Queixa da “rede ex aequo” relativa ao artigo “Meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos”, publicado pelo jornal “Nascer do Sol”

Conselho Deontológico

Queixa nº 9/Q/2022

Queixa da “rede ex aequo” relativa ao artigo “Meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos”, publicado pelo jornal “Nascer do Sol”

I. Natureza da Queixa

O Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas recebeu, a 15 de Outubro de 2022, uma queixa da direção da “rede ex aequo” denunciando “discursos alarmistas, baseados em informação falsa”, potenciadores de “possíveis situações de discriminação e violência para com populações já marginalizadas e vulneráveis”, referindo-se a um artigo assinado pelo jornalista José Miguel Pires na edição impressa e online do jornal “Nascer do Sol” dessa mesma data. O foco da notícia era o projeto de lei nº332/XV, apresentado pelo PS, sobre medidas orientadoras para as escolas para a implementação da Lei n.º 38/2018, sobre o direito à autodeterminação da identidade de género.

A “rede ex aequo” sustenta o pedido de parecer ao CD nos seguintes argumentos:

  1. Defende que o título do artigo “meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos” corresponde a uma descrição “incorreta” que “tem em vista a indignação da população em geral e a criação do medo”. Sublinha o consulente que pessoas a quem foi “atribuído o género feminino à nascença, que pedem para ser tratadas por meninos, são efetivamente meninos” e que “mesmo que nem todas as pessoas, por razão de nacionalidade ou neste caso de idade, possam proceder à mudança legal no nome e marcador de género”, o “direito de autodeterminação e da não-discriminação” previsto na lei portuguesa “permanece e é para ser respeitado”.
  2. Acusa o autor da notícia, José Miguel Pires, de veicular “informação falsa e incorreta” ao afirmar que a lei só se refere a pessoas com pelo menos 16 anos de idade. Sublinha a consulente que “apesar de só pessoas acima dos 18 poderem mudar de nome e marcador de género legalmente, ou acima dos 16 mediante condições adicionais, a lei protege todas as pessoas de discriminação independentemente da idade, sendo inclusive especificado na Lei n.º 38/2018 que a escola tem de garantir o bem-estar e respeito das crianças e jovens, e estando contemplado também no Estatuto do Aluno que é proibida a discriminação com base na identidade de género.” Na ótica da consulente, José Miguel Pires aponta uma incongruência entre a lei em vigor e a proposta de lei agora apresentada e tal não se verifica.
  3. Entende que o autor recorre a um “discurso alarmista e opinativo, afirmando que “o documento é, obviamente, polémico”, que as propostas “chocam [a] Oposição” e que “não falta quem aponte a incongruência [da lei]”, ao dar a entender que ele próprio não concorda com a lei e a proposta de lei ao longo do texto”, acrescentando que “a redação de notícias, não sendo estas artigos de opinião, deve manter-se isenta, cingir-se aos factos verídicos e não contar com a presença de comentários imprudentes e negligentes.”
  4. Sobre as “citações e comentários” de personalidades políticas ouvidas para a elaboração do artigo, a “rede ex aequo” questiona o espaço dado a “argumentos inflamatórios” e a veiculação de “informações gritantemente falsas e incorretas, não sendo posteriormente apresentadas as conclusões da pesquisa imparcial por parte do jornalista”. Conclui a “ex aequo” que “o noticiamento deste tema não segue os princípios do jornalismo e contribui apenas para a alimentação de uma polémica.”

A “rede ex aequo” identifica de seguida quais as passagens da notícia onde considera que o jornalista deveria ter esclarecido e enquadrado o que lhe foi transmitido pelas suas fontes:

  1. Quando são feitas “largas críticas à atualidade da lei e que remetem para a sua inconstitucionalidade, para a ideia da ‘intromissão do Estado’ nos assuntos da família e na vida privada”;
  2. Quando é referido o ““perigo” que a terapia hormonal configura para a saúde física e mental das crianças e que referem que a maioria das crianças se arrepende e “deixaram de ser” trans quando chegam à puberdade”;
  3. Quando se veiculam acusações ao Estado de “contrariar a ciência e dispensar a medicina”, sendo afirmado que “não têm vergonha em fazer este tipo de propostas e de promover processos de ‘transição social’, cujo resultado é devastador”.”

Em relação a cada um destes pontos, a consulente contrapõe com os seguintes argumentos:

  1. “A lei não nega as responsabilidades e papel das pessoas encarregadas de educação na vida das crianças e jovens, garante apenas os direitos e bem-estar das crianças e jovens, sendo inclusive necessário a autorização parental para a mudança de nome e marcador de género de pessoas entre os 16 e os 18 anos.”
  2. “Nem a lei atual, nem a proposta de alteração à lei referem a terapia hormonal feita a crianças, nem implicam de qualquer maneira a intromissão do Estado nos assuntos de família”.
  3. “Não existem dados que apoiam a afirmação de que a transição social tem efeitos “devastadores”, muito pelo contrário, quando a pessoa é apoiada neste processo, existem melhorias na sua saúde mental e bem-estar.”
  4. A consulente nota ainda que no artigo há “alguns poucos comentários a favor da lei”.

II Procedimentos

A 28 de outubro de 2022 o CD contactou José Miguel Pires e pediu esclarecimentos quanto às questões levantadas pela queixa e uma reação às acusações veiculadas na mesma, endereçando-lhe as seguintes perguntas:

  1. a.     Qual o critério usado na escolha do termo “exigir” presente em título;
  2. Como sustenta a afirmação “não falta quem aponte a incongruência entre a lei a regulamentar (em vigor) e a lei regulamentadora (agora proposta)”;
  3. Como fundamenta a expressão “E chocam a oposição”, colocada no lead.
  4. Na queixa que chegou ao Conselho Deontológico pode ainda ler-se o seguinte: “O autor afirma que a lei só se refere a pessoas com pelo menos 16 anos de idade, que é informação falsa e incorrecta. O autor refere ainda a incongruência entre a lei em vigor e a lei agora proposta, que não se verifica.”

Como comenta estas afirmações? Teve a oportunidade de ler a proposta em causa antes da publicação da notícia? Considera que teve o cuidado de enquadrar factualmente as questões abordadas?

  1. Verificou a veracidade das afirmações das personalidades entrevistadas para o artigo, nomeadamente quando são citados estudos ou conclusões de especialistas? Se não, porquê?
  2. Procurou diversificar as fontes contactadas, de modo a poder apresentar uma peça equilibrada nos diferentes pontos de vista?

III. Resposta à queixa

O jornalista respondeu a 1 de novembro, prestando os seguintes esclarecimentos:

1.a. O conteúdo dos títulos não é da sua responsabilidade.

1.b. Sobre a referência à incongruência entre a nova proposta e a lei de 2018, diz que se fundamenta em relatos que recebeu “de diferentes fontes, enquanto produzia esta peça”. Dá como exemplo a argumentação do deputado André Ventura, que questiona “qual o sentido de permitir” que crianças iniciem socialmente o processo de mudança de sexo, quando a lei só permite que o façam os maiores de idade ou a partir dos 16 anos com autorização dos pais. A este respeito, o jornalista argumenta ainda que “a proposta de lei nº332/XV fala em «crianças e jovens» repetidamente e, a título de exemplo, no número 1 do Artigo 4.º, refere «crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença». Ora, se analisarmos a Lei n.º 38/2018, que está intrinsecamente ligada a esta proposta, encontramos no número 2 do Artigo 7.º, relativo à Legitimidade, a seguinte citação: «as pessoas de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos podem requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil […]». Daí existir, no projeto de lei nº332/XV, uma incongruência, uma vez que – e este facto foi-me até esclarecido por uma fonte próxima – as propostas feitas só se deverão aplicar a pessoas que se encontrem em processos de mudança de sexo. Ou seja, pessoas com, pelo menos, 16 anos de idade, e não «crianças».”

  1. c. Sobre a expressão “chocam a oposição”, José Miguel Pires salienta que “na peça é possível encontrar várias afirmações de membros da oposição que vão contra a proposta em questão, fazendo-lhe críticas.”
  2. Quanto às acusações de veiculação de informação falsa e incorreta, o jornalista garante que “a proposta foi estudada exaustivamente antes da publicação da notícia” e defende que “está corretamente enquadrada”. Acrescenta que o jornal “Nascer do Sol” “fez questão de incluir ipsis verbis a proposta na edição em papel, de forma a que os leitores pudessem consultá-la na sua íntegra.”
  3. Em relação às citações e opiniões recolhidas junto de partes interessadas, José Miguel Pires afirma: “as afirmações feitas pelas personalidades entrevistadas são da sua própria responsabilidade, ficando a si associadas e tendo eu reproduzido as suas palavras ipsis verbis, ficando claramente definido tratarem-se de citações.” Assegura, ainda assim, que “a veracidade das mesmas foi devidamente analisada.”
  4. Sobre o equilíbrio e diversificação das fontes contactadas, adianta que procurou, “atempadamente, ter diferentes pontos de vista para conseguir apresentar um trabalho onde todos os ‘lados’ pudessem expor os seus argumentos” e defende que o artigo apresenta “citações tanto de membros de partidos da oposição como do próprio PS”, nomeadamente “os deputados Isabel Moreira e Miguel Costa Matos, principais signatários desta proposta”. Esclarece também que contactou “atempadamente a ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo”, mas que a resposta ”não chegou até à hora de fecho da edição em questão”. Adianta o jornalista que “o mesmo aconteceu com vários especialistas, que ou se negaram a responder às questões colocadas, ou responderam já fora de uma janela temporal útil.”

Não sendo o conteúdo dos títulos da responsabilidade de José Miguel Pires, o CD questionou o diretor do jornal “Nascer do Sol”, Mário Ramires, a 3 de novembro, sobre a opção pelo termo “exigir” contido no título, tendo recebido uma resposta no mesmo dia.

Mário Ramires esclarece que não esteve presente no fecho da edição de 15/10/2022 do jornal “Nascer do Sol”, mas acrescenta que “o título foi elaborado de acordo com o teor da proposta de diploma objeto da notícia em causa, ao lado da qual foi reproduzida na íntegra a referida proposta de lei (cujos textos integrais poderão, pois, consultar na dita edição).”

Acrescenta Mário Ramires: “não percebemos o alcance da pergunta nem concebemos como esclarecer o porquê da utilização de uma palavra – no caso, verbo – cujo significado todos conhecem e que decorre da interpretação literal e racional do articulado nessa mesma proposta de lei.”

IV. Análise

Em função da queixa apresentada pela “rede ex aequo” e das respostas das partes envolvidas, o Conselho Deontológico procedeu à seguinte análise:

  1. O título

A formulação contida no título — “Meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos” — pode, efetivamente, ser entendida como refletindo um ponto de vista: o de que crianças que são uma coisa poderão “exigir” ser tratadas por outra. Ou seja, no subtexto da frase, a ênfase está colocada numa alegada “anormalidade” de alguém poder ser tratado por quem não é.

Como veremos adiante, o texto da lei da qual decorre o projeto de lei alvo da notícia prevê que os estabelecimentos de ensino passem a fazer respeitar direitos reconhecidos às crianças que não se identificam com o género que lhes foi atribuído. Escolher colocar a tónica numa “exigência” que estas crianças possam fazer e não no facto de passar a ser respeitado um direito previsto na lei tem um significado em si mesmo. A formulação do título escolhido pelo jornal “Nascer do Sol” pode indicar a exploração de um potencial choque da opinião pública, configurando uma forma de sensacionalismo.

  1. Veiculação de “informação falsa e incorreta”

O início formal do processo de mudança de nome e marcador de género só está previsto para maiores de 18 anos ou maiores de 16 com autorização dos pais, mas a lei efetivamente protege todas as pessoas de discriminação, independentemente da idade. A lei 38/2018, da qual decorre o projeto de lei em questão, diz o seguinte no ponto 2 do artigo 12.º:

  1. Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais.

O Tribunal Constitucional chumbou os números 1 e 3 do artigo 12.º, em 2021, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, mas não o ponto 2.

Ou seja, mesmo que a mudança formal e legal só seja permitida a partir dos 16 anos, a lei também se aplica aos cidadãos menores que estão a passar por esse processo, ainda antes de terem idade para fazer mudanças oficiais. E, nesse sentido, a lei prevê que as escolas adotem medidas para salvaguardar os direitos de crianças e adolescentes que manifestem vontade de ser tratados por outro género que não o biológico. A incongruência apontada na notícia não é, portanto, um facto, é uma opinião, e deve ser claramente enquadrada como tal.

  1. Discurso “alarmista e opinativo”

Afirmar que o documento em questão é “polémico” e que “choca a oposição” é legítimo e factual. A matéria em questão, efetivamente, divide opiniões e são apresentados argumentos por parte das entidades ouvidas e identificadas que sustentam essa afirmação.

Já o recurso à expressão “não falta quem aponte a incongruência [da lei]” seria legítimo se pretendesse apenas sinalizar que vários entrevistados pensavam assim, tendo ou não razão. Mas o jornalista acaba, efetivamente, por enquadrar essa “incongruência” como um facto interpretado por si, quando escreve o seguinte:

O documento é, obviamente, polémico, porque, se é certo que o  projeto de lei surge na sequência da Lei n.º 38/2018 –  «que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa», e que, portanto, só se refere a cidadãos com, pelo menos, 16 anos de idade –, o articulado refere, várias vezes, a palavra «criança». Assim, não falta quem aponte a incongruência entre a lei a regulamentar (em vigor) e a lei regulamentadora (agora proposta).

Mais uma vez, não é o que se lê no número 2 do artigo 12.º da Lei n.º38/2018, referido no ponto anterior. Ao contrário do afirmado pelo jornalista José Miguel Pires, a lei n.º 38/2018 não se refere apenas a cidadãos “com, pelo menos, 16 anos de idade” — inclui disposições sobre condições exigíveis aos estabelecimentos de ensino em relação a “crianças e jovens” nestas circunstâncias.

A este respeito, no esclarecimento enviado ao CD, o jornalista desenvolve este argumento, sublinhando que “a proposta de lei nº332/XV fala em «crianças e jovens» repetidamente” e que a Lei n.º 38/2018 refere que apenas “as pessoas de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos podem requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil […]”. E conclui: “Daí existir, no projeto de lei nº332/XV, uma incongruência, uma vez que — e este facto foi-me até esclarecido por uma fonte próxima — as propostas feitas só se deverão aplicar a pessoas que se encontrem em processos de mudança de sexo. Ou seja, pessoas com, pelo menos, 16 anos de idade, e não «crianças».”

Parece estar em causa uma confusão do jornalista entre a idade a partir da qual se pode legalmente iniciar o processo de mudança da menção do sexo no registo civil e o disposto na lei em relação aos cidadãos que estão a passar por esse processo social, ainda antes de poderem fazer mudanças oficiais.

  1. Citações e comentários das partes interessadas

Sobre as citações e comentários das personalidades políticas ouvidas pelo jornalista para elaboração da notícia, importa distinguir o que é matéria de opinião e o que são factos. O jornalista afirma, na resposta enviada ao CD, que “as afirmações feitas pelas personalidades entrevistadas são da sua própria responsabilidade, ficando a si associadas e tendo eu reproduzido as suas palavras ipsis verbis, ficando claramente definido tratarem-se de citações.”

O que diz o Código Deontológico dos Jornalistas, no seu primeiro artigo, é claro: “O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso.” Quando as partes interessadas apresentam alegados factos, o papel de verificação do jornalista não termina quando se abrem aspas para uma citação. As expressões do foro opinativo dos responsáveis políticos entrevistados, desde que devidamente enquadradas, fazem parte do debate e o papel do jornalismo não é impedi-lo ou branquear os vários pontos de vista. Mas quando se trata de citação de supostos dados factuais, as boas práticas jornalísticas recomendam mais prudência.

Quando o deputado e líder do Chega André Ventura menciona que casos de “arrependimento” em crianças, nesta matéria, “não são raros”, apontando mesmo “estudos que indicam que 40% das crianças que foram diagnosticadas com disforia de género deixaram de o ser na puberdade”, seria desejável que o jornalista pedisse ao entrevistado um esclarecimento que deixasse claro que estudos são esses, de onde vêm esses dados apontados. Do mesmo modo, quando André Ventura acusa o grupo de deputados socialistas que apresentam a proposta em questão de pretender “contornar a lei e abrir espaço para o debate sobre os tratamentos hormonais em crianças”, seria necessário enquadrar o leitor e especificar que tais tratamentos não estão previstos e não são mencionados na proposta apresentada.

O mesmo está em causa quando se cita Francisco Camacho, líder da Juventude Popular. A afirmação feita por este dirigente de que “o período em que este documento surge” é “curioso” por coincidir com a discussão do Orçamento do Estado, acusando o PS de atirar “areia para cima dos olhos portugueses” é matéria de opinião e própria do normal debate político. Já quanto à afirmação de Francisco Camacho que aponta para o desrespeito da proposta de lei “pelas opiniões dos especialistas”, carece de clarificação sobre quem são esses especialistas e o que defendem — não deixando simplesmente no ar, sem sustentação, a ideia de que há pareceres científicos que não recomendam o sentido da proposta em questão.

Outro exemplo dessa falta de esclarecimento do que deveria ser factual: a notícia cita Miguel Costa Matos, líder da juventude do PS, que afirma que “abaixo dos 16 anos” a legislação “exige um extenso processo de avaliação médica e diagnóstico médico.” Ora, o que a lei diz é que nem as crianças, nem os adolescentes (nem qualquer cidadão) precisam de ter um atestado médico para entrarem em processo de “transição social de identidade”. Atualmente não é necessário qualquer diagnóstico clínico para que uma pessoa autodetermine qual é o género com que se identifica.

Esta não é uma questão de perspectiva, seria necessário que o jornalista esclarecesse na notícia o que está, de facto, previsto na legislação em vigor.

Na resposta ao CD, o jornalista José Miguel Pires garantia que “a veracidade” das afirmações das fontes “foi devidamente analisada”, mas há passagens em que tal procedimento não fica claro — e outras em que, claramente, não houve esclarecimento de que a informação prestada estava incorreta.

Mais à frente, José Miguel Pires afirma o seguinte: “Ao ‘Nascer do SOL’, [Francisco] Camacho contraria Costa Matos, garantindo que «esta agenda tem um erro na sua origem: dispensar o acompanhamento de profissionais de saúde, nomeadamente médicos». Em 2018, diz o líder da JP, «o PS e a esquerda radical abdicaram de forma grave do parecer médico que validasse a mudança de sexo».” Parece haver, neste ponto, uma confusão e a forma como as duas opiniões estão enquadradas é enganadora: Miguel Costa Matos refere-se (ainda que, aparentemente, com informação errada) ao que estaria previsto na lei para os menores de 16, ao passo que Francisco Camacho se refere à dispensa de acompanhamento médico a partir dos 16 anos (porque só a partir dessa idade é possível iniciar o processo de mudança de sexo).

Ainda sobre o enquadramento devido das opiniões dos entrevistados, ao longo da notícia é referido por André Ventura e por Jorge Bacelar Gouveia que a proposta “usurpa” direitos dos pais na educação dos filhos. Sem prejuízo de essa interpretação ser admissível, teria sido importante esclarecer o que diz o texto da proposta sobre o envolvimento dos encarregados de educação, nomeadamente no artigo 4.º:

1- As escolas devem definir canais de comunicação e deteção, identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença.

2- A escola, após ter conhecimento da situação prevista no número anterior ou quando a observe em ambiente escolar, deve, em articulação com os pais, encarregados de educação ou com os representantes legais, promover a avaliação da situação, com o objetivo de reunir toda a informação e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem.

Tanto o jornalista José Miguel Pires como o diretor do “Nascer do Sol”, Mário Ramires, sublinham que a proposta de lei foi reproduzida na íntegra na edição impressa do jornal, ao lado da notícia. Tal não isenta o jornalista da responsabilidade de procurar enquadrar as opiniões veiculadas e confrontar os entrevistados com a potencial incoerência das mesmas.

  1. Equilíbrio das partes interessadas ouvidas

Na queixa apresentada, a “rede ex aequo” nota ainda que há “alguns poucos comentários a favor da lei”, denunciando falta de equilíbrio no artigo. O jornalista José Miguel Pires esclarece que procurou ouvir todos os “lados” interessados, mas que as respostas de vários contactos que fez não chegaram em tempo útil, nomeadamente da parte da associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) e de “vários especialistas”.

Ao todo, são citadas duas personalidades ligadas ao PS (sendo que uma delas presta declarações muito parcas) e três de partidos da oposição (Chega, PSD e CDS). Às vozes contra a proposta soma-se ainda o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, que se declara “globalmente contra esta lei”. Por uma questão de transparência, Jorge Bacelar Gouveia deveria também ter sido identificado como ex-deputado social-democrata. O facto de ser constitucionalista não o qualifica como especialista neutro — há matérias dependentes de interpretação. Isabel Moreira, uma das responsáveis pelo projeto de lei em questão, também é constitucionalista, mas não prestou declarações enquanto tal.

V. Deliberação

Perante o exposto, o CD considera que a notícia “Meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos” não respeita inteiramente algumas normas previstas no Código Deontológico dos Jornalistas, nomeadamente no que diz respeito aos seguintes artigos:

  1. “O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.”
  2. “O jornalista deve combater o sensacionalismo.”
  3. “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da (…) idade, sexo, género ou orientação sexual.”

O incumprimento destas normas da profissão fica particularmente evidente pela falta de rigor com que José Miguel Pires refere uma alegada “incongruência” entre a lei em vigor e o projeto de lei apresentado. Em determinadas passagens assinaladas na análise, o artigo não esclarece o que é factual, deixando margem para a veiculação de informação pouco precisa e, por vezes, errada.

Seguindo o princípio de que não basta relatar os factos com verdade, mas é necessário dizer a verdade sobre os factos, o CD, não pondo em causa o empenho do jornalista, considera que o seu trabalho resultou numa notícia desequilibrada no que se refere à audição das fontes, à verificação dos factos e ao rigor informativo.

A falta de equilíbrio e clareza nesta matéria pode ser particularmente gravosa por se tratar de um tema de grande delicadeza, que tem impacto direto na vivência social e integração de cidadãos menores e em situação particularmente vulnerável. Até pelo risco de alimentar situações de discriminação.

Lisboa, 22 de Novembro de 2022

O Conselho Deontológico

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