Estatuto do Jornalista e desafios aos deputados

O presidente da Direcção do Sindicato dos Jornalistas, Alfredo Maia, publicou na edição de 12 de Outubro do “Público” um artigo intitulado “Estatuto do Jornalista e desafios aos deputados”, no qual rebate as considerações que o deputado do PS Arons de Carvalho fizera em artigo publicado no mesmo jornal, em 30 de Setembro. O artigo de Alfredo Maia transcreve-se a seguir e o de Arons de Carvalho está em ficheiro anexo.

Estatuto do Jornalista e desafios aos deputados

O deputado Alberto Arons de Carvalho assinou, na edição do “Público” de 30 de Setembro, um artigo – “Os direitos dos jornalistas no novo Estatuto” – que justifica vários comentários e esclarecimentos.

Portugal é um dos países que mais garantem a liberdade de Imprensa devido às garantias que a Constituição da República consagra e que o Estatuto do Jornalista (EJ) e outras leis do sector regulam. Para a versão actual do EJ contribuiu o mérito de Arons de Carvalho, secretário de Estado da Comunicação Social à data da sua revisão (1988, com publicação em 3 de Janeiro de 99).

Importa recordá-lo, pelo tributo que Arons de Carvalho merece e para sublinhar a contradição em que cai ao defender, em desespero de causa que não é a sua, uma proposta que representa um retrocesso em relação ao EJ e um incompreensível recuo face ao projecto de lei de regulamentação dos direitos de autor que, enquanto deputado, apresentou há três anos.

O que mais incomoda Arons de Carvalho é o apelo proposto pelo Sindicato dos Jornalistas já subscrito por um número significativo de jornalistas e outros criadores, contra a violação do direito à criação e à liberdade de expressão e o assalto aos seus direitos de autor. Apesar de o próprio ter reconhecido que, em matéria de direitos de autor, a proposta do Governo é mais recuada do que o projecto apresentado pelo PS nas duas anteriores legislaturas…

Arons de Carvalho argumenta que o sector e o mercado mudaram. Esquece que o EJ por si elaborado e o projecto de lei por si subscrito já respondiam às mudanças já então em curso e que são essencialmente as mesmas. O que mudou desde então foi a capacidade de persuasão das empresas e a permeabilidade do poder político ao poder económico!

Pretende convencer-nos de que o regime de direito de autor dos jornalistas proposto é o melhor que se poderia conceber. Não é, e ele próprio elaborara um projecto realmente positivo. Argumenta que se contempla uma remuneração autónoma pela reutilização de obras protegidas. Mas omite que, no caso dos jornalistas assalariados, a empresa é dona plena dos trabalhos pelo período de 30 dias e nada mais necessita além de pagar-lhes o salário. Dado o valor imediato do trabalho jornalístico, as empresas querem dispor dele gratuitamente para replicá-lo em todos os meios que possuam.

Depois desse período, o que fica realmente protegido? Os trabalhos que possam ser republicados em colectâneas, por exemplo. Está longe de contrabalançar o esbulho e o risco de inúmeros jornalistas serem despedidos, por desnecessários em muitas redacções, prejudicando o pluralismo informativo e condenando os cidadãos à redução da diversidade informativa e à extinção da individualidade dos órgãos de informação.

Arons de Carvalho acusa o SJ de omitir a norma que estabelece a regra geral que “os jornalistas têm o direito de se opor a toda e qualquer modificação que desvirtue as suas obras ou que possa afectar o seu bom nome ou reputação”. Esta condiciona, diz, a disposição contestada pelo Sindicato, que estabelece que “os jornalistas não podem opor-se a modificações formais introduzidas nas suas obras por jornalistas que desempenhem funções como seus superiores hierárquicos na mesma estrutura da redacção, designadamente as ditadas por necessidades de dimensionamento, correcção linguística ou adequação ao estilo do respectivo órgão de comunicação social”.

A garantia invocada parece inabalável. Mas, logo a seguir, é praticamente esvaziada, conferindo-se aos superiores hierárquicos o direito de livre modificação (“modificações formais”). Não está em causa a necessidade de correcção linguística nem a legis artis (tácita e solidária) estabelecida nas redacções, que tolera “mexidas” para precisão de ideias ou dimensionamento urgente que já não possam ser feitas na presença do autor. Mas a consagração em lei desse direito de modificação (mesmo com o autor presente!) e a vastidão de justificações que a forma “designadamente” introduz não pode ser aceite, pois abre a porta para tudo – até para cortar o que não agrade…

Arons de Carvalho diz que o SJ omite a possibilidade de os autores recusarem associar o seu nome a trabalhos “em cuja redacção final não se reconheçam ou que não mereça a sua concordância”. Basta consultar o site do SJ para verificar que este nada esconde. De resto, tal arremedo de salvaguarda (o direito de retirada do nome), em vez de protecção implicará para o jornalista sérios e inevitáveis prejuízos: perde o seu direito de autor, fica descredibilizado perante as suas fontes, não afasta a eventual responsabilidade civil ou criminal e empurra-o para a violação do dever deontológico de assumir a responsabilidade por todos os seus actos. Alias, se a alteração pode ser feita à revelia do jornalista, como é que poderá este exigir a retirada do seu nome quando tome conta da modificação depois de publicado o trabalho modificado?!

Arons de Carvalho acusa o SJ de omitir o “facto” de que “a produção dos conteúdos jornalísticos de um órgão de comunicação social não consiste na simples soma de contributos completamente individualizados”. De forma mais explícita, dois deputados do PSD defendem não há, no jornalismo, criadores individuais, pois os jornalistas fazem parte de um processo de criação de uma obra colectiva, a qual, por sua vez, é pertença exclusiva da empresa.

Tais posições dão cobertura plena às pretensões do patronato de transformar os jornalistas em meros produtores anónimos de conteúdos numa linha de montagem e omitem, isso sim, a realidade ao alcance do público: não sendo uma mera justaposição de contribuições individuais e obedecendo a orientações e opções que dão coerência à obra colectiva (a edição), esta expõe de forma clara as aptidões, capacidades e ângulos de visão singulares dos seus jornalistas, reconhecendo em cada um deles um ente concreto e irrepetível.

O público tem mais ou menos apreço pelo trabalho colectivo deste ou daquele órgão de informação; mas não deixa de fazer um juízo sobre o desempenho individual dos jornalistas. O próprio patronato o reconhece, ao argumentar, tantas vezes, que disputa este ou aquele profissional à concorrência porque lhe dá garantias de trazer leitores!

Se Arons de Carvalho, Agostinho Branquinho e Luís Campos Ferreira persistirem nas suas posições, devem propor a eliminação das normas da proposta de Lei que criam um regime disciplinar para os jornalistas e alterações aos regimes de responsabilização civil e criminal pelos seus trabalhos.

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