Parecer do CD sobre queixa da empresa Utopia

PARECER 17/P/2009
Parecer do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas sobre uma queixa apresentada pela empresa Utopia – arquitectura e engenharia Lda., relativa a uma entrevista solicitada para inserção em suplemento ao jornal «Público», cuja publicação estava sujeita ao pagamento de uma verba para publicidade, como foi constatado a posteriori pelo entrevistado.

Explicação prévia

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas lamenta o atraso com que emite este parecer. A queixa do arquitecto Ricardo Cruz, sócio-gerente da empresa Utopia – Arquitectura e Engenharia Lda., com sede social no Porto, foi recebido em 18 de Setembro de 2008.

Após um contacto do Conselho Deontológico (CD), em Setembro de 2008, Ricardo Cruz forneceu no dia 27 do mesmo mês elementos complementares sobre o caso. Foi decidido encetar um processo de audição às partes envolvidas, o que aconteceu no início de Outubro.

A empresa Strong Advance, que solicitou e fez a entrevista para publicar num suplemento temático a inserir no jornal «Público», respondeu em 22 de Outubro de 2008. O Conselho de Redacção do «Público» informou o Conselho Deontológico que a resposta deste órgão seria dada pelo seu presidente.

Decorrido um ano, o presidente do Conselho de Redacção do «Público», cargo que por inerência é exercido pelo director do jornal, não respondeu ao Conselho Deontológico, apesar de ter sido incumbido em reunião do órgão em que o assunto foi abordado.

Como director do «Público», José Manuel Fernandes também não respondeu às questões que lhe foram directamente colocadas.

O Conselho Deontológico aguardou demasiado tempo, mas não pode deixar de emitir parecer porque um dos interessados no caso se furta a elucidar a questão.

Lamenta que o «Público» e o seu Conselho de Redacção prescindam do direito de exprimirem o seu ponto de vista sobre um caso que envolve o jornal.

Os factos

A empresa Utopia – Arquitectura e Engenharia Lda. afirma que foi contactada pela Strong Advance – Comunicação Unipessoal, Lda., com o intuito de fazer uma reportagem destinada a publicação num suplemento temático sobre Arquitectura e Design, a inserir no jornal «Público» no mês de Outubro de 2008. O sócio gerente da Utopia, depois de ter anuído em conceder a entrevista, recebeu Manuel Alvarez e Flora Rocha. A entrevista foi gravada e fotografada.

No final da entrevista, os profissionais destacados pela Strong Advance informaram que a publicação da entrevista pressupunha o pagamento de um valor. Ricardo Cruz acrescenta que «de imediato interroguei Manuel Alvarez sobre o que significava tal afirmação. Foi-me explicado que se tratava de um patrocínio para financiar um suplemento do “Público”.»

A 17 de Setembro de 2008 recebeu um e-mail da Strong Advance para «nós escolhermos os valores que pretendíamos gastar.»

Nesse e-mail, a Strong Advance, com sede social no Porto, apresentou-se como «uma empresa de características internacionais, que opera no âmbito da informação e comunicação nacionais». Afirmou ter como missão «divulgar exemplos de excelência em Portugal, através de publicações cujas matérias de interesse conjugam os vários sectores de actividade económica.»

O trabalho de divulgação proposto pela Strong Advance «consiste na elaboração de uma reportagem (texto, fotografia e imagem) e inserção publicitária a publicar». A tabela de preços apresentada à empresa Utopia variava, em 2008, entre os 2.250,00 € (para página dupla central) e os 650,00 € (para ¼ de página ou rodapé).

A Strong Advance informou que a publicação tinha como título «O impacto da excelência», com uma tiragem de 15.500 exemplares, e que tinha como distribuição o «jornal “Público” – Grande Porto, Nacional e Internacional dirigida.»

Motivos da queixa

Os factos expostos motivaram a queixa de Ricardo Cruz ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Pretendeu saber «se é possível de algum modo impedir ou punir estes comportamentos ou se deveremos ficar impávidos perante este tipo de atitude.» Assim como queria «saber se o jornal “Público” se vincula ou não a estes actos».

Aduziu ainda os seguintes argumentos para justificar o recurso ao Conselho Deontológico:

«- Não aceito que me entrevistem e mascarem a entrevista de publicidade. Desprestigiam o meu trabalho e a minha empresa.

«- Estou sempre disponível para investir em publicidade. Não estou é disponível para investir em publicidade mascarada de jornalismo e muito menos sem nosso conhecimento prévio.

«- Não sei se estes senhores estão vinculados ou não ao jornal “Público”. Só o jornal o poderá dizer. O que eu sei é que este comportamento é ética e deontologicamente reprovável.

«- Como pode o leitor comum distinguir a publicidade do jornalismo quando existem jornalistas (ou melhor, alegam sê-lo) que procuram cobrar taxas de publicidade aos entrevistados?»

Esclarecimento

Para buscar esclarecimento, o Conselho Deontológico contactou a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social para saber se a empresa Strong Advance – Comunicação, Unipessoal, Lda «está registada como empresa jornalística ou se figura como proprietária ou editora de revistas e outras publicações periódicas». A ERC respondeu que a Strong Advance «não se encontra inscrita» nos seus serviços «nem é titular de nenhuma publicação periódica».

O CD apurou junto da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) que os dois profissionais ao serviço da Strong Advance não estão habilitados com título profissional de jornalista.

Por carta datada de 15 de Outubro de 2008, o Conselho Deontológico solicitou à empresa Strong Advance – Comunicação, Unipessoal, Lda. que elucidasse a sua participação neste caso.

Correspondendo à solicitação, Manuel José Alvarez, sócio-gerente da Strong Advance respondeu em 22 de Outubro de 2008. Confirmou que a empresa Utopia foi «contactada telefonicamente pelo sócio-gerente da Strong Advance – Comunicação Unipessoal, Lda. para elaboração de uma publi-reportagem.»

Manuel Alvarez e uma colaboradora da empresa, Flora Rocha, deslocaram-se à empresa Utopia, onde falaram com os sócios-gerentes, os arquitectos Ricardo Cruz e Susana Vilela.

Manuel José Alvarez afirma que «no início do encontro foi explicitado que se tratava de uma publi-reportagem tendo sido apresentado o projecto da publicação e o tema que se preparava, arquitectura e design». Acrescenta que os sócios-gerentes da Utopia anuíram «a responder a um questionário sobre a empresa e a actividade que desenvolvia, tendo esta conversa/entrevista sido gravada com a concordância de todos os presentes.»

Salienta que, no final, os responsáveis pela Utopia «adiaram a decisão da aquisição de publicidade, dando como alternativa a possibilidade de algum dos seus clientes patrocinar a publicação.» E diz também que «na altura foi esclarecido que a publicação nada tinha a ver com o projecto editorial do jornal “Público”, sendo independente e sustentada financeiramente pela venda de publicidade.»

Fornece informação complementar sobre o objecto social da firma Strong Advance – Comunicação Unipessoal, Lda., a qual se dedica a «actividades de informação e comunicação, nomeadamente a edição de revistas e outras publicações periódicas e não periódicas, domiciliação de páginas web e formação profissional.»

Afirma que, para início da sua actividade comercial, escolheu «a intervenção no mercado das publicações de divulgação empresarial, com distribuição gratuita, integrada em jornal de grande tiragem e vocacionada para os segmentos A, B, C e Cl, editando desde o mês de Julho [de 2008] várias publicações de carácter não periódico e comercial de índole publicitária, cujo conteúdo é baseado em trabalho de pesquisa junto de empresas em variados ramos de negócio.»

Em resposta a questões directamente colocadas pelo Conselho Deontológico, Manuel José Alvarez disse:

«1. A Strong Advance – Comunicação Unipessoal, Lda. não é uma empresa jornalística.

«2. Dos [seus] objectivos actuais (…) não consta a edição de publicações periódicas.

«3. As [suas] edições (…) não se regem por um estatuto editorial.

«4. (…) não tem nenhum contrato para a edição de suplementos do jornal “Público”.

«5. (…) não tem nos seus quadros quaisquer jornalistas com carteira profissional válida e, portanto, não está obrigada ao código deontológico dos jornalistas.

«6. Como qualquer publicação de distribuição gratuita, a sua edição é custeada exclusivamente por receitas com origem na publicidade que angaria. É a esta inserção de publicidade que se refere a proposta de valores apresentados à firma Utopia.

«7. O valor contratado para a publicidade não é critério para definir espaço de matéria escrita e imagem.

«8. Os colaboradores desta empresa executam as tarefas necessárias ao seu funcionamento.»

Sem resposta

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas solicitou também em 15 de Outubro de 2008 a colaboração de José Manuel Fernandes, enquanto director do “Público”, e a do Conselho de Redacção, enquanto órgão que concretiza a intervenção dos jornalistas na «orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social» (artº 38.º da Constituição da República Portuguesa) e que dispõe de competências para se pronunciar «sobre todos os sectores da vida e da orgânica da publicação que se relacionem com o exercício da actividade dos jornalistas, em conformidade com o respectivo estatuto e código deontológico» [alínea e), do artº 23.º da Lei de Imprensa].

Colocou ao director do jornal «Público» as seguintes questões:

— O jornal «Público» tem um contrato com a firma Strong Advance para a edição de suplementos?

— Os suplementos do «Público», publicados e distribuídos juntamente com as suas edições, não estão sujeitos a registo na ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social? É o caso dos suplementos que a Strong Advance edita para o «Público»?

— Esses suplementos periódicos são informativos, de natureza jornalística, ou comerciais, de índole publicitária?

— Se são informativos, a quem cabe a direcção editorial?

— Os profissionais que executam reportagens e entrevistas, escritas e fotográficas, são jornalistas habilitados com título profissional?

— O jornal «Público» tem conhecimento que os profissionais destacados para executar a reportagem estabelecem também contacto e apresentam proposta de «patrocínio para financiar um suplemento do “Público”»?

— Tem conhecimento de que o valor contratado constitui critério para definir o espaço ocupado pela matéria escrita?

— Há ou não nesse modelo uma confusão entre o trabalho informativo e a actividade publicitária?

O Conselho Deontológico informou os membros eleitos do Conselho de Redacção do «Público» que decidira proceder à análise do caso apresentado pela empresa Utopia. Relevou o facto da firma queixosa interpelar a ética e deontologia do «Público» e as práticas jornalísticas.

Para o esclarecimento dos factos, solicitou-lhes ainda que dessem resposta às seguintes questões:

— O caso exposto pela firma queixosa — o de suplementos periódicos editados pela Strong Advance e publicados e distribuídos juntamente com o «Público» — é susceptível de ferir o princípio da incompatibilidade entre jornalismo e publicidade?

— A confirmar-se a alegação da firma queixosa há ou não uma confusão espúria entre jornalismo e publicidade que acabará por afectar, em primeiro lugar, os jornalistas do «Público» e a sua orientação editorial?

— Pessoas que em nome de suplementos do «Público» contactam fontes a solicitar entrevistas e, simultaneamente, fazem depender a sua publicação do pagamento de «um patrocínio para financiar um suplemento» do jornal estão ou não a afectar a honorabilidade dos jornalistas dessa redacção e a orientação editorial?

Análise

A análise do Conselho Deontológico é objectivamente prejudicada pela ausência de resposta do director do «Público» e dos membros eleitos do Conselho de Redacção. Mas se, quanto a estes, a sua atitude desmerece a função que desempenham, a do director do «Público» indicia uma opacidade quanto à sua direcção editorial, que afecta os valores e princípios contemplados no Livro de Estilo e o compromisso que o jornal assume no Estatuto Editorial junto dos seus leitores.

A transparência editorial e a separação clara entre jornalismo e publicidade são valores inalienáveis da actividade profissional dos jornalistas. No esclarecimento devido aos leitores de qualquer meio residem os fundamentos da confiança que se estabelece no acto da comunicação.

Face aos factos expostos, subsistem dúvidas quanto ao tipo de relação existente entre a empresa Strong Advance, editora de revistas e outras publicações, e o jornal “Público”, que serve de veículo de distribuição desses produtos.

Questão esta que interpela a emergência das empresas de comunicação social delimitarem claramente as diferentes áreas dos meios e estabelecerem diferenças criteriosas e rigorosas entre as direcções gerais, editoriais e comerciais.

As confusões propiciadas por circunstâncias desta natureza — ainda para mais quando potenciadas por recusas em esclarecer as situações — afectam não só a integridade dos jornalistas como o próprio jornalismo.

Questão que interpela a necessidade de regular a existência das publicações deste tipo, designadamente aquelas que utilizam os jornais como veículos de distribuição. É necessário que fique claro para quem é entrevistado e para aqueles que lêem tais publicações que a sua natureza é comercial e que não têm qualquer relação com a actividade jornalística.

É necessário esclarecer o carácter eminentemente promocional, propagandístico ou de publicidade redigida que se oculta sob a designação de publi-reportagem. Actividade que é incompatível com o jornalismo.

O Conselho Deontológico congratula-se com a atitude adoptada pelo sócio-gerente da empresa Utopia, designadamente pela preocupação que manifesta quanto à exigência de qualidade do jornalismo.

Inversamente, o Conselho Deontológico reprova a atitude do director do «Público», que não dignifica nem qualifica o jornalismo.

Lisboa, 11 de Setembro de 2009

O relator,

Orlando César

Pelo Conselho Deontológico

do Sindicato dos Jornalistas

Orlando César

(Presidente)

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