Supremo Tribunal dos EUA rejeita recurso de Miller e Cooper

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos rejeitou, a 27 de Junho, ouvir o recurso dos jornalistas Matthew Cooper e Judith Miller, que defenderam o direito ao sigilo profissional num caso relativo à identificação de uma agente da CIA. Os dois jornalistas podem ser presos a qualquer momento e obrigados a cumprir os 18 meses de prisão a que foram condenados por desrespeito ao tribunal.

Com todos os recursos esgotados, os dois jornalistas planeiam agora contestar em tribunal – novamente perante o juiz Thomas Hogan, que os condenou – que a natureza da investigação foi alterada substancialmente em relação ao ano passado, sendo o seu testemunho menos necessário do que era então.

Caso a estratégia de defesa não surta efeito, ambos preferem ser presos a quebrar o sigilo profissional.

Após ter conhecido a decisão do Supremo Tribunal, Judith Miller – que a 24 de Fevereiro foi escusada de revelar a fonte num caso similar a este – afirmou-se “extremamente desiludida”, uma vez que “os jornalistas não podem fazer o seu trabalho sem por vezes se comprometerem com fontes que não podem ser identificadas. O sigilo profissional é essencial para a livre circulação de informação numa democracia”.

Preocupação com efeitos de choque da decisão

A recusa do Supremo em analisar o caso foi prontamente condenada por diversas organizações de defesa da liberdade de imprensa.

O Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ), por exemplo, revelou-se muito preocupado com os “efeitos de choque que esta decisão possa ter um pouco por todo o mundo, sobretudo em países com regimes repressivos, onde os jornalistas são frequentemente instados a revelar as suas fontes”, e dá como o exemplo duas respostas que recebeu sobre casos de violação dos direitos dos jornalistas nos Camarões e na Venezuela.

Em Dezembro de 2004, o governo venezuelano invocou este caso norte-americano para justificar a aprovação de uma lei que limitava a cobertura noticiosa em nome da preservação da ordem social.

No mês seguinte foi a vez das autoridades dos Camarões justificarem a prisão de um jornalista por difamação alegando que “tribunais de vários países decidiram diversas vezes que a protecção da liberdade de expressão não dá aos jornalistas o privilégio de se recusarem a divulgar as suas fontes em todas as circunstâncias”.

Adopção de medidas legislativas

Por seu lado, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) considerou a decisão judicial como “retrógrada” e instou o Congresso e o Senado dos Estados Unidos a “adoptar, o mais depressa possível, as propostas de lei apresentadas” em Fevereiro passado, com vista a reconhecer o direito dos jornalistas à protecção da confidencialidade das fontes.

A 28 de Abril último, durante uma conferência de imprensa conjunta, os congressistas Mike Pence (republicano) e Rick Boucher (democrata) e os senadores Richard Lugar (republicano) e Christopher Dodd (democrata) – autores das propostas levadas ao Congresso e ao Senado – confirmaram já ter debatido o assunto com o Departamento de Justiça e com a Casa Branca, mas ainda não conseguiram agendar o tema para discussão nas respectivas câmaras.

Falta de orientações para casos similares

Quem também espera que esta decisão do Supremo acelere a aprovação dos projectos de lei-escudo apresentados é o Comité de Repórteres para a Liberdade de Imprensa (RCFP).

De sublinhar que a recusa do Supremo Tribunal em analisar o caso faz com que os repórteres fiquem sem qualquer tipo de orientação sobre o que podem ou não garantir às fontes em termos de confidencialidade das mesmas em tribunal, além de não dar pistas algumas para a análise desta questão em quatro outros casos similares que estão pendentes na justiça.

“À medida que o tempo passa, torna-se cada vez mais claro que a lei pode nem ter sido quebrada quando a identidade de Valerie Plame foi revelada. Seria uma vergonha para a justiça se dois jornalistas fossem presos por cumprirem as promessas de manutenção da confidencialidade das suas fontes num caso criminal em que não houve qualquer violação da lei”, disse Lucy Dalglish, directora do RCFP, baseando-se em dados recentes que sugerem que a revelação da identidade de Valerie Plame ao colunista Robert Novak, o primeiro a divulgá-la, não violou o Acto de Protecção da Identidade dos Agentes Secretos.

A origem do caso

A identidade da agente da CIA Valerie Plame foi revelada publicamente a 14 Julho de 2003 por Robert Novak, colunista que até hoje não se sabe se testemunhou ou não perante o grande júri acerca deste caso.

Sabe-se porém que diversos jornalistas foram chamados a tribunal no âmbito da investigação sobre quem teria passado à imprensa a identidade da agente secreta. Valerie Plame, recorde-se, é mulher do embaixador Joseph Wilson, que em Julho de 2003 criticou George W. Bush numa coluna de opinião do “The New York Times” por este ter divulgado informações secretas falsas que indicavam que o Iraque teria tentado comprar urânio em África.

Para o diplomata, a fuga de informação que revelou a sua mulher como agente secreta foi uma retaliação do governo por esta atitude crítica, e também uma forma de desviar a atenção do público das suas afirmações, incorrendo numa tentativa de manipulação da informação.

Foi aliás a esse propósito que Matthew Cooper escreveu na “Time” sobre o caso, a 17 de Agosto de 2003, referindo no artigo que a fuga de informação sobre Valerie Plame para a imprensa partira de alguns agentes governamentais.

Folhetim judicial

No Verão seguinte começou o folhetim judicial, com Matthew Cooper a ser condenado à prisão, a 9 de Agosto de 2004, pelo crime de desobediência ao tribunal, uma vez que – à revelia de um Acórdão do Supremo Tribunal, datado de 20 de Julho – se recusou a revelar as suas fontes.

Por seu lado, a “Time” foi sentenciada a uma coima de 1000 dólares (aproximadamente 750 euros) por dia até entregar documentação sigilosa exigida pelo tribunal, tendo a condenação do repórter e a da publicação ficado suspensas a aguardar pela decisão do tribunal de apelo.

Cooper, que inicialmente se escusara a testemunhar, apresentando mesmo um recurso à convocatória judicial, aceitou depor após obter da fonte oculta autorização para a desvelar. Porém, a 14 de Setembro as autoridades judiciais voltaram a intimá-lo para que facultasse mais dados sobre outras fontes secretas, o que o jornalista recusou, incorrendo em novo crime de desobediência, que lhe granjeou – a 13 de Outubro – uma pena de prisão de 18 meses, também ela suspensa durante o recurso.

A jornalista Judith Miller, que nunca escreveu sobre o caso e mantinha igual recusa em dar a conhecer as fontes, foi acusada também de desrespeito ao tribunal e condenada, a 7 de Outubro de 2004, igualmente a 18 meses de prisão.

O processo relativo à divulgação não autorizada do nome da agente Valerie Plame – divulgação que não partiu de Matthew Cooper ou de Judith Miller, convocados apenas no pressuposto de terem contactado com as fontes da revelação – chamou ainda a testemunhar os jornalistas Tim Russert, da NBC, e Glenn Kessler e Walter Pincus, ambos do “The Washington Post”.

Russert e Kessler viriam a beneficiar de autorização de quebra de sigilo por parte da mesma fonte de Cooper, enquanto Pincus obteve o consentimento de outra fonte.

Entretanto, o juiz Thomas F. Hogan, que decretou as sentenças a Miller e Cooper, reconheceu que os dois jornalistas “agiram profissionalmente de boa fé”, mas justificou a condenação por, na sua opinião, a insistência na quebra do sigilo das fontes ser apropriada em termos de equilíbrio da “liberdade de imprensa e da necessidade de procedimento criminal”.

Posição diferente apresentaram em Abril vários grupos de defesa da liberdade de imprensa e os procuradores-gerais de 34 estados norte-americanos numa petição a favor dos dois jornalistas, argumentando que há um interesse público vital em que os repórteres mantenham o direito de proteger o anonimato das suas fontes, como de resto está consagrado na lei de 49 estados dos EUA e em diversos países de todo o mundo.

Mas aquele que é talvez o escândalo maior de todo este processo está bem resumido nas palavras do dono do “The New York Times”, Arthur Sulzberger Jr: “É chocante que por ter feito uma recolha de informação rotineira sobre um importante assunto público, mantendo a sua palavra para com as fontes, e mesmo sem nunca ter publicado nada sobre a agente da CIA, Judith Miller enfrente uma pena de prisão”.

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