Conselho Deontológico critica trangressões éticas na cobertura de alegados casos de pedofilia

O Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas considera que os atropelos à ética na cobertura jornalística de alegados casos de pedofilia resultou de “uma deliberada vontade de forçar os limites”. O CD divulgou um comunicado, no qual faz uma primeira análise ao comportamento de grande parte dos mais importantes órgãos de comunicação sobre esta matéria.

Para o Conselho Deontológico (CD), “os órgãos de informação transgressores assumiram para si um papel justicialista – na fachada – para, assim, com crueza chocante, exibirem imagens sórdidas ou contarem episódios escabrosos a partir de fontes únicas, sem confronto nem enquadramento”.

O CD lembra que o jornalismo possui apenas um objectivo, informar os cidadãos de modo a estes poderem tomar decisões responsáveis, e uma única ferramenta ética, a lealdade.

É o seguinte o texto integral do comunicado do Conselho Deontológico:

Cobertura jornalística de alegados casos de pedofilia em internatos de crianças desfavorecidas

“O Conselho Deontológico tem acompanhado com muita preocupação o modo como grande parte dos mais importantes órgãos de informação tem noticiado revelações sobre alegados casos de pedofilia ocorridos em internatos de crianças desfavorecidas. A preocupação não raro se converteu em indignação ao deparar, entre os órgãos de informação prevaricadores, com alguns que a si próprios se consideram de referência.

“Não é possível, neste momento, fazer uma apreciação exaustiva e individualizada dos casos de falta de ética, tão volumosa tem sido a torrente noticiosa sobre esta matéria. Mas o Conselho Deontológico não tem dúvidas de que, desta vez, a generalidade das transgressões à ética não ocorreu por mero erro ou precipitação, mas resulta de uma deliberada vontade de forçar os limites. Tal atropelo aos princípios foi feito a coberto de um suposto jornalismo de causas, agora em moda – conquanto não se saiba exactamente o que é e, do que se sabe, descobrem-se mais perigos e danos do que virtudes.

“Os órgãos de informação transgressores assumiram para si um papel justicialista – na fachada – para, assim, com crueza chocante, exibirem imagens sórdidas ou contarem episódios escabrosos a partir de fontes únicas, sem confronto nem enquadramento. Partiram do pressuposto de que sabem quem são os culpados de todos os males revelados e, sem hesitação, aderiram às supostas evidências e tentaram impô-las ao público. Esqueceram, pois, o lado mais nobre do jornalismo, que é pesar os dados, aprofundá-los, recusar os testemunhos erróneos ou ofensivos, dar a cara pela verdade possível. No fundo, é o de procurar outras perspectivas escondidas por detrás das supostas evidências. É isto o jornalismo de investigação – e não a reprodução dócil e acrítica de papéis descaídos a conta-gotas de um modo calculista por quem tem interesse na causa ou de testemunhos não passados pelo crivo da veracidade e da credibilidade.

“Diversos comentadores e jornalistas já começaram a denunciar a vertigem de transgressões e de desrespeito pelos valores básicos do jornalismo – e o Conselho Deontológico regista com agrado esta reacção espontânea: é a prova de que os valores são suficientemente conhecidos, porque intuitivos, o que agrava a sua transgressão, já que não permite a atenuante do desconhecimento.

“É, de facto, simples o jornalismo: traça para si próprio um só objectivo e constrói-se com uma única ferramenta ética.

“O objectivo: proporcionar aos cidadãos as informações e reflexões necessárias para que estes possam tomar decisões responsáveis, tanto a nível colectivo (como votar, por exemplo), a nível interactivo (participar em petições ou outras iniciativas cívicas) ou mesmo a nível individual (cuidados de saúde, higiene ou alimentação, nomeadamente). Mas quem toma as decisões é o cidadão receptor da mensagem jornalística, não são os jornalistas que a tomam em nome do cidadão, até porque para isso não estão legitimados. E o cidadão deve tomá-las responsavelmente, o que significa que necessita de serenidade e liberdade para o fazer. Para a serenidade, dispensa o sensacionalismo. Para a liberdade, reclama a multilateralidade da informação.

“O próprio jornalismo de causas, se sério, não pode dispensar este pressuposto: podem os órgãos de informação ter um papel relevante na escolha da agenda; mas não lhes é permitido viciar a produção de informação de modo a impedir o ajuizamento livre e sereno por parte do público.

“Obviamente, em todo este caso da alegada pedofilia em internatos de crianças desfavorecidas, não foram proporcionadas ao público informações para que este formasse juízos de valor serenos e responsáveis, antes se procurou gerar uma situação de histeria colectiva de modo a obter uma reactividade que prolongasse o noticiário.

“O instrumento ético: a lealdade. É imperativo que o jornalismo se não faça traiçoeiramente, mas se cumpra dentro de um pressuposto de lealdade, para com o público (fornecendo-lhe informações exactas e enquadradas), para com as fontes (respeitando a exactidão das declarações e o seu contexto e cumprindo os eventuais compromissos de confidencialidade) e para com os visados.

“A regra da lealdade para com os visados determina a sua prévia audição em tudo o que os possa afectar. Porém, é preciso sublinhar que há casos em que a lealdade para com os visados pode ser muito mais exigente do que isso: é que existem situações – e o caso presente foi fértil em exemplos – onde ouvir o visado, ou melhor, tornar público o que se ouviu do visado, pode constituir uma agressão e um estigma para este – mesmo que o objectivo sincero seja o da ilibação. A simples divulgação de uma suspeita, mesmo que desfeita, pode deixar marcas indeléveis e gerar grandes sofrimentos.

“A revelação, em adultos, da sua identificação enquanto crianças vítimas de situações aviltantes é tão grave como a identificação de uma criança enquanto tal. E pode até trazer, como agravante, a recaída num fosso de marginalidade e miséria moral de quem, à custa de muito sacrifício, conseguira retomar com tranquilidade o quotidiano da vida.

“A indicação do local de residência de pessoas que já prestaram contas à Justiça e, bem ou mal – na opinião dos órgãos de informação –, foram mandadas em paz, constitui uma instigação ao desforço ou à assuada pública, numa palavra, é um incitamento ao crime – sempre em nome do justicialismo mediático.

“Os jornalistas e o público – e muito mais as pessoas atingidas – têm nas mãos o instrumento de medida da correcção do que se fez. E ninguém pode, em consciência, dizer que, na generalidade, os órgãos de informação ajudaram a fazer juízos prudentes – e muito menos afirmarão que foram leais.”

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