A intervenção de Oscar Mascarenhas no colóquio “Os Média e a Justiça”

Intervindo no colóquio “Os Média e a Justiça”, Oscar Mascarenhas, do Conselho Deontológico do SJ, defendeu que a identificação de fontes em juízo é uma deslealdade do sistema que “institucionalizaria a auto-incriminação”.

É o seguinte o texto integral da intervenção de Oscar Mascarenhas:

O segredo profissional do jornalista como dever ético

“No decurso do último ano, o Tribunal da Relação de Lisboa determinou, por duas vezes, que fosse negado a jornalistas a invocação do direito de guardar segredo da identificação de determinada fonte.

“Foram duas decisões que em nada contribuíram para engrandecer a justiça, o jornalismo, a vivência das liberdades e a cidadania.

“Deixem-me mesmo dizer com crueza: foram duas decisões que em muito pouco se distinguem da tortura.

“Assemelham-se à tortura porque partem de um pressuposto ideológico da deificação da verdade como um valor que se sobrepõe a tudo e tudo pode atropelar.

“Parecem-se com a tortura porque colocam o destinatário-vítima num drama entre a honra de cumprir o prometido e a obediência a padrões de conduta heterodeterminados.

“Distinguem-se talvez da tortura porque não foi imposta violenta coacção física. Como se só a violenta coacção física fosse tortura; como se a suave chantagem moral do pide-bom de outros tempos devesse ficar do lado de fora do quadro da tortura.

“Mas permitam-me que vos diga que – não em Portugal, felizmente, ou felizmente ainda não, mas na Bélgica – já houve um juiz que conseguiu inventar uma maior palpabilidade na extorsão da verdade, com a multa-taxímetro, aumentando em cada hora de silêncio obstinado do jornalista!

“(O lendário juiz-taberneiro Roy Bean, a única lei a Oeste de Pecos, dá voltas na campa por nunca se ter lembrado dessa…)

“No primeiro dos casos que tiveram tão infeliz decisão, tratava-se de uma notícia sobre investimentos de ou em determinada grande empresa e que teve algum impacte na Bolsa de Valores.

“Mas a notícia não era verdadeira e causou danos a investidores.

“A Comissão de Valores Mobiliários accionou o jornalista em juízo e este escudou-se com uma fonte confidencial.

“Escudou-se, digo bem, mas também digo já que o jornalista fez mal, muito mal, porque, em caso de fonte confidencial, é o jornalista o escudo da fonte, não a fonte escudo do jornalista.

“Mandado dizer quem era tal fonte, o jornalista disse.

“Fez mal. Muito mal.

“Não sei como continuou o caso nem é a sua materialidade exacta que me interessa aqui. Digo só o que poderia ter acontecido: podia a denunciada fonte fazer-se de novas e escarmentar-se com tal denúncia, considerando-a calúnia.

“E como pode um jornalista fazer prova de uma conversa secreta, a dois, sem testemunhas nem documento passado?

“Pois. O jornalista arriscou-se a transformar, para si, o banco dos réus em cadeira do Olímpia: sessões contínuas.

“Poderia ter de se sentar de novo, ali mesmo, para responder por denúncia caluniosa.

“E quando olhasse para o lado, não encontraria nenhum desembargador a assumir-se como instigador do crime.

“E com uma instigação de alto lá com ela: ou o jornalista denunciava (caluniosamente) – ou era metido a ferros por desobediência!

“E nem quero pensar se a fonte denunciada (acertadamente ou não) resolvesse tirar desforço sobre o jornalista ou seus familiares!

“Ou se alguém terceiro, orientado ou desorientado pela denúncia, quisesse vingar-se da suposta fonte ou seus próximos.

“Veja-se a cornucópia de desgraças que pode sair de uma solene mas muito pouco vantajosa decisão judicial!

“Foi exactamente o que sucedeu a outro jornalista – e deste digo o nome, José Luís Manso Preto, porque dos nossos heróis gosto de dizer o nome.

“Mas este foi apanhado na ratoeira da sua própria lisura e ausência de pecado.

“Arrolado pela defesa como testemunha, num caso de tráfico de estupefacientes, foi-lhe perguntado – no debate instrutório – se tinha ouvido falar de processos irregulares cometidos por agentes da polícia judiciária.

“Que sim, que nas suas investigações jornalísticas tinha contactado com um experimentado agente que lho confirmara.

“A defesa quis saber quem era tal agente. O jornalista recusou revelar: tinha sido alguém que lhe confiara a informação sob a condição de não ser identificado.

“Deu-se o caso de o jornalista nem ter publicado tal informação: ainda estava em cruzamento de fontes para ter a garantia de poder divulgar com segurança.

“Mas como julgou que o tribunal desejava a sua colaboração para, também ele, tribunal, cruzar as suas fontes e apurar a verdade com segurança, disse o que disse.

“Nada, nada, disse a defesa – e insistiu em saber a fonte, recorrendo para a Relação.

“O resto sabe-se: o jornalista foi ali mesmo detido quando pela segunda vez recusou revelar a fonte e aguarda, em liberdade, julgamento por desobediência.

“Se isto não é tortura, contem-me lá o que é tortura, para eu saber…

“Dir-me-ão alguns juris-sofistas: mas não é verdade que os dois jornalistas se ajuramentaram a dizer TODA A VERDADE no julgamento ou no debate? Então, de que se queixam?

“É, de facto, um sofisma. Um juris-sofisma: não existe tal conceito de toda a verdade e muito menos a verdade a qualquer preço.

“É fácil demonstrá-lo: os réus podem mentir, os familiares não têm o dever de denunciar os seus.

“Ou seja: a sociedade democrática entende que a obtenção da verdade requer um processo onde outros valores sejam respeitados.

“E o valor da consciência e da honra do cidadão é tão respeitável como o desejo colectivo de obter a verdade.

“Então, pode um jornalista agredir direitos e refugiar-se na fonte que não identifica?

“Claro que não. A lei protege – e bem – o jornalismo de fonte identificada: uma transcrição correcta de pessoa identificada só a esta vincula, não o jornalista – excepto se se tratar de um incitamento ao crime.

“A lei que existe é, portanto, boa.

“Porém, se o jornalista quer prescindir de se proteger com a fonte identificada, sabe – tem de saber – que está em campo aberto de peito às balas: é ele que protege a fonte.

“Ou seja: é a ele que compete fazer a prova do que publicou.

“E isto, convenhamos, muitos jornalistas parecem desconhecer: parecem julgar que uma fonte não identificada o seu bunker.

“Errado: o jornalista é que é saco de trincheira da fonte não identificada.

“Que o digam dois jornalistas do Público que, há poucos anos, se viram desguarnecidos de fontes em tribunal e tiveram a galhardia de não as denunciar e enfrentar a punição e indemnização à família de Borges de Macedo, num caso que envolvia o uso de arquivos da Torre do Tombo.

“Os jornalistas não podem, então, revelar jamais as suas fontes confidenciais, o dever ético dos jornalistas é tão sagrado e intransponível como o segredo de confissão para os sacerdotes?

“Claro que não, porque o dever do jornalista não se radica em sacralidades e dimensões extra-humanas, mas tão-somente no único pressuposto que sustenta a ética: a lealdade.

“Daí que um jornalista fique desvinculado do seu dever de segredo, em dois casos:

– se a fonte tiver produzido informações falsas com a intenção de descredibilizar o trabalho noticioso – mas, aí, o jornalista vai confrontar-se com o problema que acima referi, o de não conseguir provar que tal pessoa foi mesmo sua fonte;

ou,

– se a fonte quiser transformar o jornalista em cúmplice ou encobridor de crime futuro – o que, em princípio, não envolve dificuldades de prova, mas tem o seu quê de hipótese académica.

“Portanto, como regra, os jornalistas estão à mercê das fontes confidenciais? Exactamente. Essa é, pelo menos, uma atitude saudável e segura para encarar a noção de fonte confidencial.

“Por isso, tenho insistido em que os jornalistas não devem aceitar fontes confidenciais sem primeiro fazer passar a negociação pelo crivo de cinco precauções:

“1. É a fonte que pede a confidencialidade, não é o jornalista que a oferece – exactamente porque a sustentação normal do jornalismo (tal como a da ciência) é a identificação das fontes e a possibilidade do seu escrutínio por outros.

“2. A fonte tem de ter razões de segurança, pessoal, profissional ou de estatuto, própria ou de próximos, para solicitar a sua não identificação.

“3. A fonte só fornece factos, não tece comentários: a credibilização dos comentários está exactamente na credibilidade de quem os profere. Costumo dizer que o local constitucionalmente estipulado para a publicação de comentários de pessoa não identificada são… as paredes das casas de banho públicas – muito embora tenha de reconhecer que algumas páginas políticas e desportivas de jornais se lhes assemelhem bastante.

“4. A fonte deve fornecer ao jornalista os indícios e meios de prova do que afirma, para que o jornalista possa garantir o que publica. Se é o jornalista que vai dar o peito aos tiros pela fonte, que esta ao menos forneça o colete anti-bala.

“5. A fonte não pode tentar transformar o jornalista em cúmplice ou encobridor de crime futuro.

“Quanto a crime passado, o jornalista tem de guardar segredo de identidade: é que só tomou conhecimento dos factos exactamente porque ofereceu o segredo; de outra forma não conheceria.

“Revelar, mesmo em juízo, a identidade, seria mais do que uma deslealdade do jornalista.

“Seria uma deslealdade do sistema que, além de transformar o jornalista em espião, institucionalizaria a auto-incriminação – e nenhuma sociedade decente fomenta e muito menos impõe a auto-incriminação.

“Difícil, hem? Afinal isto de fontes confidenciais é coisa difícil…

“Pois é.

Já chegam, pois, estas dificuldades, para o jornalista.

“Não precisa de ser mais atormentado com decisões judiciais com forma bulldozers da honra e da consciência – e de muitas liberdades essenciais.

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