Conselho Deontológico
Queixa nº 10/Q/2022
Queixa referente à notícia com o título “Mulheres batem de carro e empatam o trânsito na Figueira da Foz”, publicada no jornal online Notícias de Coimbra.
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD) recebeu uma queixa da presidente do Conselho Geral do Sindicato dos Jornalistas, apresentada em 17 de novembro de 2022, denunciando “uma violação clara do ponto 9 do código deontológico do jornalista” na notícia com o título “Mulheres batem de carro e empatam o trânsito na Figueira da Foz”, publicada e assinada pelo jornal online Notícias de Coimbra, no passado dia 16 de novembro.
Procedimento
No seguimento da queixa, o CD, a 21 de novembro, contatou o diretor do Notícias de Coimbra, Fernando Brito Moura, dirigindo-lhe as seguintes perguntas:
1 – Porque razão aparece no título a palavra “Mulheres” ?
2 – Caso o acidente em causa fosse com dois condutores homens, o título da notícia mencionaria o sexo dos condutores?
3 – A referência ao sexo ou género é prática comum nos títulos/notícias publicadas no jornal online que dirige? Pode citar alguns exemplos?
4 – Considera que o título da notícia viola o artigo 9º do Código Deontológico dos Jornalistas?
5 – O ponto 5º do Estatuto Editorial do Notícias de Coimbra proclama o respeito pela “legislação em vigor na República Portuguesa”. Nesse contexto entende que o título da notícia em causa respeita o Princípio de Igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição Portuguesa?
Fernando Brito Moura respondeu a 18 de dezembro, prestando escassos esclarecimentos e maioritariamente por monossílabos:
1 – Porque é verdade.
2 – Sim.
3 – Sim.
Quanto aos exemplos publicados no Notícias de Coimbra, o diretor do jornal online enviou a hiperligação de seis notícias, todas elas referentes a homens. Em quatro títulos aparece a palavra “Homem” e nos restantes “Sexagenário” e “Cinquentão”.
4 – Não
5 – Não.
Análise
Lamentando o parco esclarecimento do diretor do Notícias de Coimbra, que não clarifica o porquê do uso da palavra “Mulheres” no título da peça, o CD considera que a referência ao género no título da notícia, em apreciação, revela um claro tratamento discriminatório das pessoas que, infelizmente, tiveram o acidente.
Os exemplos que Fernando Brito Moura enviou ao CD, para comprovar, segundo ele, a prática comum da referência ao sexo ou género nos títulos e notícias publicadas no jornal online Notícias de Coimbra, não são, claramente, idênticos ao caso em análise. Com efeito, a palavra homem aparece como vítima (“morre” ou “desaparece”, na sequência de um despiste), como criminoso (violência doméstica e cultivo de substâncias domésticas).
Acresce que, também das pesquisas que o CD fez das notícias do Notícias de Coimbra através de palavras-chave como “acidente”, “bate”, “choca”, “homem/homens”, “mulher” não foi possível detetar qualquer caso semelhante àquele que foi objeto de reparo da presidente do Conselho Geral do Sindicato de Jornalistas.
Ainda assim poderemos dizer que há uma situação de discriminação?
O conceito de discriminação, por si só, não é necessariamente reprovável. Como refere Cristina Paranhos Olmos, Doutora, mestre e especialista em direito do trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), a discriminação pode “constituir inclusive ação afirmativa, a que os sujeitos podem inclusive estar obrigados pelo Direito” [1]. Exemplo disso é a discriminação em favor das pessoas com deficiência, ou os sistemas de cotas a serem preenchidas por pessoas com especiais dificuldades em aceder a determinados trabalhos e funções.
Por seu lado, Bruno Mestre, Doutor em Direito (PhD) pelo European University Institute, de Florença, trata a complexidade e a evolução que o conceito de discriminação tem assumido no âmbito do Direito – uma matéria que transcende o nosso âmbito de análise –, sublinhando, em particular a sua relação com o estereótipo. Escreve a propósito:
Com efeito, um “estereótipo” (do grego stereos+typos, literalmente “impressão sólida”) consiste numa regra de experiência que visa colmatar a falta de informação sobre um determinado indivíduo, atribuindo-lhe certas convicções generalizadas acerca de um grupo. Por exemplo, na avaliação da aptitude de um indivíduo para realizar um determinado trabalho, a exibição por parte deste de uma qualquer certificação poderá constituir uma forma de o avaliador partir do princípio que o candidato tem as aptidões necessárias para a função, em virtude de – habitualmente – os titulares daquelas certificações possuírem os pressupostos exigidos para a mesma. Estes estereótipos podem ser normativos ou estatísticos conforme se alicerçarem somente em convicções generalizadas acerca de um determinado grupo sem quaisquer dados objectivos (e.g.: as mulheres normalmente gostam de crianças) ou terem uma base sólida para a mesma (e.g.: as mulheres, em média, calçam um número inferior à média dos homens). A crítica assenta no facto de os estereótipos constituírem uma forma geralmente cruel e rudimentar de avaliação das aptidões de um determinado indivíduo, atribuindo-lhe determinadas características de um grupo para as quais não contribuiu, constituindo mesmo um desincentivo ao combate a esses mesmos estereótipos (…). [2]
Acontece que no caso das mulheres e das suas habilidades para conduzir, existe um estereótipo “normativo” que está longe de ser sustentado estatisticamente. Se seguirmos os diferentes estudos da European Transport Safety Council (ETSC), os indivíduos do sexo masculino têm uma muito maior propensão para o acidente do que os do género feminino, devido ao seu tipo de condução e exposição ao risco. Ao contrário, o estereótipo de que as mulheres são “aselhas” a conduzir reflete-se, numa condução mais cuidada, suave, consciente e segura. Segundo ainda o relatório Flash 25 do ETSC, se nas estradas europeias circulassem apenas condutoras a taxa de mortalidade nas estradas seria 20 por cento mais baixa, sendo que na mortalidade rodoviária as mulheres aparecem sobretudo como peões ou como passageiras de automóveis.
Ainda que o Código Deontológico do Jornalista seja bem claro sobre a rejeição da discriminação, num parecer solicitado por Diogo Pires Aurélio, então provedor do Diário de Notícias, referia-se aos efeitos colaterais dos estereótipos sobre etnias nos seguintes termos:
Se, no acontecimento que relata, nunca seria relevante o jornalista informar que um dos intervenientes é português, de raça branca ou heterossexual, não se vêem razões para que em acontecimento em tudo semelhante se indique que um interveniente é africano, de etnia cigana, ortodoxo ou heterossexual. [3]
Do mesmo modo, considera o CD que este princípio se deve aplicar a outras situações de discriminação: se, no acontecimento que relata, não é relevante o jornalista informar que homens chocam de carro – como parece ser esse o critério usado nas notícias disponibilizadas pelo Notícias de Coimbra e por aquelas que o CD analisou por moto próprio – não se vê qual a relevância de o mesmo ter sido feito no título do texto informativo aqui analisado.
Embora não se possa dizer que houve uma intenção deliberada do Notícias de Coimbra insistir num estereótipo alicerçado em infundadas convicções generalizadas, é inegável o tratamento discriminatório no título “Mulheres batem de carro e empatam o trânsito na Figueira da Foz”, perante a inexistência de um elemento factual na notícia que justifique que a causa do acidente tenha sido pelos condutores serem do género A, B ou C.
O conteúdo da notícia e o seu lead são rigorosos e informativos, mas o título é claramente “irresponsável”.
A este propósito, retomaríamos ainda as conclusões de um parecer do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (Queixa Nº14/Q/99) onde se refere: “Um título é um veículo importantíssimo para passar mensagens explícitas ou subliminares. Deve por isso ser tratado com tanto cuidado – ou mais! – do que o interior das notícias”.
Deliberação
O Conselho Deontológico considera que o título, e não a notícia, “Mulheres batem de carro e empatam o trânsito na Figueira da Foz”, em particular o uso da palavra “Mulheres”, difundido pelo Notícias de Coimbra, não respeita princípios estruturantes no exercício da profissão de jornalista, nomeadamente:
– o ponto 9º do Código Deontológico dos jornalistas que expressa que “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual.”.
– a alínea E do ponto 2 do 14º artigo do Estatuto do Jornalista, que explicita que um dos deveres do jornalista é “Não tratar discriminatoriamente as pessoas, designadamente em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual;”
O CD recomenda ao Notícias de Coimbra que, em situações semelhantes, tenha um maior cuidado na elaboração das respetivas notícias, de forma a evitar que elas fomentem qualquer tipo de discriminação.
A “pressão” da contagem de cliques, nos meios de comunicação social digitais, não pode levar a escolher a via, condenável, do sensacionalismo, desrespeitando a dignidade do ser humano.
Lisboa, 21 de dezembro de 2022
O Conselho Deontológico
[1] Em verbete da Enciclopédia Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/395/edicao-1/discriminacao
[2] Mestre, B. (2015). Sobre o conceito de discriminação – Uma perspectiva contextual e comparada. Direito e Justiça, 1(Especial), 377-410. https://doi.org/10.34632/direitoejustica.2015.9926
[3] Aurélio, D. P. (2001). Livro de reclamações – Exercícios de deontologia da informação. Lisboa: Notícias, p. 253