Queixa contra correspondente da SIC em Israel

Conselho Deontológico

Queixa nº 22/Q/2024

Queixa de Bruno André Silva contra correspondente da SIC em Israel

A 2 de novembro de 2023, deu entrada no Conselho Deontológico uma queixa de Bruno André Silva contra Henrique Cymerman, correspondente da SIC em Israel. A queixa de Bruno André Silva incide sobre dois aspetos:

  • Supostos interesses em negócios de Henrique Cymerman, além do jornalismo, suscetíveis de comprometerem a sua isenção enquanto jornalista.
  • Suposta falta de isenção manifesta em dois diretos efetuados na qualidade de correspondente da SIC (dias 31 de outubro e 1 de dezembro), ao assumir “alegações não confirmadas”, narrar “episódios que não viu”, garantir “como factuais questões que são controversas”, omitir “as bases que sustentam as suas afirmações”, e  alicerçar “a informação que partilha numa das facções” do conflito.
  1. A Queixa

 

  • Sobre as questões referentes aos alegados interesses de Henrique Cymerman, Bruno André Silva refere o facto de Cymerman ser CEO de “uma agência noticiosa em Israel (Cymerman Media Ltd)”, de ser professor da Universidade Reichman Herzlyia e presidir “à Câmara de Comércio e Indústria Israel-Estados do Golfo”.

Bruno André Silva explica as razões porque considera estes aspectos comprometedores da isenção do jornalista:

 “Ora, sabendo que Israel ataca a liberdade de expressão de quem contraria as suas versões oficiais (ver o caso Paddy Cosgrave)[1], questiono se Cymerman está em condições de ser independente na narração dos factos. Será que todos os seus negócios e cargos estariam em causa se Cymerman relatasse factos contrários à narrativa do governo e das forças armadas de Israel?”

Esclarece ainda Bruno André Silva: “Sublinho que a universidade onde Cymerman lecciona está comprometida, de acordo com informação oficial da instituição, com a ideologia sionista. Ideologia que propala a ideia de apenas um Estado, em violação das resoluções da ONU. Para quem conhece a ideologia sionista, a liberdade de expressão é incompatível com aquele ideal. Com efeito, não é possível criticar a ideia de dois Estados naquele território, porquanto existe um objectivo territorial totalitário. Como é que um jornalista pode, sequer, criticar o sionismo sem ser alvo de censura? Cymerman sabe que não o pode fazer. Se o fizer deixa de ser professor naquela universidade”. E acrescenta: “Quem são os clientes de Henrique Cymerman, em Israel? Será o governo? As forças armadas? Perderia clientes em Israel se narrasse factos que contrariam a narrativa oficial de Israel?”

  • A estes aspectos de contexto geral, Bruno André Silva queixa-se especificamente de dois diretos de Cymerman, realizados no dia 31/10/2023, transmitidos a partir das 20h20, e no dia 01/11/2023, a partir das 20h23. Quando questionado em direto sobre o estado dos civis em Gaza, o correspondente da SIC é acusado de ter manipulado “a narrativa no sentido de justificar os bombardeamentos massivos”.

São considerados elementos dessa manipulação o facto de o correspondente da SIC em Israel considerar  que o que “provoca vítimas são os túneis (que ele não viu)”. Os tais túneis que, segundo o comentário de Bruno André Silva, “tudo justificam”. E cita Cymerman quando respondeu a uma pergunta do pivô da SIC: “Vê lá o que aconteceu hoje. Debaixo do campo de refugiados estão túneis e quando Israel bombardeia tudo aquilo cai. E ao cair provoca vítimas…” Comenta a este respeito Bruno André Silva: “Ou seja, é a queda dos túneis que provoca vítimas… e não os  bombardeamentos…”
Bruno André Silva insurge-se contra as referências sobre mísseis que o jornalista “não viu… mas que enumera… sem nunca referir fontes ou recorrer a citações […] porque sabe que vende um produto que aparenta confiança”, assim como pelo facto de ter citado uma “uma alegada fonte palestiniana” segundo a qual, “o número de vítimas [palestinianas] tem sido extrapolado”. Acrescenta ainda: “de nada servem as fontes da ONU, do CICV e das mais variadas agências internacionais que estão no terreno”. E conclui: “insatisfeito com o acervo manipulatório, Henrique Cymerman afirmou perentoriamente que o engenho que atingiu um hospital civil em Gaza foi lançado pelo Hamas. Podia ter sido, mas não há nenhuma fonte independente que certifique tal facto”.

Sobre o direto realizado no dia 1 de novembro de 2023, Bruno André Silva refere-se ao tratamento dado ao ataque no campo de refugiados da Jabalia que tinha causado 50 baixas: “Todos terroristas, dizia Henrique Cymerman. Facto que contraria o relato da ONU, entidade que pondera a existência de um crime de guerra”. Bruno André Silva insurge-se contra o facto de o correspondente da SIC continuar “a martelar nas ‘crianças decapitadas’, facto que foi desmentido por quem fez tais alegações”.

 

  1. Procedimentos do Conselho Deontológico

O Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas pediu, no passado dia 27, uma resposta de Henrique Cymerman às queixas apresentadas. Pelo facto de não residir em Portugal, o contacto com o jornalista foi efetuado com a intermediação da SIC. As questões que foram enviadas pediam um comentário geral à queixa de Bruno André Silva, quer sobre a acusação de  falta de isenção da cobertura jornalística sobre os acontecimentos que se sucederam ao dia 7 de outubro, em Israel, quer nos aspetos referentes ao tratamento diferenciado das fontes, quer ao relato parcial dos acontecimentos.

Para além disso, pedimos a Henrique Cymerman que esclarecesse questões consideradas relevantes, como as suas funções de docente na Reichman University, a presidência da Câmara de Comércio e Indústria Israel-Estados do Golfo e o cargo de CEO da agência noticiosa. Perguntou-se se essas funções limitavam o seu dever de  independência no tratamento noticioso ou se colidem com o ponto 11 do código deontológico do jornalista, em Portugal, onde se afirma: “O jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios suscetíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional. O jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse”.

Tendo-se verificado que Cymerman não tem credenciação profissional de jornalista em Portugal, perguntou-se também qual a sua credenciação socioprofissional  e que código(s) deontológico(s) do jornalismo tem por referência no exercício da sua profissão.

Para análise da queixa, o Conselho Deontológico pediu também à direção de informação da SIC a cedência das edições do Jornal das 20, referentes aos dias 31/10/2023 e de 01/11/2023.

 

III. Respostas de Henrique Cymerman

O correspondente da SIC em Israel faz notar que a queixa acerca da falta de isenção na cobertura jornalística incide também sobre os “factos ocorridos no massacre de 7 de Outubro (que foi reconhecido como um grave atentado terrorista pela União Europeia, pelos Estados Unidos e por parte de vários países Árabes)” e não só sobre “os acontecimentos após 7 de Outubro”, conforme indiciava a pergunta enviada pelo Conselho Deontológico.

Sobre as acusações em concreto, Cymerman destaca que estão cerca de 2000 jornalistas estrangeiros, de várias nacionalidades, a acompanhar o conflito, em Israel e também o exército israelita em Gaza. Todos eles  “têm podido relatar com detalhe a situação e comprovar nomeadamente os detalhes hediondos do massacre ocorrido em 7 de Outubro, o disparo de mísseis da faixa de Gaza para Israel, a existência de extensos túneis de centenas de quilómetros para uso exclusivo do Hamas e a inexistência de abrigos para os civis de Gaza”.

Salienta o correspondente da SIC que “em Israel não há contradições relativamente ao número de vítimas dos seus civis ou soldados, pois as instituições oficiais competentes para o efeito são credíveis”. Já em Gaza, “a fonte do número de vítimas é em exclusivo o seu Ministério da Saúde que é controlado pelo Hamas e, portanto, é necessária cautela quando se divulga o número de vítimas”.

Acerca do bombardeamento da unidade hospitalar em Gaza, o jornalista refere que “a própria BBC e outros destacados canais de televisão já se retrataram relativamente à afirmação de que o Hospital Al Ahli havia sido bombardeado pelo exército israelita”.

Cymerman rejeita a acusação de falta de isenção, afirmando que depois de três décadas como correspondente no Médio Oriente, quer em situações de conflito quer em contextos de paz,  e depois de numerosas visitas à Faixa de Gaza ao longo desses anos, conta com uma rede de fontes locais que normalmente consulta para conhecer a situação durante a guerra.

Acerca dos mísseis que Bruno André Silva refere que Cymerman nunca terá visto, o correspondente da SIC recorda: “Eu próprio, visto residir em Israel, vi e vejo quase diariamente milhares de mísseis disparados da faixa de Gaza para Israel”. O correspondente da SIC adianta visitar “regularmente a Autoridade Palestiniana e o sector Árabe Israelita” de quem diz receber “informação direta sobre a situação em Gaza”.

“Nos meus diretos e nas minhas reportagens, menciono e lamento com regularidade as vítimas civis palestinianas dos ataques Israelitas na faixa de Gaza e recordo que quando Israel tenta destruir a infraestrutura militar do Hamas, provoca vítimas palestinianas civis, entre elas muitas crianças, recordando também que metade da população civil de Gaza tem menos de 18 anos de idade”, acrescenta.

Em resposta às acusações de falta de isenção, Cymerman sublinha que durante três décadas de cobertura dos acontecimentos no Médio Oriente, para a SIC e para outros media, foi premiado em mais de 20 ocasiões por organizações internacionais de Jornalistas e Organizações de Direitos Humanos. Sobre o assunto, o jornalista disponibiliza também o link do site criado por ocasião do TedX Porto, este ano ( https://tedxporto.com/oradores/2023/henrique-cymerman/ )

Acerca das suas ligações a empresas, instituições e a organizações em Israel suscetíveis de porem em causa, se não a sua independência, pelo menos o estatuto de independência exigível aos jornalistas, o correspondente da SIC refere que “nunca existiu nem existe por parte de qualquer destas instituições alguma espécie de restrição ou condicionamento ao exercício” da sua atividade.

Sobre a natureza dessas relações esclarece:

  • É professor convidado na Reichman University, que tem alunos e docentes árabes e israelitas. Naquela instituição privada de ensino superior leciona com outro docente o curso de “Media in Conflict Zones”,  que tem a duração de um semestre.
  • É Presidente Honorário da Câmara de Comércio e Indústria Israel-Estados do Golfo, uma ONG privada que não tem nenhuma relação com qualquer instituição oficial ou Governo. Desse cargo honorífico não aufere qualquer remuneração.
  • Não é CEO de qualquer agência de notícias em Israel, sendo apenas o único sócio de uma empresa em Israel, a partir da qual fatura os serviços prestados como jornalista.
  • Cymerman refere que todas estas ligações institucionais são do conhecimento da SIC.
  • Finalmente, acerca das questões de enquadramento da sua profissão de jornalista, a sua credenciação e códigos deontológicos que o regem enquanto profissional, o correspondente da SIC refere que é titular de carteira de Jornalista de Israel, tendo também sido titular do cartão de Jornalista da Autoridade Nacional Palestiniana e de Espanha. E acrescenta que o código deontológico pelo qual se rege é o do país onde tem carteira profissional, assim como o da FIJ/IFJ, que considera “ser em tudo semelhante ao Código Deontológico aplicável aos jornalistas portugueses”.

IV Análise

Cymerman nasceu no Porto e reside em Israel, para onde foi viver desde os 16 anos. Nesse país exerce a função de jornalista há cerca de trinta anos, tendo entrevistado inúmeros líderes israelitas e palestinianos. O seu trabalho granjeou-lhe inúmeros prémios e uma reputação entre meios profissionais, políticos e institucionais diversificados. Todos os jornalistas sabem, no entanto, que esse reconhecimento, importante na vida de qualquer jornalista, não os protege de erros, o mais que não seja dos resultantes dos condicionalismos  e dos contextos do exercício da profissão. Mais grave do que isso são as acusações de falta de isenção, ao serviço de interesses próprios e de ideologias instaladas, claramente em contradição com os valores éticos e deontológicos do jornalismo em Israel, onde Cymerman tem a carteira profissional, e da Federação Internacional de Jornalistas.

A Carta Mundial de Ética  dos Jornalistas, da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), não é “em tudo semelhante” ao Código Deontológico dos jornalistas portugueses, mas é-o, globalmente, na sua filosofia. De qualquer forma, o Sindicato dos Jornalistas é membro da FIJ e os estatutos da SIC referem no ponto 2: “A SIC compromete-se a respeitar os princípios deontológicos da Comunicação Social e a ética profissional do jornalismo, e a contribuir, através da produção nacional de programas informativos, formativos e recreativos, para a preservação da identidade cultural do País, o que implica também dar voz às novas correntes de ideias e um estilo inovador de programação”.

No que se refere à queixa de Bruno André Silva, ela enquadra-se nos pontos 1 e 11 do Código Deontológico dos jornalistas portugueses:

  1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.
  2. O jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios suscetíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional. O jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse.

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas não encontrou razões para considerar as ligações extra-profissionais de Henrique Cymerman, identificadas por Bruno André Silva, como incompatíveis ou comprometedoras do seu estatuto de independência. As acusações de que a Universidade Reichmann, uma universidade privada, é sionista e, portanto, defende um Estado em Israel sem qualquer compromisso com um Estado palestiniano, em violação das resoluções da ONU a esse respeito, parecem-nos simplificadoras e pouco sustentadas. Para além disso, estas afirmações parecem esquecer as correntes críticas do sionismo existentes em Israel, a começar pelo próprio “sionismo crítico”. Do mesmo modo estas acusações não têm em conta referências importantes inscritas  nos objetivos da Universidade Reichmann[2], tais como o de pugnar pela paz no Médio Oriente através  do seu ensino e investigação, “reunindo estudantes de todas as religiões de toda a região e do mundo, sublinhando os seus objectivos de desenvolvimento e liberdade” e “esforçando-se por cumprir os valores da paz, liberdade e dignidade”. Para além disso, o Conselho Deontológico considera abusivo inferir de forma direta que Cymerman, ao lecionar em parceria uma cadeira de jornalismo durante um semestre na Universidade Reichmann, tenha também de assumir uma perspetiva ideológica e política daquela instituição, condicionando o exercício das suas funções ou, eventualmente, contrariando os seus valores pessoais e profissionais.

O mesmo se aplica ao cargo de Presidente Honorário da Câmara de Comércio e Indústria Israel-Estados do Golfo,  uma ONG privada que, como Cymerman refere, não tem nenhuma relação com qualquer instituição oficial ou Governo e da qual não aufere nenhuma remuneração. A ser de outro modo, teríamos de questionar todos os outros títulos e, nalguns casos mesmo, prémios da carreira de Cymerman, alguns dos quais em clara contradição com a ideia de um jornalista comprometido e ao serviço dos interesses da guerra entre israelitas e palestinianos.

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas considera-se esclarecido acerca do suposto cargo de CEO de uma agência de notícias em Israel, assim como é de opinião que, mesmo que essa situação ocorresse, isso não seria motivo para questionar as suas condições de independência de jornalista. Porém, nem uma coisa nem outra: a referida empresa jornalística destina-se a viabilizar o exercício profissional do correspondente da SIC em Israel.

2) O Conselho Deontológico debruçou-se também sobre as queixas acerca dos diretos realizados por Cymerman nos dias 31 de outubro e 1 de novembro, no noticiário das 20h da SIC, com base nas gravações enviadas por aquela estação de televisão.

  1. i) No direto do dia 31 de outubro, Cymerman descreveu a sua experiência desse dia na zona de combate, na fronteira entre a Faixa de Gaza e Israel, atualizou a informação sobre o que se estava a passar ao nível diplomático para assegurar o tratamento de feridos e ao acesso de ajuda humanitária, em Gaza, referiu os esforços de construção de hospitais de campanha, e comentou o lançamento de um míssil balístico por parte do Iémen contra Israel.

Cymerman procurou explicar o sucedido num bombardeamento a Jabalia, um dos maiores campos de refugiados do mundo, que tem nos seus subterrâneos túneis do braço armado do Hamas. É nesse contexto que surgem as palavras de Cymerman citadas por Bruno André Silva quando, a uma pergunta do pivô da SIC, responde:  “Vê lá o que aconteceu hoje. Debaixo do campo de refugiados estão túneis e quando Israel bombardeia tudo aquilo cai. E ao cair provoca vítimas…” Mas Cymerman acrescentou ainda:  “[…]Provoca vítimas das pessoas que vivem por cima e provoca vítimas dos homens do Hamas, que Israel diz que matou mais de 50” [sic]. É nesse contexto que Cymerman cita uma fonte palestiniana, que não identificou “para não a pôr em perigo”, e segundo a qual o  número de vítimas divulgado pelo Hamas estaria a ser exagerado. Também de acordo com essa fonte, cerca de meio milhar de rockets disparados, quer pelo Hamas quer  pela a Jihad Islâmica, terão caído, por erro, na faixa de Gaza, como terá acontecido com o Hospital al-Ahli Arab Baptist. E termina: “É muito duro, é muito difícil. O exército israelita (…) tenta avançar lentamente, mas não há dúvida que é impossível evitar que haja também vítimas civis num dos lugares com maior densidade populacional do mundo”. No direto, Cymerman cita explicitamente uma fonte anónima  palestiniana, o líder do Hamas, comandantes do exército Israelita, para além da diplomacia norte-americana e Hillary Clinton,  para quem o cessar-fogo na Faixa de Gaza só beneficiaria o Hamas.

Certamente que será difícil saber-se o que se entende por fonte independente que pudesse confirmar a origem do rocket que atingiu um dos mais importantes hospitais da Faixa de Gaza. Mas não deixa de ser interessante perceber que neste conflito, tanto do lado palestiniano como do lado israelita, há quem faça leituras críticas sobre os dados divulgados sobre o conflito. No direto para a SIC, Cymerman faz um claro esforço para citar várias fontes do conflito, identificando-as pelo menos quanto à sua origem.

Não nos parece, pois, que possamos concluir acerca da falta de isenção de Cymerman. Quanto muito, talvez se possa enunciar uma tentativa de justificar as vítimas dos bombardeamentos israelitas quando afirma: “É muito duro, é muito difícil. O exército israelita (…) tenta avançar lentamente, mas não há dúvida que é impossível evitar que haja também vítimas civis num dos lugares com maior densidade populacional do mundo”. Mas sobre esta frase não podemos também deixar de nos questionar se a pretensa justificação dos ataques de Israel nela contida decorre de uma efetiva falta de isenção patente nas palavras do jornalista ou da recusa do leitor em ler nessas mesmas palavras a factualidade acerca de uma realidade que gostaria de ver descrita de outro modo.

  1. ii) No direto do dia 1 de novembro, o bombardeamento ao campo de refugiados de Jabalia volta a ser objeto do direto de Cymerman, agora para dar os pormenores de um segundo ataque, desta feita realizado pela força aérea israelita. Segundo Cymerman, que adianta não ter dados definitivos sobre o número de vítimas, confirma-se que Israel tornou aquele campo de refugiados num dos seus objetivos militares. Sobre este mais recente ataque, o correspondente da SIC salienta que eles voltaram a visar os túneis, onde estaria uma das maiores concentrações de arsenais do Hamas. Estes, pelo efeito do bombardeamento, teriam também explodido, aumentando ainda mais a destruição e o número de vítimas. Desta feita, Cymerman não cita as suas fontes, mas depreende-se que serão informações de fontes oficiais israelitas, como é depois referido noutras peças e informações da SIC sobre o assunto. O foco que prevalece no direto é centrado na leitura que em Israel se está a fazer dos acontecimentos. E isso aplica-se não só sobre Jabalia, como em relação ao modo como estão a ser recebidas as declarações de um líder do Hamas no Líbano, prometendo novos ataques como os de 7 de outubro, e sobre a visita a Israel do Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken. Durante o direto, o correspondente da SIC vai identificando a natureza incerta e não totalmente confirmada de algumas informações.

Na sua intervenção, é notório que não estamos a falar apenas com o jornalista que está a reportar um acontecimento determinado ou a fazer a súmula dos acontecimentos do dia. É também o ponto de vista do jornalista especializado, que analisa, que mobiliza contextos e conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, em resultado do seu trabalho no terreno, um  papel que também é o de um correspondente.

Da análise dos diretos não se pode dizer que Cymernam sustente que as vítimas sejam todas terroristas, de resto uma expressão que ele nunca usou, utilizando em alternativa “homens do Hamas”. Também não foram encontradas alusões a crianças decapitadas, como refere Bruno André Silva. Por certo, Bruno André Silva estará a referir-se a outros contextos que não estes que estamos a analisar.

Pelo facto de estar num determinado país ou numa determinada região, um correspondente não deixará de ter uma visão própria acerca dos acontecimentos noticiados, o que, em alguma medida, determinará também a seleção e o tratamento das notícias. É para garantir a diversidade de olhares que as redações optam, por vezes, por mandar enviados especiais a locais onde também têm correspondentes. No entanto, essa situação em nada põe em causa o estatuto de independência e de compromisso com o rigor informativo do correspondente para com o público dos órgãos de comunicação para os quais trabalha.

Por certo que, por princípio, poder-se-á sustentar que o público da SIC – e por extensão dos restantes meios de comunicação social – ficaria mais bem informado se ela dispusesse de mais jornalistas, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, e não apenas em Israel. Mas assumir esse princípio é esquecer as condições inesperadas que deram origem ao conflito, a situação efetivamente existente no terreno para o exercício de um jornalismo livre e os condicionalismos decorrentes da cobertura jornalística num cenário de guerra. A cobertura jornalística efetuada por alguns órgãos de comunicação social portugueses e estrangeiros tem mostrado que existem também outras formas de se conseguir o desiderato de um bom jornalismo e a pluralidade de visões da guerra, não obstante os condicionalismos referidos.

Da análise efectuada, o Conselho Deontológico não deixou de considerar que a queixa de Bruno André Silva parece também decorrer de uma visão simplista acerca do conflito no Médio Oriente, de Israel, da Palestina e do jornalismo em contexto de guerra. Com efeito, carecem de provas as afirmações de que Israel “ataca a liberdade de expressão de quem contraria as suas versões oficiais” e que isso põe em causa os negócios e os cargos de Cymerman no caso de ele relatar factos “contrários aos do governo e das forças armadas” israelitas, assim como não há sustentação para a ideia de que o sionismo é uma ideologia “incompatível com a liberdade de expressão”. Partindo desta visão, não é de estranhar que Cymerman apareça aos olhos de Bruno André Silva ou como um jornalista de idoneidade duvidosa ou mesmo ao serviço dos interesses do tal sionismo que afirma conhecer e que Israel surja com uma perigosa ditadura semelhante à que já conhecemos no nosso país e de muitas outras que, infelizmente, persistem em todo o mundo.

As leituras críticas do jornalismo são legítimas e louváveis, mas elas devem ser feitas em nome de valores como a diversidade, a pluralidade, a audição de vozes diferentes, assim como numa tentativa de maior compreensão e conhecimento das realidades noticiadas. Se é verdade que o jornalismo não deveria estar ao serviço da voz de ninguém, da conclusão da queixa de Bruno André Silva poderia depreender-se que nem mesmo dos leitores que gostariam de encontrar nas notícias apenas as suas versões e leituras sobre os acontecimentos. Por não ser assim é que precisamos tanto do bom jornalismo.

Conclusão

Da análise da queixa efetuada por Bruno André Silva sobre a falta de isenção das coberturas jornalísticas do correspondente da SIC, Henrique Cymerman e das suas funções  suscetíveis de comprometer o seu estatuto de independência o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas considerou-as simplistas, inconsistentes e carentes de prova.

Lisboa, 5 de janeiro de 2024

 

O Conselho Deontológico

[1] Em outubro, Paddy Cosgrave demitiu-se do cargo de CEO da Web Summit, pelo facto de ter escrito na rede social X, sobre o conflito entre Israel e o Hamas que “crimes de guerra são crimes de guerra, mesmo quando cometidos por aliados, e devem ser denunciados pelo que são”. Na sequência disso, Israel anunciou o boicote à Web Summit. A este anúncio seguiu-se a saída de grandes empresas do evento, tais como a Alphabet, proprietária da Google, a Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, e a Amazon. As palavras de Cosgrave foram consideradas um apoio ao Hamas, embora não se conheçam declarações em que isso seja explícito de forma taxativa.

[2] Ver https://www.runi.ac.il/media/jytlxkon/uriel-reichman-letter-reichman-university.pdf

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