Queixa contra alegado conteúdo discriminatório de uma notícia do Jornal Nacional da TVI

Conselho Deontológico

Queixa nº 28/Q/2024

 

 Introdução

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas recebeu uma queixa da jornalista Paula Sofia Luz sobre o que considerou ser um conteúdo discriminatório de uma notícia do Jornal Nacional da TVI, do dia 21 de março, lida pela pivô Sandra Felgueiras, ao minuto 41:32, sobre a eleição do primeiro-ministro do governo do país de Gales, Vaughan Gething. Refere a notícia, aqui transcrita pelo Conselho Deontológico:

 “O País de Gales elegeu o primeiro chefe de Governo negro, o primeiro na Europa. O trabalhista Vaughan Gething foi eleito primeiro-ministro da nação que faz parte do Reino Unido. Este trabalhista nasceu na Zâmbia. É filho de pai galês e de mãe zambiana. Junta-se, assim, a Rishi Sunak, primeiro ministro do Reino Unido, que tem ascendência indiana, e a Humza Yousaf, primeiro ministro escocês, que tem ascendência paquistanesa. A partir de agora três dos quatro líderes do Reino Unido são não brancos.”

I – A queixa

A jornalista Paula Sofia Luz considera que a notícia viola o ponto 9 do Código Deontológico, segundo o qual o/a “jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual”.

Considera ainda a referida queixa ser deontologicamente questionável a alusão “à cor da pele” do primeiro-ministro galês, assim como a opção pela expressão ” ‘não branco’, usada no tempo do Apartheid”, na África do Sul.

II – Procedimento

O Conselho Deontológico considerou analisar o assunto, pelo que endereçou à direção de informação da TVI e à pivô do Jornal Nacional as seguintes perguntas:

1) Que motivos estiveram na base da elaboração da notícia sobre a eleição do chefe do governo do País de Gales, tendo por base critérios étnicos, de origem e de cor da pele, como únicos valores noticiosos?

 

 

2) O que pensa a TVI e a jornalista Sandra Felgueiras do argumento segundo o qual a valorização de elementos relacionados com a cor da pele, etnia ou origem, por si e sem outros motivos que expliquem a notícia, constitui um ato de discriminação?

3) Como justificam a TVI e a jornalista Sandra Felgueiras o recurso à expressão “não brancos”, atribuída ao regime sul-africano, durante o apartheid, no quadro da sua política de discriminação racial?

Em resposta, a pivô do Jornal Nacional argumentou:

“Sendo verdade que ‘o jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem’, este não deve ignorar também circunstâncias que representam um marco no acesso de pessoas de grupos historicamente discriminados a funções de relevo político, social ou outros”. E acrescenta: “É esse o caso na notícia em causa. E foi o próprio envolvido que o destacou, como se transcreve: ‘Tenho a honra de tornar-me o primeiro líder negro de qualquer país europeu’, disse Vaughan Gething na tomada de posse como líder do governo galês.

(https://www.npr.org/2024/03/21/1239835813/wales-first-black-leader-uk-europe-vaughan-gething)”.

Sandra Felgueiras considera ainda: “(…) Seria manifestamente impossível passar ao lado da forma como o próprio (primeiro-ministro) se auto-intitulou. De resto, a notícia foi produzida nos mesmos termos nos mais prestigiados órgãos de comunicação social tanto no Reino Unido como no resto do mundo”.

A jornalista anexa inúmeros exemplos de abordagens idênticas aos da TVI, realizados por outros órgãos de comunicação informativos do Reino Unido e de outros países, em que o elemento discriminatório referido na queixa foi apresentado como um exemplo de “sucesso de pessoas que conseguiram romper barreiras étnicas, religiosas, de género ou de orientação sexual”. Neste caso, refere a jornalista da TVI, se discriminação houve “foi positiva”, a exemplo do que aconteceu aquando da eleição de Barack Obama nos EUA, e dos líderes do governo escocês ou do Reino Unido.

Acerca do termo “não branco” e da sua conotação com o regime sul-africano durante o apartheid, Sandra Felgueira  refere: “A expressão foi utilizada apenas como uma forma de precisão”, uma vez que Vaughan Gething, sendo “o primeiro líder negro a ser eleito para este tipo de cargo”, não é o primeiro “não branco” no Reino Unido, a exemplo do que acontece com o “atual primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, de origem indiana”, e com o primeiro ministro escocês, Humza Yousaf, filho de imigrantes paquistaneses.

 

III – Análise

O conselho deontológico tem seguido o princípio segundo o qual os sujeitos das notícias não devem ser identificados “em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual”, conforme refere o ponto 9 do Código Deontológico do Jornalista. Na linha do que têm sido as suas recomendações, tais situações só se podem justificar quando esses elementos “discriminatórios” são indispensáveis para explicarem adequadamente notícias.

Existe uma outra situação que não tem sido objeto da jurisprudência do Conselho Deontológico, mas que merece ser aqui ponderada: referimo-nos aos valores noticiosos. A novidade e a atualidade, enquanto valor-notícia fazem com que frequentemente elementos discriminatórios sejam salientados nas notícias: o primeiro negro, o primeiro cigano, a primeira mulher, o primeiro gay, o primeiro hindu… Estas abordagens são, frequentemente, objeto de crítica, uma vez que, ao sublinharem a excepcionalidade da circunstância, não deixam de discriminar, ainda que de uma forma positiva. Poder-se-á sustentar, em contraponto, que a omissão desta dimensão poderá também ocultar mudanças positivas relevantes com vista à criação de sociedades mais inclusivas e merecedoras de serem postas em evidência.

No caso em análise, acresce que o próprio-ministro galês salienta o facto de ser negro como um facto político importante: “Tenho a honra de me tornar no primeiro líder negro” na Europa – disse Vaughan Gething na sua tomada de posse.

A exemplo do que fez Sandra Felgueiras, o Conselho Deontológico também fez uma busca sobre o modo como noticiaram este assunto outros órgãos de comunicação social informativos do Reino Unido e de outros países estrangeiros, podendo assim anexar à lista da jornalista da TVI outros títulos jornalísticos, de referência e populares, que convergem entre si pela sua similaridade, quer no tratamento quer na narrativa.

Consultando os dicionários sobre o conceito de discriminação podemos identificar vários significados que podem estar relacionados, mas não de forma necessária: no sentido de 1) estabelecer diferenças (discernir, destrinçar, diferenciar distinguir…); 2) de colocar algo ou alguém de parte (separar); 3) de tratar de forma injusta e estigmatizar com base em preconceitos de alguma ordem. Diremos que uma notícia que verse sobre questões “de ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual” discrimina de alguma forma, em sentido lato, mas não o faz necessariamente com a intenção de apartar, injustiçar ou estigmatizar.

Do ponto de vista noticioso, é ainda mais difícil dizer que estamos perante ações deste tipo quando o próprio facto é valorizado positivamente pelo próprio sujeito da notícia, como aconteceu com o primeiro ministro galês, Vaughan Gething. No limite, poder-se-ia sustentar que não o fazer poderia ser um ato de censura sobre uma parte do seu discurso que tem uma dimensão política não negligenciável.

No caso em apreço, poder-se-á ainda contra argumentar que a notícia da TVI poderia valorizar mais o discurso de Vaughan Gething, enfatizando o motivo do enfoque racial da notícia. Mas a TVI não o fez, procurando evidenciar a dimensão da novidade. Mas daí a dizer que a notícia discrimina o primeiro-ministro galês e os seus homólogos Rishi Sunak e Huma Yousaf, no sentido em que refere o Código Deontológico dos Jornalistas, parece-nos excessivo.

O ideal de sociedades democráticas mais justas e inclusivas será, certamente, mais perfeito quando deixar de ser necessário promover ações de “discriminação positiva” ou quando situações como a do primeiro-ministro Vaughan Gething ou as de mulheres que assumem cargos públicos pela primeira vez já não forem um valor-notícia. Mas, até lá, temos de continuar a valorizar estas mudanças que, mais do que estigmatizar as pessoas pelo que são, envergonham as sociedades por aquilo que ainda não foram capazes de realizar.

Em resultado desta análise, o Conselho Deontológico acolheu como boas as explicações de Sandra Felgueiras acerca da utilização da expressão “não branco”.

 

Conclusão

O Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas decidiu não existirem razões para considerar discriminatória a notícia do Jornal Nacional da TVI, do dia 21 de março de 2024, sobre a eleição do primeiro-ministro do País de Gales, como o primeiro líder europeu negro da Europa, no sentido em que refere o ponto 9 do Código Deontológico. 

Lisboa, 6 de maio de 2024

O Conselho Deontológico

Partilhe