Reportagens feitas por estudante de jornalismo

Em resposta à consulta do Conselho de Redacção de um periódico cujo director o consultara sobre a publicação de um conjunto de trabalhos feitos por estudantes de jornalismo, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas foi de parecer que tal publicação só deveria efectuar-se com um enquadramento perfeitamente esclarecedor para o público.

Pedido de parecer: O director de um jornal solicitou ao Conselho de Redacção parecer sobre a eventual inserção, nesse órgão, de trabalhos de natureza jornalística – designadamente reportagens – realizados por estudantes de jornalismo, nessa qualidade e identificados como tal. A fim de fundamentar a sua posição sobre o assunto, o CR decidiu consultar o Conselho Deontológico sobre as implicações de natureza deontológica e outras decorrentes da eventual aceitação daquele tipo de colaboração.

Análise: Não é obrigatoriamente jornalístico todo e qualquer material publicado num órgão de informação, mesmo que tenha a aparência de notícia, reportagem ou foto-reportagem. O que caracteriza um acto jornalístico não é a sua aparência informativa, mas o contrato de lealdade que subjaz, entre o autor da peça, o seu editor ou difusor e o público.

O que é específico, pois, de um acto jornalístico, não é nem a sua forma nem sequer o seu conteúdo, mas antes uma teia de garantias que, por força de compromissos éticos (alguns dos quais, felizmente, consagrados em lei, em Portugal), e da recusa de incompatibilidades por parte do jornalista, permitem ao destinatário da informação ter referências de credibilidade.

Por outras palavras: pode qualquer cidadão, medianamente alfabetizado, redigir em forma de notícia ou de reportagem um conjunto de informações escrupulosamente verdadeiras. Nem é difícil: a técnica jornalística, ao contrário do que há quem queira fazer crer, é, pelo menos na sua versão rudimentar, a parte mais fácil e acessível da profissão de jornalista. Nem é improvável que não jornalistas possam redigir notícias ou reportagens com mais qualidade do que jornalistas. Não é isso que está em causa: o problema é não estar ínsito, num acto de aspecto jornalístico praticado por não jornalista, um compromisso de conduta que reveste de credibilidade a mensagem.

O contrato de lealdade do jornalista tem três destinatários: as fontes, os visados e o público. Um acto de aparência jornalística praticado por não jornalista, por definição, desprotege as fontes, porque o autor não pode invocar sigilo profissional; vitimiza os visados, porque não pressupõe nem é exigível que o autor se vincule a um código deontológico nem recuse incompatibilidades; e deixa o público indefeso perante a impossibilidade de escrutínio do acto supostamente jornalístico.

Quer isto dizer que, então, fica o acto de aparência jornalística ao abrigo da responsabilização? Claro que não, mas não é escrutinado em sede deontológica e responde tão-somente como um caso vulgar de polícia. Na verdade, perante actos desta natureza, a fonte tem, pelo seu lado, a possibilidade de se isentar de responsabilidades pelo que tenha dito sem intenção de ver publicado (se o autor do trabalho fizer questão em afirmar que deu conta à fonte da sua intenção de publicação – sem a ter advertido da sua condição não profissional, pode abrir as alíneas legais sobre usurpação de funções e exercício ilegal da profissão…); o visado, por seu turno, pode avançar com toda a artilharia contra quem não tem o «interesse público» como escudo profissional; e o público pode – e deve!-, no meio desta vertigem de implicações jurídicas, descarregar a sua desconfiança sobre o órgão de informação que deu guarida ao imbróglio, mesmo que bem-intencionadamente: é que nisto da credibilidade e da imagem da credibilidade (tão importante uma como a outra), por bem fazer, há sempre mal haver…

Repare-se que estes trabalhos não se confundem com os textos ou fotos de estagiários curriculares, cujo (ab)uso está a ser, perigosamente, cada vez mais vulgar nos jornais. É que, nestes trabalhos curriculares, mal ou bem, é o jornal que assume por inteiro a autoria e responsabilidade, não a transferindo para o estagiário curricular, mesmo que lhe assine a peça.

Concretizando e pressupondo que o único interesse do jornal que aceita reportagens feitas por estudantes – identificados como tal – é o de estimular o gosto pela profissão e jamais viciar as regras da concorrência ou tornear as leis de trabalho publicando material não qualificado e, eventualmente, não remunerado: só faz sentido, no âmbito do compromisso de transparência e lealdade que um jornal tem com o seu público, que tais trabalhos surjam publicados no contexto de uma iniciativa pedagógica ou de estímulo ao aparecimento de valores. Assim sendo, as «notícias» e «reportagens» não podem ser avaliadas pelo que informem mas tão-somente pelo exercício da técnica. Nestes termos, é necessário ter, para com estes trabalhos, o mesmo sentido de escrúpulo, perante o público, que existe para outras rubricas ou áreas do material publicado como a publicidade, a opinião de leitor ou os passatempos, que leva à sua compartimentação e clara identificação do objectivo do espaço consagrado.

Se as referidas «notícias» ou «reportagens», mesmo que identificando os seus autores como estudantes, gerarem, minimamente que seja, a convicção de que são mesmo notícias ou reportagens, é o jornal que hipoteca a sua credibilidade – e a imagem do jornalismo e dos jornalistas sofrerá, por ricochete.

Conclusão: É negativo, para a credibilidade do jornalismo e dos jornais, que sejam publicados, como informação, trabalhos de noticiário ou reportagem de pessoas não qualificadas profissionalmente como jornalistas. A publicação destes trabalhos só se justifica em rubricas ou páginas especiais cujo único objectivo seja o de estimular as candidaturas à profissão – e nunca, através de tais trabalhos, substituir ou complementar o noticiário do órgão de informação.

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