Rusga ao “24 Horas” suscita petição ao Parlamento

Jornalistas portugueses preocupados com o desenvolvimento do caso conhecido como “Envelope 9”, envolvendo profissionais do “24 Horas”, solicitaram uma audiência urgente à Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, com o objectivo de esclarecer os membros da Comissão sobre os “abusos ou excessos de autoridade” que, pela sua gravidade, “constituem um grave atentado à democracia”.

A petição, entregue no Parlamento a 7 de Março, visa ainda sensibilizar os deputados para a necessidade de clarificar e/ou propor alterações ao dispositivo legal, de forma a garantir a salvaguarda de direitos “essenciais à Liberdade de Imprensa”, e a assegurar que a legislação em vigor não seja usada “como arma de arremesso que vise devassar e descobrir a identidade das fontes de informação dos jornalistas”.

O Sindicato dos Jornalistas (SJ) acompanha as preocupações manifestadas pelos subscritores da petição e espera que a iniciativa contribua para o aprofundamento da reflexão que aos deputados cabe em matéria de melhoria do quadro legislativo necessário à defesa e reforço da liberdade de imprensa, disse o presidente da Direcção, Alfredo Maia.

É o seguinte o texto, na íntegra, da petição do “42 Horas”:

Petição de jornalistas portugueses à Assembleia da República

Exmo Senhor

Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias

1. As recentes apreensões dos computadores de dois jornalistas no caso conhecido como envelope 9, agravadas pela decisão judicial de 1.ª instância (já recorrida mas espantosamente sem efeitos suspensivos apesar de estarem em causa direitos fundamentais) de autorizar o acesso aos seus conteúdos no próximo dia 13 de Março, constituem o mais grave ataque contra o direito ao sigilo das fontes de informação dos jornalistas de que há memória no Portugal democrático, desde Abril de 1974.

2. Constitui, por conseguinte, um atentado aos Direitos, Liberdades e Garantias de todos os cidadãos portugueses ou residentes em Portugal, visto que são eles, e só eles, que os jornalistas defendem ao manterem o sigilo das suas fontes de informação.

3. Portugal é hoje um país em que, na prática, basta uma ordem judicial a alegar uma suspeita de «acesso indevido a dados» para que qualquer jornalista português ou estrangeiro que trabalhe em Portugal possa ver os seus computadores ou documentação apreendidos e vasculhados para se descobrir as suas fontes de informação. Neste sentido, Portugal coloca-se ao nível das piores ditaduras.

4. E isto tem a ver com Direitos, Liberdades e Garantias. É que, em primeiro lugar, é falso existir, neste caso, um conflito entre o acesso indevido a dados e o sigilo profissional. O que está em causa é que os jornalistas denunciaram, nos seus escritos, um «fornecimento indevido de dados» que colocou certas autoridades na situação potencial de «acesso indevido a dados». E fizeram a denúncia porque localizaram, em documento público e não restrito pelo segredo de justiça, esse fornecimento e esse acesso indevido por parte das autoridades. A invocação do «acesso indevido a dados» pelas autoridades que apreenderam os computadores não é uma justificação, mas um pretexto, para tentarem localizar o que não está em causa: a fonte pessoal de informação dos jornalistas, já que a fonte documental – os registos informáticos – estavam em acesso público.

Mas mesmo que o conflito fosse entre o sigilo profissional e o «acesso indevido a dados» teria sempre de preponderar aquele sobre este, porque é um valor constitucionalmente consagrado e, em matéria de protecção de dados, a Constituição não se ocupa de saber quem proporciona o suposto acesso indevido mas de saber quem teve ilegítimo acesso (neste caso os jornalistas, e legitimamente, como já o demonstraram), quem os possui sem legitimidade e que utilização ilegítima possam fazer deles. Nada disto justifica a devassa de um computador: é conhecida a origem legítima do acesso, são conhecidos (publicamente declarados) quem os possui (e que se prontificaram a entregá-los intactos às autoridades) e qual a legítima utilização (a denúncia pública do fornecimento ilegal e ilegítimo feito a autoridades judiciais).

5. Com o que foi perpetrado pelas autoridades judiciais e se não for atalhado em tempo e definitivamente, lamentaremos amargamente ter de reconhecer que, em Portugal, os jornalistas deixaram de poder prometer ou garantir sigilo e confidencialidade aos cidadãos que lhes dão informações.

6. Perseguir as fontes dos jornalistas é criar um clima de Estado repressivo e policial, próprio de ditaduras e não de Estados democráticos onde a liberdade de informação é indissociável da própria democracia. Esta situação, como facilmente pode ser entendida, coloca em risco a própria democracia em Portugal, violando princípios fundamentais de Liberdade de Imprensa defendidos por todos os Estados da União Europeia. E isto tem a ver com Direitos, Liberdades e Garantias.

7. Como é do conhecimento geral, os jornalistas são os únicos responsáveis pelo que escrevem, podendo ser responsabilizados civil ou criminalmente por quem se sinta lesado com o artigo.

8. As informações que recebem das suas fontes, ou até anonimamente, limitam-se a ser meras informações, dadas muitas vezes a título pessoal. Só depois de a informação ser validada pelo jornalista é que o mesmo jornalista pode entender, ou não, divulgar uma notícia com base nessa ou em mais fontes de informação. Se a fonte for correctamente identificada, porque o desejou e autorizou a publicação do que informou ou declarou, será ela a assumir a responsabilidade do que lhe é publicamente atribuído, excepto em caso de incitamento ao crime, situação em que o jornalista partilha a responsabilidade com a fonte. Mas é diverso o regime quando se trata de fonte confidencial.

9. A relação entre o jornalista e a sua fonte confidencial é estritamente pessoal. E sigilosa. E o jornalista que aceita uma fonte confidencial garante-lhe que é ele, jornalista, quem assume toda a responsabilidade do que vier a ser publicado. Por isso, não se tratando de cumplicidade do jornalista com a fonte em relação a um crime em decurso ou futuro, relacionado com o valor vida ou segurança colectiva, a pesquisa da fonte pela autoridade policial ou judicial é violadora da Constituição.

10. Como é do conhecimento geral, a maior parte das pessoas que dão informações aos jornalistas num registo sigiloso fazem-no porque estão convencidas de que sofreriam represálias, por vezes extensíveis às suas famílias, se a sua identidade fosse revelada. Pretender manter confidencial a sua identidade é um direito que lhes assiste, e que o jornalista lhe garante.

11. Não estando em causa o direito à vida nem a segurança colectiva, devidamente justificada, violar esse direito ao sigilo e à intimidade é, em si, violar os direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos em geral e não só dos cidadãos em causa com a possível devassa.

12. Violar o sigilo e a confidencialidade entre as fontes e os jornalistas com base numa despropositada alegação de «acesso indevido a dados» significa intimidar cidadãos para que não confiem mais nas suas conversas com os jornalistas e deixem de os informar sobre abusos cometidos, por exemplo, pelas autoridades. Significa ficar sem notícias incómodas para os poderosos que detêm o poder, seja ele político, económico ou… judicial. Significa uma ditadura.

13. A limitação do direito de sigilo profissional dos jornalistas constitui uma limitação do direito à liberdade de informar e do direito de ser informado, ambos fundamentais para a garantia da democracia e do Estado de direito. Pela centralidade dos bens constitucionais tutelados pelo sigilo das fontes de informação, a restrição deste direito, mesmo por parte do poder judicial, deve limitar-se a situações extremas, de ultima ratio, sob pena de se pôr em causa o acesso à informação sobre questões de interesse público, condição essencial do autogoverno democrático do povo.

Como decorre da própria Constituição, a liberdade de expressão dos jornalistas e dos meios de comunicação em geral é um direito constitucionalmente garantido e directamente aplicável (sem lei, contra a lei e em vez da lei) cobrindo o direito de difundir informações de relevante interesse público, necessárias ao bom funcionamento dos órgãos legislativos, executivos e judiciais, independentemente de qualquer disposição legislativa ou decisão judicial em contrário. Assim se justifica, de resto, a condenação do Estado português pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violações do direito à liberdade de expressão levadas a cabo por decisões dos tribunais nacionais.

Do ponto de vista do direito constitucional à liberdade de expressão, nem as normas sobre segredo de justiça nem as normas sobre segurança nacional, ou quaisquer outras normas, podem restringir a difusão pelos jornalistas de informações devidamente investigadas que pretendam denunciar, diante da publicidade crítica democrática, a utilização indevida destes ou outros institutos jurídicos por parte de quaisquer instituições públicas. Sem acesso à informação por parte do público não existe uma opinião pública autónoma, sendo que esta é a garantia substantiva da própria democracia.

14. Nesse sentido, vimos por este meio solicitar uma audiência urgente a essa comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, de forma a esclarecermos, de viva voz, os senhores deputados membros dessa comissão sobre os abusos ou excessos de autoridade que colocam em risco valores essenciais de transparência na administração da Justiça, e de violações de Direitos, Liberdades e Garantias que afectam todos os cidadãos, e que, pela sua gravidade, constituem um grave atentado à democracia.

15. Pretende este documento ser igualmente uma petição para que essa Comissão analise a lei em causa (67/98 de 26 de Outubro) – cuja transposição da directiva comunitária foi ampliada pelo Parlamento — e clarifique ou/e proponha as alterações necessárias ao dispositivo legal, de forma a que esta Lei não colida com Direitos, Liberdades e Garantias essenciais à Liberdade de Imprensa, nomeadamente ao direito da Imprensa denunciar abusos cometidos com o acesso a dados particulares, a escutas e a qualquer outra devassa da intimidade dos cidadãos, além de, em nenhuma circunstância, esta Lei poder ser usada como arma de arremesso que vise devassar e descobrir a identidade das fontes de informação dos jornalistas.

16. Temos perfeita noção da separação de poderes e não desejamos beliscar esse princípio constitucional, que a todos protege. Mas não podemos todos deixar de constatar que as ordens judiciais emanam de Leis criadas pela Assembleia da República, por mandato expresso do Povo, pelo que deve ser esta a verificar os reais efeitos da aplicação das mesmas leis na sociedade, assim como se a sua interpretação coloca em causa princípios essenciais do Estado Democrático e Direitos, Liberdades e Garantias que os deputados da Nação juraram defender. E, nesse sentido, defender o Estado Democrático.

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