramos as conclusões de um parecer do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (Queixa Nº14/Q/99) onde se refere: “Um título é um veículo importantíssimo para passar mensagens explícitas ou subliminares. Deve por isso ser tratado com tanto cuidado – ou mais! – do que o interior das notícias”.

Por último, frisar que o livro de estilo de um órgão de comunicação social é um instrumento de trabalho, que define e ajuda na auto-regulação interna das normas  técnicas e éticas do meio de comunicação e dos seus jornalistas, por vezes de forma mais restrita do que está expresso no Código Deontológicos do Jornalistas.

 

DELIBERAÇÃO

 

O Conselho Deontológico tem bem presente que a questão racial é um dos temas mais complexos na abordagem quotidiana do jornalismo, essencialmente porque cruza a necessidade de bem informar com o dever de o fazer sob uma ótica de respeito por diversos valores.

O Conselho Deontológico dos Jornalistas considera que, depois de analisadas as notícias com os títulos “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado” e “EUA. Jovem de 20 anos morta a tiro depois de grupo de amigos se enganar no caminho e se aproximar da casa errada“, o jornal Observador teve objectivamente critérios diferentes na forma como identificou os jovens.

O facto de numa das notícias ter havido uma questão racial não pode e não deve justificar um título com a menção da raça, seja ela qual for. Diferente seria se, nomeadamente, o título citasse alguma entidade (a polícia, por exemplo) a referir essa questão. Exemplo, a título demonstrativo, apenas: “Jovem de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Polícia não descarta “motivações” raciais.” Ou seja, era perfeitamente possível construir o ‘mesmo’ título sem a referência em causa.

Daí que se possa pôr a questão: a utilização da palavra ‘negro’ era essencial no título para a total compreensão dos factos em causa? O Conselho Deontológico entende que não.

O mesmo já não se coloca relativamente ao uso de “jovem negro”, ou à designação de outra raça, como é o caso no último parágrafo de “… um homem branco…” , no lead e na notícia da prosa “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado“, atendendo a que existiu efetivamente uma questão racial: O jovem não morre por ter tocado na campainha errada, mas porque existiu um ato racista.

Nesse Sentido, o CD sugere que as questões de discriminação racial (social, de género, etc.) sejam evidenciadas pelo ato discriminatório e não através da mera enunciação do objeto da discriminação, o que, em última instância, pode aprofundar a razão do preconceito: porque é negro, mulher, cigano, pobre/rico.…

O Conselho Deontológico dos jornalistas considera que apenas no título da notícia “Jovem negro de 16 anos baleado por ter tocado na campainha errada no Missouri. Suspeito foi libertado“, o jornalista José Carlos Duarte não respeitou escrupulosamente o ponto 9 do Código Deontológico dos jornalistas, em que se afirma “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual.”, assim como, a alínea E do ponto 2 do 14º artigo do Estatuto do Jornalista, que explicita que um dos deveres do jornalista é Não tratar discriminatoriamente as pessoas, designadamente em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual;”.

Por último, o Conselho Deontológico dos Jornalistas recomenda e incentiva o Observador a promover a criação do seu livro ou manual de estilo, onde estas e outras questões de âmbito técnico-deontológico possam ser debatidas e esclarecidas.

O presente parecer foi aprovado  com os votos de todos os membros em efetividade de funções, com exceção de Catarina Santos, que pediu escusa por razões profissionais.

Lisboa, 25 de maio de 2023.

O Conselho Deontológico

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