Metajornalismo: a opinião de Sónia Ferreira

“Eu ponho um preservativo na cabeça”

A expressão, provocadora e tão fiel, é do fotojornalista da agência Lusa Manuel Almeida. Disse há dias o Almeida, repórter que já cobriu todo o tipo de realidades dramáticas, da guerra à fome, ao longo dos seus 35 anos de carreira, que quando está a trabalhar nesses cenários põe “um preservativo na cabeça”. Achei graça, porque se percebe imediatamente o sentido do que estava a dizer. O Almeida referia-se à necessidade de proteger a nossa saúde mental e emocional nesses cenários difíceis, sabendo que disso também depende um trabalho bem feito. É que o “preservativo” protege-nos e protege também o outro. Em trabalho, em situações delicadas, dramáticas ou de risco, há um botão qualquer que se liga, o sentido do dever profissional sobressai, independentemente de nos apetecer fugir dali a correr ou de caírem lágrimas enquanto escrevemos, fotografamos ou gravamos. Cada um de nós saberá como faz para conseguir reportar a realidade com brio e zelo, mantendo a sanidade e sem descurar o compromisso com o destinatário da nossa história. Onde começa esse respeito? Desde logo na forma como trabalhamos os dados que recolhemos e na forma como tratamos as situações e as pessoas que são alvo da nossa reportagem. Esse respeito exige que se cumpram as boas práticas profissionais e a deontologia da profissão. Às vezes não é fácil, as circunstâncias são extremas, as condições não ajudam ou a experiência é pouca. Tudo isso é verdade e nada disso é desculpa para não conseguirmos cumprir o que nos pede o jornalismo, um profundo respeito por quem nos lê, por quem nos vê e por quem nos ouve, insisto. Não diabolizo qualquer meio ou órgão de comunicação social e sei que todos temos fragilidades. É por isso que, mais do que falar em dever, prefiro falar em direito a cumprir as regras, as boas práticas profissionais, os manuais internos ou livros de estilo. Temos esse direito, vamos exercê-lo. O exercício do que está previsto no código deontológico não deve ser visto como um luxo a que só alguns podem aceder. Todos temos esse direito: Quem anda no terreno, na estrada, na bancada, na redação, quem ganha melhor ou quem ganha pior, quem é precário ou quem é efetivo, quem está a estagiar e quem está a contar os anos para a reforma. O código deontológico é nosso direito e é também nossa proteção a tantos níveis diferentes. Ao lado do instinto do jornalista, que é um importante guia – talvez o mais importante e ele apura-se com a experiência – a deontologia e as boas práticas, aquilo que aprendemos com a experiência dos camaradas de redação, todos esses instrumentos ajudam, especialmente quando as decisões não são óbvias ou há pressões externas que nos baralham. Podemos ter sempre presente que: Tenho direito a não incomodar um familiar em luto no funeral do filho; tenho direito a não mostrar a cara de um menor que foi violado; tenho direito a largar o microfone quando a história já foi contada e eu quiser ajudar a apagar o fogo; tenho o direito de não insistir se a testemunha apresentar descontrolo emocional. Da mesma forma, tenho o direito de não escrever se não tiver informações confirmadas; tenho o direito de fazer todas as perguntas que considerar necessárias; tenho o direito de recusar continuar o direto se nada mais houver a reportar no momento; tenho o direito de não escrever rumores; tenho o direito de não escrever sem primeiro tentar o contraditório, tenho direito a não identificar a etnia das pessoas se não for relevante para a notícia; tenho o direito de recusar práticas que não respeitem o meu brio profissional ou a minha consciência. Se nos respeitarmos na nossa dimensão humana e profissional, enobrecemos a profissão e conseguiremos um trabalho digno de nós e de quem o lê, ouve ou vê. 

Sónia Ferreira, CP 3048

Partilhe