Queixa contra notícia publicada no jornal Reconquista

Conselho Deontológico

Queixa nº 26/Q/2024

 

Queixa do advogado Paulo Costa Carvalho em representação do médico Francisco Saraiva Gil, relativa à notícia “Utente diz-se destratado por médico”, publicada no jornal Reconquista.

  1. QUEIXA

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (adiante CD) recebeu, a 8 de março de 2024, a confirmação do interesse na apreciação por parte do CD de uma queixa inicialmente enviada ao Sindicato dos Jornalistas, no dia 5 de março, pelo advogado Paulo Costa Carvalho em representação do médico Francisco Saraiva Gil, relativa ao facto de não ter sido ouvida a versão do médico dermatologista na notícia “Utente diz-se destratado por médico”, publicada na página 15 do Jornal Reconquista de 22 de fevereiro de 2024, da autoria do jornalista José Júlio Cruz.

A notícia é referente a uma queixa contra um médico apresentada no Hospital Amato Lusitano / Unidade Local de Saúde da Castelo Branco, por um paciente idoso com cancro, que considerou ter sido “destratado” pelo profissional de saúde. Na queixa, o advogado alega que o jornalista José Júlio Cruz “não logrou contactar o médico envolvido, não lhe sendo dada a oportunidade de narrar a sua versão dos factos”, apesar de ter ouvido a administração da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco.

O queixoso argumenta que “não obstante o nome do médico não estar identificado, o mesmo é identificável na medida em que se trata do único médico com a especialidade de Dermatologia naquele hospital”, acrescentando que “caso o jornalista tivesse ouvido o médico em causa, este teria desmentido categoricamente a versão do doente, por não corresponder à verdade, o que porventura resultaria na não publicação da notícia”. E conclui que ao “não dar voz” ao médico “a publicação jornalística em causa contribui para um clima de desconfiança em relação ao seu trabalho, prejudicando gravemente a sua reputação profissional”.

Assim, é solicitado ao CD a apreciação da notícia em causa por “violação do ponto 1 do Código Deontológico, mais concretamente por não ter sido ouvida versão do médico dermatologista, que teria maltratado o doente”.

 

  1. PROCEDIMENTOS

 

A 19 de março de 2024, o CD contactou o jornalista José Júlio Cruz para uma melhor análise dos factos, enviando as seguintes questões:

1) Por que razão optou por não ouvir o médico dermatologista do Hospital Amato Lusitano visado no artigo ?

2) Ao não ter ouvido uma das partes referida na peça jornalística que elaborou, considera que poderá não ter respeitado totalmente o artigo nº 1 do Código Deontológico dos jornalistas? 

3) Durante a elaboração da notícia tinha a informação que apenas existe um médico especialista em dermatologia no Hospital Amato Lusitano?

  1. a) Se sim, considera que apesar de não ser referido o nome do médico em causa ele pode ser facilmente identificável pelos leitores do Reconquista em Castelo Branco?

 O autor da notícia “Utente diz-se destratado por médico” respondeu a 22 de março, prestando as seguintes informações:

– Quanto à opção de não ouvir o médico, o jornalista escreve que “na verdade, não se tratou de qualquer opção”, tendo em conta que “à data em que foi escrita e publicada a notícia… desconhecia a identidade do mesmo, desconhecendo também que era o único médico dermatologista do Hospital Amato Lusitano, em Castelo Branco.”. Acrescenta que o utente também “não referiu ou identificou o médico em causa” quando se deslocou pessoalmente à redação do Jornal para “vir trazer a público a sua indignação pelo ocorrido”, após se ter sentido “pessoalmente destratado ”, revelando ainda que “não se queixou de ter sido maltratado do ponto de vista clínico”.

Ainda relativamente à primeira questão, José Júlio Cruz refere que o esclarecimento dado pela administração da Unidade de Saúde, publicado na notícia, “certamente resultou da informação veiculada pelo clínico em causa, evidenciando que “através desta resposta, o médico em causa, ainda que sem qualquer identificação, teve oportunidade de narrar a sua versão dos factos. Conclui o jornalista que se “entendesse aquela unidade de saúde ser relevante a identificação do médico em causa, tê-lo-ia feito, e assim sendo certamente, não deixaria de o contactar.”.

– Questionado sobre se poderá não ter respeitado totalmente o artigo nº 1 do Código Deontológico dos jornalistas, José Júlio Cruz transcreve na íntegra o artigo e afirma: “Foi exactamente pautado por estes princípios e regras que considero ter elaborado a notícia”. Foi pelo “rigor e exactidão, que contactei a unidade de saúde em causa, eles também parte interessada, por forma a perceber o teor da queixa e o que ali estava em causa.”, refere ainda José Júlio Cruz, adiantando que no texto que escreveu “não existe qualquer interpretação”.

O jornalista volta a referir que a “unidade de saúde respondeu esclarecendo o ocorrido, não tendo identificado qualquer médico“.

– Por último, à pergunta sobre se tinha a informação da existência de apenas um médico especialista em dermatologia no Hospital Amato Lusitano, o jornalista reafirma o que já tinha escrito na resposta à primeira questão: “Repito, não! Desconhecia por completo tal realidade, e até foi uma surpresa descobrir que assim era e ainda é… Não conheço o médico em causa, e a primeira vez que soube da sua identidade foi em consequência da queixa de que sou alvo”.  

 

III. ANÁLISE

A queixa apresentada debruça-se sobre o princípio deontológico de que “… Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso…”, que corporiza o 1º artigo do Código Deontológico dos Jornalistas. Ora, na notícia em análise as partes são o utente e o médico do Hospital Amato Lusitano. O utente Joaquim Fontes, fonte da notícia, é devidamente identificado e ouvido na prosa, ao contrário do médico que, estranhamente, não é nomeado nem ouvido, apesar de ser o alvo do queixoso.

José Júlio Cruz argumenta, nas respostas que deu às questões colocadas pelo CD, que o utente “não referiu ou identificou o médico em causa” e que a administração do Hospital Amato Lusitano também optou por não identificar “qualquer médico”, para defender que “não ouvir o médico em causa, não se tratou de qualquer opção, porquanto à data em que foi escrita e publicada a notícia… desconhecia a identidade do mesmo”.

O CD considera estes argumentos pouco válidos e que apenas comprovam que, no contacto com o utente e com a Administração do Hospital, o jornalista se demitiu de fazer a pergunta-chave: Quem é o médico?   

Ao não ter contactado a pessoa que é acusada na notícia, de forma a que o leitor conheça também a sua versão dos factos, o jornalista José Júlio Cruz não cumpriu com rigor a elementar audição das partes.

Um texto jornalístico não pode, em caso algum, limitar-se “a reportar um desabafo de um cidadão que vem a público manifestar a sua indignação”, como defende José Júlio Cruz. Os cidadãos têm, obviamente, o direito a indignar-se. No entanto, quando essa indignação traz uma acusação contra alguém, esse alguém tem o direito a defender-se. Nesse sentido, o jornalismo tem, obrigatoriamente, de escutar quem se indigna e quem é acusado. E, quando tal não acontece, não é jornalismo.

Sobre a possibilidade de o médico não mencionado ser identificável, defendida pelo autor da queixa, por, apesar de “o nome do médico não estar identificado, o mesmo é identificável na medida em que se trata do único médico com a especialidade de Dermatologia naquele hospital, é uma realidade que não é previsível conhecer perante 98799 habitantes que residem na área de influência da Unidade de Saúde Local de Castelo Branco, segundo o último recenseamento à população (Censos 2021). A este respeito, o jornalista esclareceu, nas respostas que enviou ao CD, que “desconhecia por completo tal realidade”. Um desconhecimento que é compreensível. 

Menos compreensível é o facto de o jornalista pressupor da “existência de vários médicos dermatologistas naquela unidade” e, ainda assim, não verificar qual o profissional de saúde que motivou a queixa. Não o fazendo, o jornalista sabia que a notícia que escreveu iria provocar uma desconfiança em toda a equipa da especialidade. Uma falta de objetividade e rigor não admissível num texto de um órgão de comunicação social.  

Em suma, a notícia em análise revela que o jornalista, ao não ter ouvido quem é alvo da queixa e assunto da notícia, o médico, deveria ter optado pela sua não publicação.

  1. DELIBERAÇÃO

Considera o Conselho Deontológico que ouvir as “partes atendíveis” é uma obrigação deontológica do jornalista, mas também é uma questão de método para se chegar à verdade, uma vez que pode permitir aos jornalistas aproximarem-se da verdade, quando não têm acesso direto aos factos e quando estes lhe chegam contados e narrados por outros. Nesse sentido, o jornalista José Júlio Cruz ouviu o utente e fonte da notícia Joaquim Fontes, mas não procurou verificar a verdade dos factos narrados quando decidiu, comprovadamente, não contactar com o profissional de saúde.

O CD entende que houve uma evidente violação do ponto 1 do Código Deontológico, que recomenda que “… Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso….”, considerando que o jornalista não cumpriu com rigor o seu Código Profissional, quando optou por publicar uma notícia sem ouvir a parte que é o alvo da queixa: o médico.

Lisboa, 18 de abril de 2024.

O Conselho Deontológico

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