Presidente defende segredo de justiça para os jornalistas

O Presidente da República falou sobre as relações entre a justiça e os média, ao discursar na abertura do ano judicial. Jorge Sampaio defendeu que os jornalistas devem ficar obrigados ao segredo de justiça e recusou qualquer restrição ao actual regime de liberdade de imprensa.

O discurso do Presidente da República (PR), proferido no dia 19 de Janeiro, no Supremo Tribunal de Justiça, é publicado na íntegra em anexo a esta notícia, que só aborda a parte relativa à comunicação social.

Jorge Sampaio começou por falar das relações entre justiça e média apontando a necessidade de formação, para os profissionais dos dois sectores. “Num tempo em que procuram encontrar-se e compatibilizar-se o tempo mediático e o tempo judicial, tribunais e média, não podem os agentes da Justiça continuar a ignorar praticamente tudo sobre as ciências da comunicação e a prescindir da aprendizagem das boas práticas na relação entre profissionais do foro e da comunicação social”, disse o PR.

Salientando “que o tempo da decisão judicial dificilmente se compatibiliza com as exigências inelutáveis de uma comunicação, cada vez mais, em tempo real”, o PR lembrou que “isso não pode servir de pretexto para que se mantenha a opacidade do fenómeno judiciário, que tem sido objecto de frequente e justa censura, e para que as relações entre tribunais e média sejam, as mais das vezes, colonizadas pela violação do segredo de justiça”.

O que, advertiu, “é tanto mais grave quanto a publicidade, custe a quem custar, é uma forma insubstituível de controle da Justiça pela comunidade.

“Só é, por isso, de saudar que se tenha quebrado o unanimismo reverencial que, em regra, se verificava quanto às decisões dos tribunais, e tenham elas passado a estar amplamente sujeitas ao escrutínio contraditório da opinião pública.

“Mas para que a publicidade seja efectiva e genuína, torna-se necessário instituir os mecanismos adequados”.

Por isso, “de par com a formação dos agentes da Justiça nas áreas da comunicação, impõe-se que haja jornalistas com sólida formação jurídica, e adequado conhecimento das estruturas judiciárias, para, com todo o rigor ético, poderem ser mediadores entre os tribunais e a opinião pública”.

Depois, Jorge Sampaio defendeu “a criação nos tribunais, sobretudo naqueles cuja jurisdição tem maior interesse público e que suscitam maior interesse do público, de estruturas permanentes, com profissionais habilitados, que dêem informação sobre o andamento e sobre os actos dos processos”.

Segredo de justiça interno

O Presidente acrescentou que se impõe “estimular o jornalismo de investigação, que, por si só e em várias latitudes, tem exercido uma insubstituível função de controle dos poderes e de denúncia de abusos e de crimes”, o que, contudo, “nada tem a ver com a temática do segredo de justiça e a controvérsia que, recentemente, tem gerado na sociedade portuguesa”.

A este propósito, relembrou “que o segredo de justiça comporta duas vertentes: segredo de justiça interno, para os que participam no processo, e segredo de justiça externo, que abrange a generalidade das pessoas, incluindo, naturalmente, os jornalistas.

“Ora faz todo o sentido que se alguém é perseguido criminalmente, possa ter acesso indiscriminado ao processo, em qualquer das suas fases. E enquanto o inquérito decorrer, só em caso de grave prejuízo para a investigação da verdade dos factos pode ser lícito vedar tal acesso.

“E se isto é assim quando os arguidos estão em liberdade, haverá que ponderar quais as situações em que o interesse público na descoberta da verdade material se deve sobrepor à confrontação do arguido em prisão preventiva com as provas dos factos que lhe são imputados.

“Provas dos factos, sublinho, porque espero que nunca mais se ponha em dúvida que todo o arguido, preso ou em liberdade, tem direito a conhecer os factos que lhe são imputados e a defender-se de tal imputação.

“O contrário representa, todos somos capazes de o imaginar, inaceitável crueldade, sobretudo para os inocentes”.

Por isso, o PR considera estarem “criadas condições para que se pondere qual o catálogo de crimes que, pela sua especial gravidade ou complexidade, exigem que, quanto às provas, se mantenha, na fase de inquérito, o segredo de justiça interno; e aqueles em que tal segredo não deve vigorar.

“Como terá de ponderar-se em que medida, e, na afirmativa, por que período, poderão ocultar-se ao arguido, em caso de prisão preventiva, as provas que fundam tão gravosa medida”.

Segredo de justiça externo

Salientando que “tudo isto, que releva dos elementares direitos que a nossa civilização reconhece aos arguidos, e que entre nós parecia andar esquecido, refere-se tão só ao segredo de Justiça interno”, Jorge Sampaio afirmou “que o segredo de Justiça externo, esse terá de manter-se, para além da fase de inquérito, e perdurar até à formação da culpa.

“Aqui, naturalmente, se essa for a vontade do arguido, e, em alguns casos, da vítima, que são os únicos interessados em que o segredo se mantenha ou não”.

E esclareceu: “O mesmo é dizer, o segredo de justiça externo terá de manter-se, em regra, até que a acusação se torne definitiva, seja por decisão de um juiz, seja porque o arguido ou a vítima aceitaram a acusação nos precisos termos em que foi formulada.

“É o que resulta do facto de ser intolerável para a reputação de todo o cidadão, que enquanto não houver uma acusação definitiva, se saiba publicamente que foi objecto de um crime ou que sobre ele impende suspeita de o ter praticado, quando tudo pode vir a revelar-se sem qualquer fundamento suficiente.

“E não se argumente, sem atentar no sentido das palavras, com o facto de ao arguido sempre aproveitar a presunção de inocência.

“É que se tal estatuto interessa, em geral, à defesa dos direitos do arguido, em nada protege o seu bom nome e reputação, pois da presunção de inocência gozam exactamente todos aqueles relativamente aos quais há fundada suspeita e convicção de terem praticado um crime, que leva à sua constituição como arguidos”.

O interesse público

Jorge Sampaio acrescentou: “É por isso que contra o direito constitucional ao bom nome e reputação, não há aqui, salvo casos limite, interesse público que possa prevalecer, nem dever de informar que se superiorize.

“Aberto continua o percurso árduo e nobre do jornalismo de investigação, que terá, todavia, de prescindir desse selo de garantia que é o dizer-se ou escrever-se, «consta dos autos que»”.

“Como aberto fica o escrutínio, pela opinião pública, da actividade das polícias, do Ministério Público e dos juizes, logo que formada a culpa, e patenteado o processo ao conhecimento geral.

“E nem sequer se pode excluir a hipótese, ainda que excepcional, de, numa situação determinada, ser tal a magnitude do interesse público de informar, que o dever de respeito do segredo de Justiça deva ser sacrificado àquele interesse.

“É a temática clássica do conflito de deveres, que o nosso direito não ignora, e que aqui, com a raridade que sempre comporta, também poderá ter de aplicar-se.

“Importa é que fique claro que cabe ao legislador, e não ao intérprete, seja ele jurista, jornalista, ou mero cidadão, definir se o interesse público que o segredo de justiça visa acautelar deve, ou não, prevalecer, de um modo habitual, sobre o dever de informar.

“E feita a clarificação pelo legislador, toda a controvérsia se tornará, então, inútil”, concluiu.

O dever de informar

O PR prosseguiu, esclarecendo que “com tudo isto, não se ignora o papel nuclear da comunicação social na denúncia de abusos e de crimes.

“E que sem tal denúncia, muitas situações, que foram ou são objecto de perseguição criminal e de punição, continuariam, porventura, impunes.

“Mantenha-se, todavia, o sentido da medida, e saúde-se a reflexão que muitos dos responsáveis da comunicação social vêm fazendo, nos últimos dias, sobre a sua própria actividade, num espírito e com um exercício crítico inédito, de que só poderão advir bons resultados, e que muito me apraz registar publicamente.

“É preciso que tal reflexão prossiga, no mesmo espírito, e sem a pretensão de infalibilidade que, no passado, tantas vezes a inquinou.

“Nesse propósito, permito-me lembrar que, nesta sala, faz agora seis anos, quando os sucessos desse tempo o exigiam, entendi proclamar, referindo-me aos magistrados judiciais e do Ministério Público, que, cito, «(…) nenhuma classe tem o monopólio da virtude e que a democracia é avessa a justiceiros. Basta-lhe os tribunais».

“Hoje, nestes tempos difíceis que atravessamos, é bom que, na reflexão que vem sendo feita pela comunicação social, possa ficar bem claro que se a Justiça não está acima da crítica, o mesmo se passa com a informação; e que os jornalistas, enquanto tais, não têm virtudes que faltem aos seus concidadãos, nem adquirem, pela sua profissão ou função, qualquer estatuto de maior independência ou isenção.

“Com as suas filiações partidárias ou sem elas, com as suas convicções políticas ou sem elas, com a sua capacidade de tomar distância às pessoas e às situações, ou sem ela, só têm como título que os credibiliza e legitima a função e o dever de informar.

“Quem deles quiser fazer os anjos ou os demónios de qualquer liturgia pública, falha o alvo da imprensa como insubstituível instituição da democracia, e fá-la correr o risco de ser aquilo que ela sempre tem recusado ser – um inaceitável instrumento de manipulação e de dominação.

“A esta luz, entende-se mal a pretensão de alguns de que o segredo de Justiça não obriga os jornalistas, quando seria natural que fossem eles os primeiros a reconhecer tal obrigação”.

O paradigma do receptador

Afirmando que a questão do segredo de justiça lhe parece “tão insólita”, o Presidente lembrou que, no passado mês de Setembro, quando do cinquentenário da Associação Jurídica de Braga, se referiu ao paradigma do receptador: «E nem se diga que está apenas em causa a obrigação do Estado de garantir o segredo de Justiça, a que os mais seriam, por assim dizer, indiferentes. Como se a falência no cumprimento dessa obrigação tornasse lícita a utilização por terceiros da revelação ilícita, qual mercadoria furtada, permita-se a analogia, em que o seu retalhista, bem sabendo do furto, poderia vendê-la licitamente, porque não fora ele o ladrão».

“Vale, todavia, a pena levar este paradigma às suas últimas consequências, e ter presente que, sem o receptador, o furto não compensa.

“Que o mesmo é dizer, se a comunicação social não puder usar licitamente a violação do segredo de justiça pelos participantes no processo, então tal violação passa a ser, na pior hipótese, tema de conversa de pátio ou de cochicho de salão, mas cessará esta exposição pública de culpas e suspeitas, quando nem sequer há uma certeza razoável de qualquer delas.

“É que se é indispensável um maior zelo na perseguição da quebra do segredo de justiça pelos participantes no processo, a questão só começa e acaba aqui para quem entenda que a lei não impõe à generalidade das pessoas guardar aquela reserva, ou que se a impõe, deve deixar de o fazer.

“Acontece é que, se há um interesse público na observância do segredo de justiça, dificilmente se compreende que esse interesse público só seja relevante quando a divulgação de factos por ele cobertos é feita pelos participantes no processo, e deixe de o ser quando essa mesma divulgação seja feita por qualquer outro cidadão.

“O que é, obviamente, absurdo e iníquo”.

A liberdade de imprensa

Para o Presidente, “não pode, todavia, ignorar-se, que parte apreciável da jurisprudência tem sufragado a interpretação da lei vigente no sentido de que ela isentaria os jornalistas.

“Valerá, então, a pena ponderar se é de manter tal estado de coisas, com a certeza, todavia, de que uma alteração da lei no sentido de englobar, inequivocamente, aquela classe profissional, mais não seria do que a consagração explícita, no entendimento de muitos, do regime já agora vigente.

Mas, explicitou o PR, a ponderação sobre o segredo de Justiça e os jornalistas não se confunde “com a reflexão que importa fazer sobre a aplicação do regime sancionatório instituído, sobretudo para as empresas de comunicação social, quando está em causa a ofensa ao bom nome e à reputação dos cidadãos, na convicção de que não há pior maneira de defender a liberdade de imprensa do que fazer de conta que ignoramos as queixas reiteradamente feitas sobre a matéria, e o desencanto com os valores democráticos que elas revelam.

E acrescentou Jorge Sampaio: “Com este propósito, também não pode confundir-se a pretensão daqueles que, encavalitados na clarificação do regime de segredo de justiça ou na busca de critérios mais equilibrados na aplicação do regime sancionatório das ofensas ao bom nome e reputação, quisessem enveredar, agora, por uma qualquer restrição ao actual regime de liberdade de imprensa”.

A concluir esta parte do seu discurso na abertura do ano judicial – cujo texto integral se encontra em ficheiro anexo a esta notícia – o Presidente da República afirmou: “A mais larga crítica de pessoas e de instituições, o mais alargado confronto de ideias e de grupos, a mais irrestrita denúncia de abusos e de crimes, em suma, tudo o que constitui a razão de ser de uma imprensa livre, jamais pode estar em causa”.

Este texto tem ficheiro(s) anexo(s). Como estão em formato pdf, poderá visualizá-los carregando nos links respectivos, desde que tenha o Acrobat Reader instalado. Caso não tenha este software no seu computador, poderá efectuar o download em www.adobe.com.

Partilhe