Código do Trabalho agravará situação do jornalismo

A aprovação do Código do Trabalho acentuará a crescente degradação das condições de produção nos média e a perda de direitos e da autonomia dos jornalistas, afirmou o presidente do Sindicato dos Jornalistas (SJ), Alfredo Maia, no Colóquio Interprofissional “Os Média e a Justiça”, onde anunciou o lançamento, pelo SJ, de um abaixo-assinado dirigido à Assembleia da República.

Para Alfredo Maia, “os jornalistas enfrentam hoje sérios constrangimentos ao desempenho livre e responsável da sua actividade”, resultantes da transformação da informação em negócio. Um processo que hoje se traduz num “verdadeiro condicionamento económico da liberdade de expressão e de negação da autonomia editorial dos jornalistas.”

Falando na sessão de abertura do colóquio, que decorre este sábado, 30 de Novembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, Alfredo Maia realçou que “estamos a assistir a uma ofensiva sem precedentes, que atinge centenas de jornalistas e outros trabalhadores em duas dezenas de empresas, visando forçar a rescisão dos seus contratos de trabalho através de métodos de coacção psicológica e de violentação da dignidade pessoal e profissional, que deveria cobrir de vergonha os seus autores”, acrescentando que a aprovação do Código de Trabalho acentuará a perda de direitos e de autonomia dos jornalistas.

Estas preocupações levaram o SJ a lançar um abaixo-assinado, alertando a Assembleia da República para a situação.

O Código do Trabalho agravará a precariedade do emprego para os trabalhadores mais jovens, ao mesmo tempo que “institucionaliza a precariedade dos trabalhadores que ocupam funções de direcção e outros cargos de confiança.”, afirmou o presidente do SJ, acrescentando que “isso significa que a independência económica, que é uma condição essencial à afirmação da independência dos jornalistas e garantia de não subordinação a estratégias estranhas à sua autonomia editorial, fica objectivamente comprometida”.

Por outro lado, afirmou, “entre outras graves consequências, a actual proposta de Lei pretende legitimar práticas, que tentam já instalar-se no terreno, de alargar a prestação de trabalho às empresas pertencentes ao mesmo grupo económico ou ao mesmo universo empresarial.”

Para o presidente do SJ, a legitimação dessa prática tem consequências graves “para o próprio regime democrático e com prejuízo sério de uma das garantias essenciais e estruturantes do Estatuto do Jornalista que é a cláusula de consciência”.

“Pela nossa parte, podemos assumir um compromisso claro: o de que, apesar das condições em que realizamos o nosso trabalho, nos esforçaremos por preservar a soberania do jornalismo face à ditadura do mercado, e procuraremos afirmar os deveres não obstante a fragilidade dos direitos”, afirmou.

Alfredo Maia abordou ainda a questão do sigilo profissional, reiterando que a protecção das fontes confidenciais “não é um privilégio de casta atribuído à margem do interesse colectivo”, mas “um indeclinável dever de profissional que, além de preservar a independência e a credibilidade dos jornalistas, visa garantir ao público que as informações disponibilizadas foram obtidas num quadro de liberdade e de responsabilidade.”

É o seguinte o texto integral da intervenção de Alfredo Maia no Colóquio Interprofissional “Os Média e a Justiça”:

“Há cerca de um ano, corria em Aveiro o Congresso dos Juízes Portugueses, vários jornalistas telefonaram-me pedindo comentários a críticas do momento.

“Que alguns senhores juízes produziam críticas severas ao comportamento dos média e propunham até um organismo disciplinar independente para punir jornalistas – relataram.

“Respondi:

– que a actividade dos média e dos jornalistas não é isenta de crítica;

– que a actividade dos jornalistas se encontra condicionada pela existência de uma relação de trabalho subordinado;

– que as condições de concorrência entre órgãos de informação e, em geral, a subordinação a regras de um mercado desregulado estão na origem de alguns comportamentos nem sempre aceitáveis e, sobretudo, de algumas cedências muitas vezes incompreensíveis;

– que as condições de trabalho em que os jornalistas realizam todos os dias o seu trabalho, traduzidas numa grande precariedade – de vínculo contratual, mas também de garantias salariais – são responsáveis pela degradação da capacidade de resistir às ofensivas da desregulação;

– que as condições de produção dos média exigem uma séria e consequente reflexão que não pode nem deve circunscrever-se a um reduto corporativo, antes apela a um esforço de análise multidisciplinar e multiprofissional, sem isentar de responsabilidades os poderes;

– que, enfim, antes – muito antes – de seguir a via punitiva então proposta, conviria atender à realidade, fincar os pés no chão, sentir a aspereza do solo e defrontar a dificuldade dos obstáculos;

– que, por conseguinte, nos propunhamos avançar com uma iniciativa que permitisse realizar trabalho conjunto – um trabalho essencial para que nos compreendêssemos melhor começando por conhecer os papéis de cada um, os problemas do exercício da sua actividade, os constrangimentos endógenos e exógenos, porventura os pontos de tensão e as suas explicações no relacionamento interprofissional.

“Quase um ano volvido, aqui estamos todos juntos – jornalistas, magistrados do Ministério Público, juízes, advogados, funcionários judiciais – a realizar o que designamos por «Colóquio Interprofissional Os Média e a Justiça» e para o qual foram convidados estudantes e professores de jornalismo e comunicação social, cuja presença saúdo.

“Se uma missão essencial da Universidade é ensinar o cidadão a pensar, a apetrechar-se para exercer com qualidade e exigência de rigor a sua cidadania plena, qualquer que venha a ser a sua ocupação, a abertura de reuniões como esta aos estudantes constitui uma oportunidade de abordagem antecipada, e enriquecedora, a problemas concretos que não lhes são alheios, mesmo que não venham a integrar o corpo de matérias ou de preocupações próprio do seu múnus profissional.

“Pela nossa parte, estamos igualmente disponíveis para cooperar com a Universidade, oferecendo a nossa experiência e a vasta reflexão sobre os temas e problemas do exercício da nossa profissão como campo de trabalho, designadamente através da realização de seminários ou workshops dedicados à futura inserção profissional.

“O formato do encontro de hoje é claro: trata-se de um diálogo entre profissões distintas, dotadas das respectivas regras específicas, balizadas por fronteiras de competências e objectivos bem claros, subordinadas a normas concretas e a disciplinas que não podem transgredir, mas que perseguem seguramente um objectivo comum – o de velar pelo escrupuloso respeito pela dignidade da pessoa humana.

“O respeito pela dignidade humana, com o que isso significa de resistência à erosão dos direitos das pessoas pela acção de múltiplos agentes e de luta constante da sua afirmação e melhoria, é um valor estruturante da cidadania sem o qual a nossa vida não teria sentido.

“Por isso, encaramos a promoção e a defesa dos direitos das pessoas como norma essencial da nossa actividade, mas também, no que aos jornalistas diz respeito, como condição indispensável para que esta profissão alcance o seu objectivo fundamental de promover a informação livre e plural que habilite os cidadãos a formar a sua opinião, a decidir e a agir.

“Não há sociedades livres sem homens livres, assim como não há jornalismo verdadeiramente livre com jornalistas privados de direitos ou de alguma forma compelidos a renunciar a direitos e garantias.

“Também não há informação eticamente responsável e civicamente consequente se não assentar em direitos e na dignidade dos que a realizam, pois são o suporte do mandato de confiança que o público quotidianamente renova.

“Submetidos ao rolo compressor da concorrência desenfreada e do apetite voraz do lucro a todo o custo, os jornalistas estão hoje confrontados com um equívoco perigoso mas partilhado até por alguns deles: o de que a Informação é um negócio como outro qualquer, destinado a alcançar públicos-alvo (targets, como preferem chamar-lhe na gíria da moderna gestão) e que os jornais (ou os «produtos», como lhes chamam agora) devem ser concebidos e realizados segundo os interesses do mercado.

“Como nos diz Carlos Camponez, no seu recente «Jornalismo de Proximidade»: «À força de insistir, nos anos 80, que a imprensa era uma empresa como tantas outras, alguns pensaram em transformar o jornalismo num produto o mais parecido possível com os restantes, submetido a idênticas formas de marketing e explorando formas específicas de proximidade com os públicos. Resultado: ligeireza, choque, agradabilidade, futilidade…»

“A expectativa do lucro, o mais gordo e o mais rápido possível, está a justificar tudo e parece legitimar tudo – até as cedências – confrontando-nos com os problemas da adequação do jornalismo ao mercado, da informação como negócio, como meio de credibilização de certos negócios, ou como mero suporte à distribuição de coleccionáveis e cutelarias, ainda que sob a justificação de que se destinam a captar e a fidelizar público.

“Coisificados como peças da engrenagem financeira que comanda as empresas numa lógica estranha à função social fundamental da Comunicação Social, conforme decorre da Constituição da República Portuguesa e teimamos em pretender alcançar, os jornalistas enfrentam hoje sérios constrangimentos ao desempenho livre e responsável da sua actividade.

“A precariedade do vínculo laboral e do próprio salário, a profunda desregulação das relações de trabalho e a renúncia – imposta ou tacitamente aceite – a direitos essenciais constituem instrumentos de verdadeiro condicionamento económico da liberdade de expressão e de negação da autonomia editorial dos jornalistas.

“Neste contexto, estamos a assistir a uma ofensiva sem precedentes, que atinge centenas de jornalistas e outros trabalhadores em duas dezenas de empresas, visando forçar a rescisão dos seus contratos de trabalho através de métodos de coacção psicológica e de violentação da dignidade pessoal e profissional, que deveria cobrir de vergonha os seus autores e a quem a tal assiste sem qualquer reacção ou condenação.

“A pretexto da suposta necessidade de reduzir custos e da propalada inevitabilidade dos despedimentos, tais métodos caracterizam-se, muitas vezes, pelo lançamento de terrível e definitivo anátema sobre a cabeça de muitos jornalistas – o da sua dispensabilidade – , pondo em crise a sua auto-estima e expondo-o como um inútil.

“A frieza e o calculismo dos gestores e outros responsáveis, que assim procedem, vai ao ponto de justificar algumas dispensas não em razão de dificuldades económicas, mas invoca uma suposta falta de perfil para o projecto que se pretende desenvolver.

“Haverá forma de censura mais indigna e mais violenta do que este ferrete, aplicando cruelmente à pele de um jornalista – cujo único capital é o nome profissional – a marca indelével de «dispensável»?

“Acontece isto numa altura em que os donos dos média se afadigam novamente em reengenharias de organização, reconfigurando os respectivos grupos económicos, equacionando alianças, fusões, alienações, discorrendo sobre orientações ou redesenho de produtos, sempre em nome do mercado e de um economicismo totalmente insensível às angústias que cria nas pessoas perante a incerteza do seu futuro.

“Haverá forma mais eficaz de condicionar o dever de escrúpulo dos jornalistas face aos direitos do público, em geral, e das pessoas e entidades objectos do seu trabalho, em particular?

“Como é que o exercício de uma profissão que trabalha com matéria tão sensível como os direitos e a dignidade de pessoas e entidades objecto de notícia resiste à violenta compressão de direitos fundamentais dos que a realizam?

“Ocorre isto também numa altura em que o Governo apresenta uma proposta de Código do Trabalho que aprofunda a precariedade dos trabalhadores, sobretudo os mais jovens, mas também institucionaliza a precariedade dos trabalhadores que ocupam funções de direcção e outros cargos de confiança.

“Isso significa que a independência económica, que é uma condição essencial à afirmação da independência dos jornalistas e garantia de não subordinação a estratégias estranhas à sua autonomia editorial, fica objectivamente comprometida e que são maiores os riscos de os vermos claudicar ante as pressões do mercado e as orientações do marketing.

“Mas, entre outras graves consequências, a actual proposta de Lei pretende legitimar práticas, que tentam já instalar-se no terreno, de alargar a prestação de trabalho às empresas pertencentes ao mesmo grupo económico ou ao mesmo universo empresarial.

“Tal legitimação viria a agravar os efeitos profundamente deletérios da crescente concentração de meios de comunicação social para a liberdade de expressão, com as nefastas consequências daí decorrentes para o próprio regime democrático e com prejuízo sério de uma das garantias essenciais e estruturantes do Estatuto do Jornalista que é a cláusula de consciência.

“Estes riscos justificam que, independentemente da decisão que o Sindicato dos Jornalistas venha a tomar na próxima terça-feira, em relação ao chamado «Pacote Laboral» e às formas de expressão pública da posição dos jornalistas, hoje mesmo desencadeemos mecanismos colectivos de auto-defesa dos profissionais da Comunicação Social no que diz respeito aos efeitos específicos para o sector das medidas legislativas em causa.

“Assim, o Sindicato dos Jornalistas lança nesta oportunidade um abaixo-assinado dirigido à Assembleia da República, manifestando a mais viva preocupação pela crescente degradação das condições de produção dos média e a profunda convicção de que estas se agravarão se a Proposta de Lei de Código do Trabalho for aprovada.

“O colóquio que agora inauguramos ocorre também num momento de especial atenção mediática em relação a temas da Justiça extraordinariamente sensíveis, tornando profundamente actual a reflexão que nos propusemos promover.

“De facto, os últimos dias – desde há uma semana, mais exactamente – representaram uma fértil seara de inquietações que interpela directamente a Sociedade, os organismos que em seu nome deveriam velar pelos direitos de seres tão frágeis como as vítimas do horror exposto em parangonas de imprensa e largas horas de ocupação do espectro radioeléctrico.

“Tal seara, longe de proporcionar talvez um secreto comprazimento ou um exultante regozijo pela circunstância de, pelo menos na aparência, terem sido os média a desvendar um horror sem memória, perante uma inquietante falência da Justiça, tal seara, dizia, convoca-nos a um trabalho árduo de reflexão e de partilha de soluções.

“Os cidadãos que não acederam ao privilégio de estar connosco nesta jornada, e que são os destinatários comuns das nossas actividades profissionais, aguardam respostas e esperam um compromisso.

“Pela nossa parte, podemos assumir um compromisso claro: o de que, apesar das condições em que realizamos o nosso trabalho, nos esforçaremos por preservar a soberania do jornalismo face à ditadura do mercado, e procuraremos afirmar os deveres não obstante a fragilidade dos direitos.

“No que à relação dos Média com a Justiça diz respeito, cabe-me deixar, à laia de sugestão de abordagem para os trabalhos que se seguem, a nossa preocupação com a emergência de conflito entre o direito-dever de sigilo profissional dos jornalistas e o dever de cooperar com a Justiça.

“Temo-lo repetido à saciedade: a protecção do sigilo profissional e em particular das fontes confidenciais de informação não é um privilégio de casta atribuído à margem do interesse colectivo.

“Trata-se de um indeclinável dever de profissional que, além de preservar a independência e a credibilidade dos jornalistas, visa garantir ao público que as informações disponibilizadas foram obtidas num quadro de liberdade e de responsabilidade.

“Obrigar um jornalista a depor sobre matéria de que tomou conhecimento no exercício da sua profissão e por causa dele, além da que publicou ou da que viria a publicar, transforma este profissional num mero instrumento auxiliar da autoridade judiciária na produção da prova e coloca irremediavelmente em crise a sua independência e credibilidade profissional.

“No contexto que vivemos, seria mais uma fragilidade injusta e perigosa.

“Eis por que devemos conhecer-nos melhor e trabalhar em conjunto, no respeito pela identidade de cada uma das profissões e pela autonomia das suas organizações.

“Por isso fazemos votos de que este colóquio seja a primeira jornada de uma caminhada profícua e com futuro.”

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