Informação e audiências

Perante os abusos cometidos no sentido de fazer depender a informação das audiências, o jornalista Oscar Mascarenhas, presidente do Conselho Deontológico do SJ, fez uma análise da relação existente entre estas duas componentes da comunicação social. Tal análise foi apresentada numa comunicação ao 3.º Encontro de Jornalistas do Norte de Portugal e da Galiza, que se realizou em 28 de Outubro de 2000.

A relação entre a informação e as audiências não é «ame-as ou deixe-as», mas sim o paradoxo «ame-as – mas deixe-as».

A informação vive de audiências, isto é, deixa de fazer sentido e é ociosa sem audiências. Sem audiência, a informação morre. Mas também deixa de ter sentido e é ociosa a informação para as audiências. E regressa o paradoxo: por causa das audiências, morre a informação.

Se há algum paralelo que possa traçar para melhor se compreender onde está a justa medida do relacionamento entre a informação e as audiências, diria que a dualidade se assemelha a uns que comem para viver – e outros que vivem para comer.

É preciso ter audiências para justificar a informação. Mas as audiências não podem determinar a informação.

Como saber, então, o ponto exacto em que deve a informação conviver com a audiência e não ser dominada por ela? Não é fácil – e, contudo, é terrivelmente simples; basta manter a referência a estes dois parâmetros:

– o primeiro, a montante, sabendo distinguir produto de serviço;

– o segundo, a jusante, reconhecendo as finalidades últimas da informação livre.

A montante, isto é, no território do acto criador da informação, convirá que o jornalista saiba – e insista com o seu patrão – que aquilo que ele faz não é um produto, é um serviço.

É um serviço, desde logo, pelo rigor da definição das actividades económicas: trata-se de uma actividade não extractiva nem transformadora, mas terciária, logo, serviço. Mas é serviço pela diferença que faz de ser produto.

Num produto, o produtor orienta a sua atenção para os desejos do consumidor, propondo-se servi-los o melhor que pode e sabe. Certo produtor de sabonetes, nos Estados Unidos, quis saber qual o critério usado pelos compradores para escolherem entre as marcas à disposição nas prateleiras dos supermercados. Colocou discretas câmaras de filmar em diversos estabelecimentos e verificou que os compradores, quase invariavelmente, aproximavam os sabonetes do nariz e escolhiam-nos pelo aroma. Mandou então embrulhar os seus sabonetes em papel perfumado e parece que aumentou exponencialmente as vendas. Era um produto. Adaptou-o ao gosto ou aparência de gosto do freguês. E julgo que terá dormido sem remorsos.

Um serviço não cura de saber só quem o recebe, mas também quem o proporciona. Ou seja: «Dou-te o que julgo que te interessa, mas só te dou até ao ponto em que me sinto capaz de dar, sendo certo que estou a dar algo de mim.» É por isso que o pudor é uma categoria jornalística. Não estou a falar do pudor sexual ou beato: estou a falar do pudor de não se ser capaz de ir para lá de limites estabelecidos pelo espelho do carácter onde a gente de bem se revê. É possível que se tenha de descer até à sarjeta para recolher destroços sociais que mereçam atenção; mas há que não os remeter ao público com o cheiro da sarjeta. Há que colocá-los em ângulos onde possam receber a luz das estrelas, para parafrasear o que disse Oscar Wilde sobre jornais e sarjetas.

O outro limite, a jusante, tem a ver com as finalidades da informação em liberdade. Para que serve a informação em liberdade? O que é que deve informar-se em liberdade? Costumamos dizer que a informação livre é o conjunto dos elementos necessários para proporcionar aos cidadãos os meios para tomarem decisões responsáveis: decisões colectivas – como votar, por exemplo – ou individuais ou familiares – como as informações sanitárias, alimentares ou de higiene, entre outras.

O crivo é, então, a percepção que devemos ter sobre se determinada informação que proporcionamos ajuda ou não os destinatários a tomar decisões responsáveis; se os ajuda ou não a saber mais: mas não um saber de mera acumulação de registos ou imagens, antes um saber-substância, que nutre a capacidade do receptor para melhor se autodeterminar no contexto social.

Isto é ideológico? Claro que é ideológico, como ideológica é a suposta não escolha dos que se escravizam pelas audiências. Como super-ideológica é a ficção do jornalismo neutral, inteiramente ao serviço dos desejos do consumidor e por aí fora. Como adiante se provará.

Com estas duas balizas fixadas – informação como serviço e promoção da decisão responsável – podemos encontrar as duas patologias mais comuns do jornalismo: o jornalismo panfletário e o jornalismo sensacionalista.

São ambos formas exclamativas de jornalismo, um jornalismo gritado pelas manchetes ou pela emotividade dos registos vocais ou de imagem, mas não procedem os dois da mesma origem, nem têm a mesma natureza.

No jornalismo panfletário, o jornalista dá-se por inteiro no serviço de informar, mas parte de tantas certezas e reduz de tal modo o ângulo de focagem e a unilateralidade que em muito pouco contribui para a produção autónoma de decisões responsáveis por parte do receptor. O jornalismo panfletário fala para os já convencidos e pretende reforçar-lhes o argumentário e o ânimo, mais do que proporcionar o livre juízo e escolha. Mas tem de saudável, em contraponto com o jornalismo sensacionalista, o ser autêntico, sincero: o jornalista está inteiro na sua mensagem.

No jornalismo sensacionalista, o autor desdobra-se desonestamente em dois para oferecer um produto que não tem a ver com ele, mas com o público consumidor – ou um certo público consumidor. Colocando-se numa posição sobranceira em relação ao destinatário, o jornalista sensacionalista oferece não aquilo em que acredita mas aquilo que acha que o pagode quer receber. O jornalismo sensacionalista parte de uma concepção de desprezo pelo público, embora se enroupe de um servilismo muito vergado ao público. E isto traz uma intenção de fundo: não autorizar, ao público, qualquer voo mental que lhe permita tomar decisões responsáveis. Enredando o público na teia do fútil e do inútil elevados à categoria de essência do processo social, o jornalismo sensacionalista cumpre uma missão ideológica e política – a de neutralizar a capacidade de reacção popular autónoma, mantendo a opinião pública dominada à rédea curta para que a dominação se perpetue.

Jornalismo panfletário e jornalismo sensacionalista, ambos embaraçam ou impedem a tomada de decisões responsáveis por parte do público. Mas o panfletário, ao menos, parte de ideais; enquanto o sensacionalista age como jagunço ideológico das forças dominantes.

E, mais próximo no tempo, apareceu uma terceira patologia, decorrente das mega-empresas multimédia: o jornalismo sinergético, nome mais tecnocrático para o velho e relho jornalismo do patrão, como contraposição ao jornalismo dos jornalistas.

E o que é o jornalismo sinergético – ou sinérgico, se preferirem? Sinergia, amigos!, essa é a palavra de ordem multimédia: é a estratégia de fazer repercutir, em vários média, o que é produzido por um deles. Numa primeira fase, pareceu simpático – afora o discreto surripiar dos direitos de autor… Tratava-se de aumentar a dimensão da mensagem jornalística. Mas bem depressa se percebeu que a ideia dos proprietários tinha pouco a ver com tal filantropia cultural. Não. O que se pretende, essencialmente, é mobilizar o poder de credibilidade da estrutura jornalística para promover os produtos de entretenimento que, por sua vez, são os melhores caçadores de receitas publicitárias.

Alguém de bom-senso deveria dizer aos patrões que pôr o jornalismo das suas empresas ao serviço da promoção do entretenimento é, a médio prazo matar a galinha dos ovos de oiro, porque é invariavelmente a estrutura jornalística que dá respeitabilidade a uma unidade multimédia. Mas deve ser ocioso: o patronato mediático português raciocina sempre com uma sofreguidão verdadeiramente antediluviana.

Assistimos, por isso, a esta viscosa interpenetração do jornalismo com a publicidade e a promoção, quando as edições on-line de jornais já não servem só para dar notícias mas essencialmente para dar meias-notícias e mandar o público comprar a edição em papel; ou quando as transmissões de espectáculos desportivos, nas televisões – feitas ao abrigo do direito à informação – deixam de apresentar o oráculo com o tempo e resultado, para – imaginem! – fidelizar os telespectadores, impedindo-os de mudar de canal, à espera de saberem quantos há! Fidelizar – ouçam bem! – é a palavra usada por jornalistas para justificar uma infidelidade ao seu dever de informar! Escravizar – é o que é. Agrilhoar, manietar, prender. Tudo menos fidelizar. A informação fideliza pela sua qualidade e transparência, não por truques de prestidigitador de feira.

Mas a sinergia chega aos píncaros quando o multimédia cria, primeiro, um evento – a que eu deveria chamar pseudíssmo-evento, para não se confundir com o conceito de pseudo-evento que deu a Daniel Boorstin tanto trabalho a criar… – produz um evento, dizia, e logo a seguir manda a informação cobri-lo, a pretexto de que é um facto, portanto, notícia. Sobre se isso ajuda ou não as pessoas a tomar decisões responsáveis, nada se diz, claro. Facto é facto, simplesmente facto – dê-se notícia. A recente transmissão em directo, num telejornal, do jantar de reencontro de dois participantes do Big Brother, obviamente pago pela estação televisiva, é exemplar sobre a ausência de limite do que pode ser notícia, quando o critério editorial é a escravidão aos factos, mesmo que os factos sejam forjados.

E ainda há mais neste atrelar dos jornalistas ao espectáculo: sabida a vocação frustrada de entertainers ou apresentadores de espectáculos de alguns jornalistas de televisão, não é difícil colocá-los no papel de coreógrafos de pandilhas a fazerem de conta que são notícia. Nesse mesmo telejornal, uns estudantes de Coimbra faziam um sit-in de protesto. Pois o repórter logo se apressou a ali colher opiniões sobre – os últimos acontecimentos no Big Brother! E não é que os estudantes responderam, entusiasmadamente, às perguntas – e se marimbaram nos motivos da sua própria luta? Se alguém queria um exemplo do que é uma definição ao vivo de «alienação», guarde para sempre essa cena. Que ainda por cima terminou com a estudantada – com uma impressionante taxa de serradura na cabeça – a terminar o directo com um coro de «a TVI em Coimbra»! Ai que giro!

Este jornalismo sinergético, doentio, é um cancro terrível que em muito pouco tempo descredibilizará a informação: o que se passou nesta campanha eleitoral para a direcção do Benfica nas televisões privadas – e dizem-me que em jornais desportivos, mas esses não acompanhei – é demonstrativo de quão baixo pode descer o jornalismo quando se põe ao serviço dos interesses empresariais do grupo do patrão.

O jornalismo português tem a rara felicidade de dispor de um conjunto de leis que garantem uma clara separação entre o decisor editorial e o decisor económico num órgão de informação. Ou seja, o quadro legal permite que, em Portugal, se faça o jornalismo dos jornalistas, ao serviço do público, e não o jornalismo do patrão, ao serviço dos interesses colaterais do empregador.

Basta, para isso, que os directores e os conselhos de redacção tenham respeito por si próprios, dignidade – e uma pontinha de coragem.

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