Queixa contra o Expresso por falta de rigor e opiniões de fontes anónimas

Queixa nº 25/Q/2024

 

Queixa contra o Expresso por falta de rigor e opiniões de fontes anónimas

 

A queixa

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (adiante CD) recebeu a 12 de março de 2024 uma queixa assinada por Paulo Martins contra expressões utilizadas no texto do jornal Expresso, sob o título “‘O Algarve foi afastado do centro político’: como o Chega cresceu e já disputa o primeiro lugar a sul”, da autoria de João Mira Godinho, publicado na página 12 da edição de 1 de março de 2024 do semanário Expresso (e, em versão digital, às 22h57 de 29 de fevereiro de 2024).

Em concreto, o queixoso solicita ao CD que se pronuncie à luz do estatuído nos artigos 1.º e 7.º do Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses.

Relativamente ao Artigo 1.º, Paulo Martins considera que “o título, a entrada – “Voto de protesto, pela forma como PS e PSD têm tratado a região, é a motivação para os algarvios optarem pelo Chega” – e a afirmação no corpo da reportagem – “Há estudos que dão o Chega não só em primeiro lugar como vários pontos acima de PS e PSD” – não são suportados em informação cuja origem seja conhecida e credível (o resultado de uma sondagem ou de um estudo de opinião, por exemplo). É, portanto, evidente a violação da norma segundo a qual “o jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade”. A informação constante no texto – “Ventura já disse que o seu partido está à frente da AD em todas as sondagens abaixo do Tejo” – não pode servir para fundamentar o suposto “primeiro lugar” alcançado pelo Chega. Tomar uma declaração do presidente de um partido, em plena campanha eleitoral para as eleições legislativas, como insuscetível de ser submetida a verificação, competência inalienável do jornalista, é ignorar o papel que a propaganda política exerce nesse contexto”.

O queixoso acrescenta que “a ausência de rigor, porém, manifesta-se noutras partes da reportagem. O nome do docente universitário entrevistado, tanto quanto se pode apurar, é João Eduardo Martins  e não José Eduardo Martins. A reportagem faz referência ao Plano de Desenvolvimento Regional do Algarve, que, regulando questões de ordenamento do território, é completamente alheio ao tema abordado. Compulsando informação disponível na internet, é provável que se trate do Plano de Desenvolvimento Social 2023-2030. Este documento, da responsabilidade da Associação de Municípios do Algarve, aponta efetivamente os valores referidos – 50,6% de contratos sem termo e 19,9% de taxa de abandono escolar. Porém, referem-se ao ano de 2019, facto que é omitido na reportagem. O terceiro dado estatístico – os salários no Algarve “são 565 euros abaixo da média nacional” – reporta a 2020, data que também não é mencionada”.

Já relativamente ao Artigo 7.º do Código Deontológico, “a reportagem inclui duas fontes identificadas – além do docente universitário, um militante do Chega, Rui Guerreiro. Os outros dois militantes, dos quais se revela apenas o nome próprio, beneficiam, objetivamente, de anonimato, apesar de exprimirem opiniões, o que colide abertamente com a norma segundo a qual ‘as opiniões devem ser sempre atribuídas’. O militante António, citado em discurso indireto, sustenta que ‘na agricultura, onde trabalha, consegue-se distinguir bem os imigrantes que vêm para Portugal trabalhar e os que apenas querem entrar na União Europeia’. Acrescenta, em declaração citada entre aspas – logo, citação literal: ‘Entre um corrupto e um racista não sei quem prefiro. Se calhar prefiro o racista’. Francisco, outro entrevistado, afirma (declaração também citada entre aspas): ‘Sou contra a globalização, acho que cada país deve ter a sua cultura, se imigrantes de outras culturas querem vir para cá, devem respeitar a nossa’. Tratando-se de declarações que naturalizam o racismo, no primeiro caso, e se revestem de conotações xenófobas, no segundo, é na minha ótica inadmissível que o autor da reportagem tenha considerado relevante reproduzi-las, ademais a coberto do anonimato,” diz o queixoso.

Paulo Martins entende que, de acordo com o texto, António “pediu para ser [assim] identificado para ‘evitar problemas quando tiver de tratar de assuntos’ com entidades públicas” e Francisco ‘também prefere não se identificar até porque já desempenhou funções num outro partido’, mas que nenhum dos argumentos é suscetível de justificar a ocultação da identidade – no limite, permitiriam que qualquer fonte os invocasse para produzir qualquer tipo de afirmações, protegida pelo confortável anonimato. Portanto, o jornalista não os deveria ter acolhido”.

Procedimentos

Porque o queixoso não especifica, nem tem de o fazer, se a queixa visa apenas o autor do texto ou também o próprio jornal, entendeu o CD questionar o jornalista João Mira Godinho mas também a Direção do jornal, através de comunicação enviada a 13 de março.

Em concreto pretendia saber-se a) de que forma é suportada a afirmação “Há estudos que dão o Chega não só em primeiro lugar como vários pontos acima de PS e PSD”, b) se reconhece as falhas de rigor apontadas pelo autor da queixa (a queixa foi enviada em anexo) e c) Uma vez que o Código Deontológico advoga que “O jornalista deve usar como critério fundamental a identificação das fontes”, como justifica a frase, dita por uma fonte não identificada: “Entre um corrupto e um racista não sei quem prefiro. Se calhar prefiro o racista”?

Nessa mensagem para o jornalista em causa, o CD recorda que o Código de Conduta do Expresso é ainda mais claro neste aspeto: “O anonimato deve ser uma excepção e só se aplica para proteger a integridade da fonte ou para relatar factos que não sejam acessíveis de outro modo. Uma fonte anónima jamais tem opinião.” Este, aliás, foi também o tópico enviado à Direção do Expresso.

João Vieira Pereira, diretor do jornal, respondeu a 5 de abril: “ao contrário do invocado na queixa, entende a Direção do Expresso que a peça visada não compromete o Código Deontológico nem o Código de Conduta. Com efeito, a pessoa em causa no segmento participado não quis ser identificada, de forma a ser protegida de possíveis retaliações por estar a assumir um sentido de voto, que, por norma, é secreto. De resto, a citação em causa não identifica uma pessoa em concreto, mas apenas características de uma determinada pessoa, logo não se trata de uma opinião sobre um indivíduo. A pessoa em causa está apenas a relatar a sua preferência sobre um tipo de comportamento, o que, salvo melhor entendimento, não viola as normas deontológicas invocadas na queixa”.

O jornalista João Mira Godinho respondeu a 10 de abril.

Na resposta à questão a), refere: “Vários militantes partidários (PS e PSD) locais, por mim contactados, nos dias anteriores às eleições, disseram-me que a vitória do Chega no Algarve era uma forte possibilidade, com base nos estudos que dispunham. O mesmo me foi transmitido pela direção do Expresso – que tinham essa indicação do Chega estar à frente nas intenções de voto no Algarve, como de resto se veio a confirmar”.

Na resposta à questão b), refere: “Existem duas falhas por mim cometidas no artigo: O nome do sociólogo consultado é João Eduardo Martins (e não José, como por erro escrevi – eventualmente por confusão com o político e comentador José Eduardo Martins) e o estudo citado é de facto Plano de Desenvolvimento Social do Algarve (e não Plano de Desenvolvimento Regional), tornado público no final de 2023 e, na altura, apresentado como um retrato económico e social da região atual”.

Finalmente, em resposta à questão c) revela: “Falei com a direção do Expresso sobre a questão de duas das pessoas contactadas não se quererem identificar. Disseram-me que era essencial explicar a razão pela qual não o queriam fazer. Assim o fiz e, na altura em que falei com as duas pessoas referidas, percebi completamente os motivos que apresentaram – uma, por se tratar de um empresário, e não querer assumir uma ligação que lhe poderia ser prejudicial na atividade que desempenha, em particular no contacto com entidades públicas; o outro por ter desempenhado funções numa outra força política (da qual ainda não se desvinculou)” 

O jornalista João Mira Godinho acrescenta na sua comunicação com o CD o seguinte “Finalmente, quero acrescentar que o artigo em questão foi elaborado com total boa fé e sem qualquer ideia/intenção de conduzir/influenciar o sentido de voto dos eleitores. Que procurei traduzir com rigor o resultado dos contactos e documentos consultados. E, em momento algum, pretendi veicular convicções pessoais ou ideias pré-concebidas.

Procurei, como em todos os artigos que elaboro, cumprir as regras do Código Deontológico e as regras que enquadram a atividade dos jornalistas, refletindo, no texto, a realidade que ‘observei’ para a realização da reportagem”.

Análise

Relativamente às acusações de falta de rigor, relativas à forma como é suportado o título, o jornalista garante que a ‘fonte’ não é a frase “Ventura já disse que o seu partido está à frente da AD em todas as sondagens abaixo do Tejo”, mas, havendo outras, elas não são percebidas no texto, o que deveria ter acontecido, até por se tratar do assunto que suporta o título da peça. Se a Direção do Expresso possuía indicações de que sondagens o indicavam, porquê não revelar essa informação aos leitores? Segredos e sondagens não costumam resultar bem.

Sobre a atribuição de opiniões a fontes anónimas, a verdade é que o Código Deontológico e o Código de Conduta do Expresso são inequívocos. Julgamos, aliás, ser possível dizer que este vai mais longe do que aquele, ao afirmar que “Uma fonte anónima jamais tem opinião”.

É evidente que devem existir exceções, por isso o Código Deontológico usa a expressão “O jornalista deve usar como critério fundamental a identificação das fontes”, acrescentando depois que “as opiniões devem ser sempre atribuídas”. Essas exceções, como assinala o queixoso noutra parte da sua intervenção junto do CD, servem “para proteger a fonte de eventuais riscos, como represálias ou perda de posto de trabalho”. O Código de Conduta do Expresso deixa claro que “o anonimato deve ser uma excepção e só se aplica para proteger a integridade da fonte ou para relatar factos que não sejam acessíveis de outro modo” concluindo que “Uma fonte anónima jamais tem opinião.” Poder-se-ia argumentar que o anonimato permitiu “relatar factos que não sejam acessíveis de outro modo”, mas não é o caso, uma vez que se trata de opiniões e não de factos.

As explicações de João Vieira Pereira merecem os seguintes reparos por parte do CD: dizer que “a pessoa em causa no segmento participado não quis ser identificada, de forma a ser protegida de possíveis retaliações por estar a assumir um sentido de voto, que, por norma, é secreto” é admitir que, a coberto desse objetivo, se possa dizer qualquer coisa.  O diretor do Expresso esquece a afirmação de que “Uma fonte anónima jamais tem opinião” do Código de Conduta do seu próprio jornal.

Por outro lado, ser uma opinião sobre um indivíduo ou sobre uma comunidade, raça ou etnia, no caso, é, do ponto de vista do CD, irrelevante.

O argumento do jornalista João Mira Godinho é semelhante ao do diretor do Expresso (“na altura em que falei com as duas pessoas referidas, percebi completamente os motivos que apresentaram – uma, por se tratar de um empresário, e não querer assumir uma ligação que lhe poderia ser prejudicial na atividade que desempenha, em particular no contacto com entidades públicas; o outro por ter desempenhado funções numa outra força política [da qual ainda não se desvinculou])” e merece o mesmo comentário por parte do CD: o anonimato das fontes não deverá servir para suportar opiniões mas factos – e não todos, apenas os “que não sejam acessíveis de outro modo”. 

Deliberação

Relativamente às acusações de falta de rigor, o CD subscreve as queixas de Paulo Martins, lamentando que o artigo não tenha explicado com outro detalhe, que pelos vistos existia, porque se afirma que o Chega estava à frente no Sul.

Da mesma forma, não encontra o CD razão plausível para que fontes anónimas emitam opinião n(o artigo d)o Expresso, pelo que também acolhe os argumentos do queixoso. Serem  “declarações que naturalizam o racismo, no primeiro caso, e se revestem de conotações xenófobas, no segundo”, para citar o queixoso, parece-nos neste contexto irrelevante, porque o princípio deve ser geral e abstrato: vale tanto para um ataque ao carácter de uma pessoa ou instituição como para “declarações que naturalizam o racismo (…) e se revestem de conotações xenófobas”.

O facto de o Expresso ter um Código de Conduta e o partilhar com os seus leitores, razão para elogio e mesmo admiração, face a outros órgãos de comunicação social em Portugal, só o responsabiliza ainda mais e deve exigir da sua Direção e da sua redação o cumprimento escrupuloso.

Numa perspectiva mais genérica, o CD tem consciência de que no jornalismo político, mas não apenas, se tornou relativamente comum permitir a fontes anónimas que emitam opiniões ou juízos de valor, até porque de outra forma, em muitos casos, essas fontes não emitiriam a mesma opinião. Mas não é por ser mais fácil que se torna aceitável. Um jornalismo que permite que fontes anónimas digam o que querem, sem um nexo de justificação factual, não é um bom jornalismo.

 

Lisboa, 15 de Abril de 2024

O Conselho Deontológico

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