Ética, auto-regulação e deontologia

O presidente do Sindicato dos Jornalistas, Alfredo Maia, participou no 9.º Congresso da Imprensa Portuguesa, que se realizou em Newark entre 24 e 28 de Abril de 2001. Nessa oportunidade apresentou uma comunicação subordinada ao título «Comunicação responsável: ética, auto-regulação e deontologia».

O 9.º Congresso da Imprensa Portuguesa ocorre numa época e num contexto de profundas alterações no sector da Comunicação Social, ao qual não é imune a Imprensa e cujo alcance e consequências – pelo menos a prazo – não podemos medir hoje nem estimar sem uma margem razoável de erro.

Mas há seguramente razões para recear que o Jornalismo, tal como o conhecemos no passado e o podemos reconhecer, ainda hoje, corre sério risco de extinguir-se, condenando-se a constituir, dentro de alguns anos um exercício mais ou menos diletante reservado a um grupo de pessoas que teimarão em chamar-se jornalistas, dirigindo-se a um grupo residual de leitores.

O Jornalismo, tal como o concebemos, isto é, como instrumento de mediação ou plataforma de cidadania, corre o risco de soçobrar sob a implacável dominação da nova indústria de conteúdos e de uma comunicação de massas mais persuasiva e mais arrogante.

Trata-se de mudanças cuja velocidade e determinação deixam aos seus actores – poderemos dizer também fautores? – reduzido espaço de reflexão, para que nenhum processo dialéctico induza a mais leve tentação de propor um caminho diferente, ao menos uma paragem breve.

Somos actores – e porventura fautores – de um tempo que assiste ao confronto de três lógicas, havendo razões sérias para recear que uma delas venha a sofrer tão intensos e prolongados reveses que há-de quedar-se, vencida, aos pés de duas contendoras poderosas e aparentemente imbatíveis.

Trata-se da lógica da informação; da lógica da infra-estrutura; e da lógica do capital financeiro.

A lógica da informação acredita no interesse do público, no respeito do direito do público a ser informado, balizada pelo direito-dever do jornalista de informar, de ser o mediador, de colher os factos com honestidade e renovado esforço de rigor e servi-los como obra de interpretação sem dúvida condicionada pelos crivos da subjectividade, mas perseguindo esse valor último do amor à verdade.

O objectivo da informação pela informação é habilitar o cidadão ao exercício pleno da cidadania, permitindo-lhe cotejar pontos de vista, enquadrar opções, ponderar valores. Tudo isto, porém, condicionado por um conjunto de normas e valores morais que integram as referências éticas da profissão, assim como pelo código de conduta e boas práticas profissionais que interpela a consciência dos jornalistas.

A lógica da infra-estrutura, apostada na rentabilização dos meios e das imensas e diversificadas possibilidades disponibilizadas pela tecnologia, não cessa de surpreender mesmo os mais actualizados leitores de catálogos de novidades de telecomunicações e cibernâutica. Indiferente a padrões éticos ou a escrúpulos deontológicos, a infra-estrutura tem por objectivo auto-justificar-se, exibindo o seu potencial, preenchendo o seu potencial, disponibilizando conteúdos múltiplos – o que quer que isto seja.

A lógica do capital financeiro visa a remuneração do investimento – tão rápida e tão reprodutivamente quanto possível. Mais indiferente ainda às inquietações deontológicas que acaso assaltem os jornalistas, exige que a infra-estrutura justifique o investimento e opere os prodígios de multiplicação expectáveis, oferecendo ao público a panóplia imensa de conteúdos de fácil digestão.

Reclama-se coisas leves, agradáveis, que entretenham. E que vendam bem, que não sejam maçadoras, porque complicada que baste já é a vida, a família e o emprego.

É então que entra a infra-estrutura. O seu papel é fazer-nos crer que a era dos jornais sérios, com textos aprofundados, sólidos, ponderados, enfim credíveis, é inconciliável com a gramática da facilidade ociosa exigida pelos consumidores e que a informação só é necessária em doses quanto baste para credibilizar, pelo menos transitoriamente, enquanto o consumidor não está adormecido, a bandeja de superficialidades – e muitas vezes de futilidades – que os media devem servir.

O seu papel é uniformizar a linguagem, o formato, o estilo, conformá-los com as exigências saltitantes, adequá-los à multiplicação do seu uso – ora noutras edições de papel, ora repetindo quase exponencialmente a edição dos mesmos materiais em suportes digitais. Mesmo aqueles que não são pertença do mesmo grupo.

Falemos claro, senhores editores de jornais e revistas. O caminho que levamos pode conduzir-nos a um beco sem saída, pulverizando o que de mais importante tinham – e ainda continuam a ter – os jornais e revistas: a identidade.

No passado, os media poderiam partilhar o mercado da publicidade, mas afirmavam-se e distinguiam-se pelas notícias, pelos artigos, pelas crónicas, pelas fotografias, por um enfoque vincado, por um estilo marcante, por uma opção editorial distintiva, pela dimensão renomada dos seus cronistas, pela tinta indelével de algumas das suas prestigiadas assinaturas.

Associávamos a um título uma pléiade inclonável de jornalistas e colaboradores; reconhecíamos num jornal, numa revista, uma identidade irrepetível e sabíamos que jornalistas e outros colaboradores e editores comungavam um desígnio irrenunciável: a autonomia.

Hoje, nada disto é seguro.

Hoje, não só mantêm, muitas vezes, uma agenda em circuito fechado – cobrindo cada um os mesmos temas que o confrade ou seguindo-lhe mais ou menos discretamente na peugada, se houve lugar a cacha – mas também começam a partilhar mais o estilo, os temas, os enfoques, até os textos, imagens e desenhos – totais ou parciais – mesmo as crónicas e artigos de opinião.

Mas distinguem-se nas promoções comerciais, nos serviços que disponibilizam. Sinergias, argumentarão vossas excelências, que certamente saberão mais do negócio do que este vosso modesto convidado.

E há aqueles que são repetidos – total ou parcialmente -, não por um, mas por vários sítios ou mesmo portais e motores de busca na Internet. Questão de oportunidades da Nova Economia, aduzirão vossas excelências, que certamente já estudaram a magna questão dos resultados financeiros e não quererão perdê-las, e saberão desses negócios seguramente muito mais do que este orador, ainda por cima mais votado a preocupações sindicais.

Naveguemos, um pouco, porém.

São 14.20 horas do dia 24 de Abril de 2001.

Começamos pelo motor de busca sapo.pt. Entre a panóplia de serviços e canais colocados à nossa disposição, salta à vista o serviço de destaques noticiosos (além do botão discreto para as notícias). Que nos dizem as notícias do destaque? Falam-nos das conclusões das inspecções veterinárias da União Europeia; anunciam a campanha de sensibilização para a segurança de edifícios; são o eco das reflexões do Conselho de Reitores… e por aí fora. As notícias têm origem sobretudo na TSF

Clicamos agora o portal lusomundo.net. O que encontramos aqui? As notícias da… TSF, acrescidas de outras do JN e outras do DN e da reprodução de artigos de opinião destes dois periódicos…

Vamos agora ao portal iol.pt. Por exemplo: notícias económicas. Mas são as mesmas que encontramos no sapo.pt! Pertencem ao Diário Ecomómico…

Como a coisa se repete, procuremos a variedade.

Vamos ao sítio portugalmail.pt. O que nos oferece ele? Surpresa! Outra vez em destaque notícias da TSF (agora, uma peça sobre o êxito da venda de bolsas anti-radições para telemóveis, igualmente consultável em tsf.online.pt); o jogo entre o Belenenses e o Farense visto pelo Público e o aumento da bandeirada dos táxis contado pelo Correio da Manhã. Segue-se a secção de Ciência, a de Economia, Internacional, Desporto, Política, Saúde, etc. Como se fosse um jornal – mesmo um jornal online – mas abastecido por outros jornais, com a colagem electrónica de notícias originárias do Correio da Manhã, do Diário de Notícias, do Jornal de Notícias, da TVI, do Diário Digital, do Público…

Público que se repete, já não apenas no seu próprio sítio, mas também no portal clix.pt

E tudo isto à borlix no que diz respeito aos direitos de autor dos jornalistas, que têm custado nix e são reutilizados sem a autorização prévia dos respectivos autores. Mas isto é outra conversa e se o tempo o permitir lá iremos.

Há, neste negócio da informação na Nova Economia, uma questão que nos assalta: a do seu verdadeiro papel.

Vocacionado para disponibilizar serviços, publicidade e promoções, um motor de busca ou um portal pretende fixar o mais possível os seus utilizadores, evitar que saltem para outro. De passagem, como parte do princípio que o utilizador gosta de manter-se informado mas não tem tempo para ler jornais, oferece-lhe notícias. Estas, se forem provenientes de órgãos de informação prestigiados e credíveis, representam uma mais-valia em termos de credibilidade.

Por sua vez, os órgãos de informação que as fornecem procurarão neste processo alguma divulgação para os seus suportes – original de papel, mas também os seus próprios sítios na Internet. Ainda que a prazo possam vir a estar em desvantagem… o que coloca o problema de como gerir este equilíbrio entre os interesses comerciais próprios e a relação comercial com os portais ou motores de busca aos quais vendem serviços noticiosos.

Mas há seguramente outros problemas, bem mais graves, que esta questão suscita.

O primeiro tem a ver com a própria credibilidade da informação, quando se assiste a uma prosmíscua confusão entre informação e entretenimento ou entre informação e promoção ou mesmo publicidade, cada vez mais difícil de distinguir em alguns sítios e portais.

Trata-se de uma matéria que os senhores congressistas – editores de jornais e revistas – bem conhecem, até pela experiência de distribuição, nas vossas publicações, de encartes de natureza estritamente comercial (promocional e publicitária), estando por isso compenetrados da importância, para a credibilidade dos órgãos de informação que representam, da distinção clara entre uma coisa e outra.

Outro problema tem a ver com a própria noção de informação e a convicção, que porventura partilhamos todos nesta sala, de que as notícias não podem ser uma mercadoria vendável a retalho e realinháveis ao gosto ou ao critério de quem se propõe ser gestor de conteúdos – o que quer que isto seja…

É que nem sequer estamos a falar da possibilidade de facultar ao leitor um qualquer processo de auto-edição, através do qual ele possa seleccionar do conjunto dos media as notícias da sua preferência, coligi-las e hierarquizá-las conforme os seus critérios.

O que estamos a permitir é que alguém – um responsável editorial na melhor das hipóteses, mas por vezes um director de marketing – se aproprie de um conjunto de criações jornalísticas, produzidas não só à luz de critérios jornalísticos e baiadas por normas deontológicas estritas, mas também realizadas sob a disciplina do estatuto editorial das empresas e a orientação dos directores por estas nomeados e que são da sua confiança.

Estamos a permitir que alguém, que não está sob a alçada do poder disciplinar das empresas, nem da orientação do seu estatuto editorial, nem comunga a sua história e a sua cultura, se aproprie do trabalho destas e dê às suas criações um novo alinhamento, uma nova configuração, seguindo critérios que podem até ser bem distintos dos que presidiram à orientação original.

É caso para perguntar se os senhores proprietários de jornais e revistas estarão dispostos a renunciar assim à soberania editorial que lhes cabe por direito, mas também por dever ante as leis e a Constitição. Estamos em crer que o não farão.

Outro problema sério é o envolvimento de terceiros nas responsabilidades perante as fontes de informação, as pessoas e entidades objecto do trabalho jornalístico e o publico em geral, que só devem onerar os jornalistas e as empresas para as quais estes trabalham.

E não falamos apenas da questão da responsabilidade civil e criminal que pode recair também sobre os detentores de suportes digitais ou mesmo outras publicações impressas que reproduzem trabalhos jornalísticos que venham a ser objecto de demanda judicial.

Nem somente da questão do instituto do direito de resposta, que não só obriga legamente as empresas e os autores dos trabalhos respondidos, mas também compromete deontologicamente estes, uma vez que é seu dever promover a pronta rectificação de informações erróneas ou inexactas.

Como proteger, num quadro de difusão tão multiplicada de trabalhos jornalísticos, os direitos dos ofendidos? Como assegurar a solidariedade devida por todos na responsabilização que um Estado de Direito evidentemente impõe e que todos nós devemos respeitar, tratando-se, como se trata, de um sector que tem a missão histórica e constitucional de o defender?

Mas queremos falar especialmente de um indeclinável contrato de confiança que se estabelece entre os jornalistas e as fontes de informação, o qual, de tão pessoal e intransmissível, jamais poderá aceitar a intrusão de um terceiro agente no processo de recolha, tratamento e difusão de informação.

Eis uma razão pela qual a questão dos direitos de autor que o Sindicato dos Jornalistas tem procurado manter na ordem do dia não representa um qualquer capricho corporativo, mas sim um instrumento que visa, antes de mais, garantir o pleno exercício da responsabilidade destes profissionais perante o público e as fontes de informação.

Por maior ou menor prestígio ou tiragem que um órgão de informação goze, o onus da confiança que a fonte deposita no processo informativo não recai nele, mas sim – imediata e irrenunciavelmente – sobre o jornalista.

Ao mesmo tempo, a fonte e o público têm consciência de que o mesmo jornalista recolhe a confiança de um colectivo em que se integra, que este colectivo é um ente identificável, com um rosto institucional, uma morada certa, uma história, um prestígio, coordenadas estas que são sufragáveis pela opinião pública e, desde logo, pelo mercado.

Não se elabore um raciocínio maquiavélico estabelecendo que o que interessará às fontes é a difusão o mais ampla possível das suas declarações, das suas preocupações ou das suas ideias. Não tratemos mal as fontes nem lhes passemos um atestado de menoridade cívica ou intelectual: elas sabem que a credibilidade das suas palavras, das suas preocupações e das suas ideias depende em boa parte da credibilidade do órgão de informação que as veicula.

(E esperam que o tratamento jornalístico, mau grado o esforço de síntese e contextualização que sempre se impõe, há-de respeitar o essencial das suas palavras, ideias e propostas. Garantia esta que não oferecem os processos de multiplicação da difusão que, por razões de espaço ou estilo, diminuem a peça original ou a reescrevem, com o risco óbvio de, à força de tanto sintetizar, conduzir a interpretações erradas e a descontextualizações inaceitáveis… )

Ora, a difusão multiplicada e «a granel» de notícias, crónicas, fotos e desenhos não só vulgariza estes materiais – e os senhores empresários lá saberão os efeitos comerciais que a vulgarização induzirá a prazo – como também torna difusa e volátil a responsabilidade do jornalista perante o público e as fontes.

Pela nossa parte, queremos afirmar que temos no nosso Código Deontológico, mais do que um instrumento normativo, é uma interpelação permanente às nossas consciências e uma garantia essencial que prestamos ao público que todos os dias renova o seu mandato de confiança.

Não temos uma posição fechada nem cristalizámos as nossas convicções, quer relativamente às formas de aprofundar, entre a classe, a consciencialização para os problemas da deontologia profissional, quer sobre a evolução eventual das formas de enquadrar a reflexão sobre estes e de a aplicar ao concreto do nosso quotidiano.

Sem prejuízo de considerarmos que a ética e a deontologia profissionais constituem matérias da reserva dos jornalistas, assim como do propósito que temos de manter, na orgânica do nosso Sindicato, um órgão especificamente dedicado a esta área, já manifestámos abertura para construir um forum de reflexão que comprometa igualmente outras entidades.

A AIND-Associação Portuguesa de Imprensa propõe ao debate a criação de uma comissão de ética e a adopção de um código de ética para os profissionais de imprensa. E que discutamos instâncias de auto-regulação.

É uma proposta respeitável e sem dúvida que há-de ter pés para andar.

Se querem fazer valer a ideia de que nem os jornalistas nem os empresários aceitam ser triturados por uma nova ordem da comunicação que coloca a mercantilização da informação à margem de escrúpulos e preocupações éticos e deontológicos, as nossas organizações estão condenadas a estabelecer um compromisso e a caminhar lado a lado.

Mas o caminho faz-se caminhando, constrói-se no conhecimento mútuo, no reconhecimento das autonomias e no estabelecimento de pontes de ligação. E não tem necessariamente de seguir um traçado pré-determinado ou alcançar um destino definitivo.

Sem arrogância vos dizemos que, pela nossa parte, já percorremos uma etapa. Já temos um Código Deontológico; já temos sedimentada reflexão sobre os escolhos que nos assaltam ao caminho; somos capazes de alargar os horizontes da nossa análise, de compreender que não estamos sós nem no mundo nem no sector; já demonstrámos repetidas vezes que não estamos cativos de compromissos corporativos nem nos reivindicamos crisálidas eternas.

Haverá, porém, etapas a cumprir pela parte das empresas. Como primeiro passo, seria bom corrigir muitos comportamentos que criam condições objectivas para colocar em crise qualquer compromisso dentológico – seja dos jornalistas individualmente considerados, seja das empresas. Falamos em concreto da desregulação das relações de trabalho e em particular da precariedade.

Seria bom igualmente que as associações empresariais do sector se entendessem sobre a necessidade de um código deontológico das empresas jornalísticas, estabelecessem as regras e os modelos da sua própria auto-regulação permanente, interessada e empenhada e não episódica, interesseira e penhorada às audiências, como bem recentemente tivemos triste exemplo, proporcionado pelo acidente de Entre-os-Rios.

Cumprida esta etapa, ou mesmo de passagem, poderemos ir amadurecendo processos de entendimento mútuo sobre os importantes problemas que o quotidiano nos coloca; poderemos aprofundar o conhecimento das idiossincrasias dos representados de cada uma das partes, dos problemas e constrangimentos que a acção concreta suscita.

Depois – se lá chegarmos e se lá tivermos de chegar -, nos entenderemos sobre o modelo e o conteúdo de um qualquer dispositivo que regulará – ou não – a nossa actividade comum – a informação. Se, nessa altura, ainda houver informação.

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