[Na última edição da sua coluna do provedor dos Repórteres em Construção, um projeto saído do último Congresso Nacional de Jornalistas, Joaquim Fidalgo escreveu um artigo sobre um tema recorrente para o qual o Metajornalismo gostaria de chamar a atenção e incluir entre os seus temas de debate e reflexão: as famigeradas “Conferências de Imprensa sem direito a perguntas”. O texto surge também de uma discussão que o Artigo 37 tem realizado na sua plataforma online, dedicada a denunciar as restrições à liberdade de informação em Portugal. Ao Joaquim Fidalgo e à coordenação do REC, na pessoa do Miguel Midões, obrigado pela autorização de republicação deste texto.]
Perguntar não ofende – mas incomoda?…
Convidar jornalistas para uma “conferência de Imprensa” e recusar-lhes o direito de fazer perguntas é uma bizarria (e uma afronta…) que, infelizmente, se vai tornando comum entre nós. Mas isso só acontece porque o ‘crime’ compensa. E o boicote prometido vai tardando.
Não é comum um jornal ser publicado com uma página em branco. Nada comum mesmo! Mas aconteceu pelo menos uma vez cá no nosso país, está agora a fazer seis anos. Quem decidiu fazê-lo foi o semanário regional Jornal de Barcelos. E porquê? Porque uma sua jornalista foi convocada para uma conferência de Imprensa, participou nela, ouviu o que os seus promotores tinham a dizer e, no momento de fazer perguntas sobre o que ouvira, foi-lhe comunicado que não havia lugar a perguntas. Mais nada. Ponto final. E o jornal decidiu que, se não tinham permitido que a sua jornalista fizesse o trabalho que lhe competia, não daria qualquer notícia do evento. Publicou uma página em branco (https://ominho.pt/jornal-de-barcelos-sai-com-pagina-em-branco/) , com uma pequena nota explicativa assinada pela direção.
Duas semanas antes deste episódio, os jornalistas portugueses, reunidos no seu 4º Congresso, tinham aprovado uma proposta (https://www.publico.pt/2017/01/15/sociedade/noticia/congresso-dos-jornalistas-aprova-boicote-a-conferencias-de-imprensa-sem-direito-a-perguntas-1758398 ) de “boicote a conferências de imprensa onde os jornalistas não tenham direito a fazer perguntas”. A decisão do Jornal de Barcelos estava, portanto, em clara sintonia com este propósito. O certo é que isto da página em branco sucedeu no dia 1 de fevereiro de 2017 e, tanto quanto sei, não voltou a acontecer. Mas conferências de imprensa sem direito a perguntas, oh!, quantas se fizeram desde então!… E quantas foram boicotadas?… E de quantas se resolveu não dar sequer notícia?… Aparentemente, a decisão de boicote tomada pelo grupo profissional dos jornalistas não teve qualquer seguimento. Foi esquecida? É desvalorizada? Não se mostra viável?…
O artigo 37º da Constituição…
Dar uma conferência de Imprensa sem direito a perguntas por parte dos jornalistas é, bem vistas as coisas, uma contradição nos termos. Não passa de uma espécie de “declaração à Imprensa”, algo que alguém diz ou lê, esperando que a Imprensa (entendida em sentido lato, ou seja, abrangendo jornais, rádios, televisões, online) reproduza, no todo ou em parte, aquilo que foi dito. Para isto, é claro que não são precisos jornalistas; basta um microfone, basta um gravador, basta uma máquina. Mas então, por que raio são convocadas “conferências de Imprensa”, quando o que se quer fazer é apenas isto? Pois é: são convocadas para tentar garantir que o que é dito acaba por ser publicado. E, sobretudo, para tentar que lá haja uma câmara de televisão… O que se pretende não é informar, no sentido jornalístico do termo. O que se pretende é transmitir, promover, propagandear. E para isso, claro, não são precisos jornalistas — bem pelo contrário! Fazendo perguntas, os jornalistas só atrapalham…
Uma conferência de Imprensa devia ser destinada a promover informação sobre um determinado assunto, com gente a falar, gente a ouvir e gente a dialogar. Com os jornalistas todos colocados em pé de igualdade, todos com direito de acesso e direito à palavra, aborda-se certa matéria e quem a apresentou é, depois, confrontado com perguntas. Umas destinam-se a esclarecer melhor o que foi dito, outras a procurar obter elementos suplementares de informação, outras porventura a dar nota de situações dúbias ou contraditórias. Tudo isso pode e deve ser esclarecido no “período de perguntas e respostas”, com grande vantagem para nós, os destinatários finais da informação. E ficamos muito gratos se os jornalistas se tiverem preparado previamente para debater o tema em análise e, assim, colocarem as perguntas mais interessantes e mais pertinentes do ponto de vista informativo. É para isso que há jornalistas, é por isso que eles vão a uma conferência de Imprensa. Não é para lá chegarem, ligarem o gravador ou abrirem o bloco de notas, tomarem uns apontamentos e voltarem a casa para reproduzir o que de lá trouxeram. São os famigerados jornalistas “pé de microfone”, que muita e muito boa gente gostaria que eles fossem… e nada mais que isso.
Foi para combater esta indesejável prática que o Congresso dos Jornalistas apelou ao boicote. Porque, além de feia e mal-educada, é uma prática que dificulta e impede o nosso direito à informação nos termos em que o define o artigo 37º da Constituição da República Portuguesa (https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-aprovacao-constituicao/1976-34520775 ): “…o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. Não se retira a ninguém o direito a fazer as “declarações à Imprensa” que muito bem entender. O que se condena, sim, é o uso perverso de uma instituição respeitável como é uma conferência de Imprensa, tipicamente destinada a garantir aos jornalistas um melhor acesso a informação, para silenciar os jornalistas, impedindo-os de fazer perguntas. Como comentava a então presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco, ao aplaudir o boicote decidido pelo Jornal de Barcelos, “o papel do jornalista não é ir assistir a coisas, é fazer perguntas” (https://www.publico.pt/2017/02/01/sociedade/noticia/nao-ha-perguntas-nao-ha-noticias-jornal-de-barcelos-deixa-pagina-em-branco-1760528).
… e o artigo 3º do Código Deontológico
Chama-se precisamente “Artigo 37” (https://artigo37.pt/) uma plataforma online criada há já mais de um ano e destinada a “denunciar as restrições à liberdade de informação em Portugal”, quaisquer que elas sejam.
Da iniciativa de um conjunto de jornalistas e académicos ligados ao mundo da Comunicação, a plataforma divulga regularmente situações de atropelo a essa liberdade, sejam as de “conferências de Imprensa sem perguntas”, as de “acesso negado a documentos”, as de “violência física sobre jornalistas”, as de “proibição de acesso a lugar” ou as de “ameaça de processo judicial”, para citar apenas algumas das categorias. E de todas as situações ali apresentadas, sempre recolhidas a partir de notícias já saídas a público, quem é denunciado tem, naturalmente, direito de resposta.
Esta iniciativa procura dar visibilidade e substância também ao artigo 3º do Código Deontológico dos Jornalistas (https://jornalistas.eu/novo-codigo-deontologico/), que reza assim: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Ou seja, denunciar todos os atropelos ao direito à informação e combatê-los na medida das suas possibilidades é um dever dos jornalistas. Um dever deontológico, cujo propósito tem em vista, naturalmente, servir melhor as pessoas para quem o jornalismo se faz.
Ter acesso a um lugar onde decorre certo ato público, ter direito a consultar certo documento oficial, ter direito a abordar os responsáveis de um qualquer ato público, ter direito a fazer perguntas numa conferência de Imprensa, e fazer tudo isto sem ser vaiado, molestado, ameaçado ou agredido, não é uma qualquer benesse oferecida a gente privilegiada, como às vezes dizem que são os jornalistas. Não. É apenas garantir que lhes são asseguradas as condições essenciais ao exercício da sua função – que é uma função de verdadeiro serviço público. Ou seja, informar-nos o melhor possível sobre tudo o que se entenda ser relevante para as nossas vidas. Para que nós, cidadãos, possamos tomar decisões mais fundamentadas, mais conscientes, mais críticas.
Denunciar quaisquer atropelos a este direito à informação é um dever de todo o jornalista – e é, parece-me, um dever também de todos os órgãos de comunicação. São eles os segundos prejudicados com estes abusos (os primeiros somos nós). E só um esforço coletivo neste domínio permitirá mudar o estado de coisas.
Joaquim Fidalgo. CP: 287