Os média ao serviço do público ou do mercado

Serviços públicos ou privados e jornalismo ao serviço do público ou do mercado foi o tema abordado pelo presidente da Driecção do Sindicato dos Jornalistas (SJ), Alfredo Maia, num fórum internacional realizado em Lisboa, em 18 de Março.

No fórum, organizado pelo movimento de defesa dos serviços públicos, um movimento informal que agrupa sindicatos e outras organizações sociais e também cidadãos, o presidente da Direcção do SJ apontou a necessidade de um jornalismo ao serviço do público, “voltado para os seus problemas e contribuindo para a sua resolução”. Um jornalismo de sinal contrário ao jornalismo de mercado e à cedência a modelos de comunicação controlados pelo marketing, pela publicidade ou por interesses alheios ao interesse público.

Sobre a “concentração dos meios de informação privados, em particular no domínio da imprensa, e à lógica mercantil que a comanda crescentemente, pondo em risco os objectivos de serviço ao público sem constrangimentos”, Alfredo Maia cometeu a “heresia” de considerar que “mais tarde ou mais cedo haveremos de falar da necessidade também de um serviço público de imprensa”

Sobre as intenções do Governo PS para o sector público da comunicação social, Alfredo Maia considerou que, “pelo menos do ponto de vista formal, parece tranquilizador, mas é indispensável que nas palavras e nos actos o Governo e o Parlamento trabalhem para restaurar a confiança dos cidadãos nos meios de comunicação detidos ou participados pelo Estado”.

É o seguinte, na íntegra, o texto da intervenção de Alfredo Maia:

A discussão que hoje aqui travamos, acerca da defesa e do futuro dos serviços públicos, já não é uma discussão politicamente correcta e já não constitui um tema interessante nem para certos pensadores e propagandistas de novos modelos, nem muito provavelmente para os média.

Muitos considerá-lo-ão contracorrente, como se ser contracorrente fosse um defeito, e outros não deixarão que os modelos assentes em serviços públicos em vários domínios – da saúde à electricidade, da higiene urbana à rádio e à televisão – são modelos datados e retrógrados.

O tema da defesa dos serviços públicos está porém muito actual, não apenas por força da sua defesa por parte de importantes sectores organizados da sociedade, mas especialmente porque os cidadãos se inquietam e se organizam, emergindo um claro e decidido movimento de utentes que reclama espaço de intervenção e defende soluções que estão ainda muito longe de esgotar os modelos de gestão pública.

É verdade, porém, que tal movimento se bate contra uma corrente que, nos últimos anos ganha caminho e consolida-se, impondo uma mentalidade dominante que se exprime tanto de forma abertamente hostil aos serviços públicos e propondo como solução quase absoluta a sua privatização, como, de forma larvar, propagando reservas e suspeições.

Procurando iludir a natureza e os fins sociais dos serviços públicos e trabalhando activamente para o seu descrédito e desprestígio, apontando como síntese das suas pretensas desvantagens alguns problemas de funcionamento, muitos têm procurado demonstrar a sua suposta falência irreversível.

Além da disseminação do preconceito sobre a sua eficiência e da suspeição sobre a dignidade dos seus funcionários – considerados pelo menos improdutivos e incompetentes – ou da sua própria utilidade (sorvedouro de dinheiros públicos, diz-se), os opositores aos serviços públicos incutem e alimentam a comparação com a organização empresarial privada como sinónimo acabado de eficiência que se não reconhece àqueles.

Tais teorias preferem aferir os resultados não em função da satisfação de necessidades essenciais dos cidadãos e tendo presente as condições em que estes se encontram – geográficas, de saúde, de transportes, etc. – mas de critérios economicistas.

É por isso que os cidadãos surgem aos seus olhos não como cidadãos ou utentes, cuja relação com os serviços ultrapassa a mera realização imediata dos actos de que são objecto, mas como consumidores, como clientes de bens e serviços circunstanciais.

Outro objectivo do desmantelamento dos serviços públicos é o de retirar ao controlo democrático a sua gestão e o seu desempenho, ou mesmo de neutralizar a acção crítica dos cidadãos e até o escrutínio público feito pelos órgãos de informação.

Embora me faltem dados seguros, é legítimo invocar a minha memória para observar que as transformações em serviços como o fornecimento de electricidade, abastecimento de água ou recolha e varredura de resíduos urbanos, onde estes estão privatizados ou concessionados, parecem ter diminuído a legitimidade real do controlo público – e portanto também mediático – do seu desempenho e do seu serviço aos utentes.

Da mera leitura dos jornais, da audição das rádios e da assistência aos serviços noticiosos das televisões, parece razoável concluir que das frequentes queixas dos cidadãos acerca de tais serviços e da crítica recorrente na imprensa à forma como os serviços públicos eram assegurados, passou-se a um estado de graça e de quase contemporização com as sacrossantas empresas privadas ou gestões de serviços em modelo empresarial.

Falando num fórum desta natureza, deixo aliás a sugestão de um levantamento urgente de importantes variáveis que importa analisar , designadamente:

– o volume e a natureza das queixas dos utentes de serviços públicos, entretanto, privatizados ou concessionados;

– as formas que revestiram tais queixas ou reclamações – directas/individuais junto dos serviços/empresas; directas/colectivas (abaixo-assinados); indirectas/autárquicas (reclamações via Câmaras Municipais ou Juntas de Freguesia); indirectas/mediatizadas (notícias de casos individuais ou notícias de eventos colectivos de protesto);

– o tempo e a eficiência na resposta, quer em termos de explicação quer à reparação das deficiências alvo das queixas e reclamações;

– o espaço, o registo e o discurso dos média relativamente a estas problemáticas, especialmente no que diz respeito à sua função de mediação e até de anteparo dos direitos dos cidadãos, face a uma Administração que tende a alhear-se das suas responsabilidades de gestora da coisa pública, de forma mais ou menos matizada e consoante a inspiração do governo e da maioria parlamentar de turno e a transferi-las para entidades privadas;

– o modo como os média exercem o seu direito de escrutínio da actividade dos operadores privados de serviços públicos.

Do ponto de vista da missão profissional e da dimensão cívica do jornalismo, chegamos ao momento de discutir o papel – mas também os constrangimentos – dos jornalistas e dos meios de comunicação social. não só na consciencialização e na mobilização dos cidadãos, mas sobretudo na refundação de uma cidadania mais exigente e mais participativa.

É uma missão difícil, que enfrenta obstáculos cada vez maiores e em várias frentes, tanto ao nível da formação e acesso à profissão como ao nível das condições de produção, dos quais destaco:

– o pendor neoliberal e até a investida contra as organizações colectivas que campeia em algumas escolas e universidades que formata muitos jovens recém-chegados à profissão, mas encontra caminho feito nas redacções por hierarquias rendidas a modelos ideológicos e a práticas de gestão estranhas à democracia que tentamos construir e consolidar;

– a exploração do trabalho gratuito dos chamados estagiários curriculares e voluntários e a perpetuação de uma espiral de precariedade sob várias formas (no vínculo contratual, na formação da remuneração, etc.), o que representa uma forma de censura económica;

– a concentração da propriedade dos meios de comunicação social, criando condições objectivas para a diminuição do pluralismo informativo e da liberdade de expressão e potenciando a cedência em ampla escala a pressões dos interesses económicos;

– a crescente mercantilização da informação e a cedência a modelos de comunicação muitas vezes controlados pelo marketing, pela publicidade e até pelos gabinetes de comunicação e imagem;

– a degradação de direitos e garantias de jornalistas e outros trabalhadores do sector, tentativas de limitação à acção das suas organizações, incluindo Conselhos de Redacção, procurando diminuir a capacidade de crítica e de intervenção nas opções editoriais.

Face a um jornalismo de mercado em risco de cumpliciar-se com os poderosos – incluindo as empresas que gerem importantes serviços às populações – impõe-se a decisiva importância de um jornalismo ao serviço do público, isto é, voltado para os seus problemas e contribuindo para a sua resolução.

Em tese geral, o jornalismo que busca incessantemente a verdade possível para serviço do seu público, que é também o juiz da sua credibilidade, visa habilitar os cidadãos com os elementos, necessariamente diversificados, que lhe permitam formar a sua opinião e decidir em conformidade com a sua consciência.

Do ponto de vista dos princípios geralmente aceites e até protegidos na Constituição da República Portuguesa, no Estatuto do Jornalista, na Lei de Imprensa, da Lei da Rádio e na Lei da Televisão, a actividade de comunicação social é, por definição, de interesse público e deve cumprir funções de relevante importância social, cultural cívica.

No essencial, visa assegurar a liberdade de expressão, o pluralismo informativo e a diversidade de opiniões e de propostas, estabelecendo-se a sua independência face aos poderes político, religioso e – por inacreditável que pareça a alguns – também face ao poder económico, incluindo das próprias empresas.

É por isso que temos ainda hoje, três décadas depois de Abril, donos de jornais estranhando que, uma vez nomeado o director, não possa – legalmente – o administrador ou o accionista interferir no conteúdo da publicação.

Sem embargo de garantias formais como a da independência dos jornalistas face também ao próprio poder da empresa jornalística privada e de fiscalização das obrigações gerais dos meios de comunicação social, o legislador procurou conferir maior protecção pelo menos aos meios detidos ou participados pelo Estado.

Por um lado, a própria Lei Fundamental trata de definir as suas funções essenciais e vai mesmo ao ponto de estabelecer, em matéria de pluralismo, que este não deve limitar-se aos princípios da imparcialidade e da objectividade, mas também deve dar a possibilidade de expressão e de confronto das diversas correntes de opinião.

Ou seja, a importância que os meios privados dão ou deixam de dar a certas correntes menos representativas, alegando o chamado critério jornalístico, tem menor acolhimento constitucional nos meios de comunicação social de serviço público.

De resto, como os meios privados – portanto comerciais – vivem essencialmente da audiência, por que é esta que garante a publicidade e a publicidade é que os sustenta, tendem a justificar-se, relativamente à ausência ou insuficiência e de expressões minoritárias (filosóficas, ideológicas, religiosas, culturais, estéticas), com o desinteresse com que estas são encaradas pelos anunciantes e pela maioria do público.

Quando, em Outubro de 2001, o Sindicato dos Jornalistas divulgou a sua declaração sobre o serviço público de televisão, procurámos sintetizar numa frase um conjunto de ideias centrais que ainda hoje nos são muito caras, sobre a natureza e os objectivos do serviço público versus actividade comercial.

Então, declarávamos que enquanto os operadores privados de televisão comercial necessitam de programas para fazerem dinheiro, o operador de serviço público necessita de dinheiro para fazer programas.

Esta asserção não põe em evidência apenas o problema do financiamento dos serviços públicos, com peso no Orçamento do Estado, o qual, em nosso entender, deve ser encarado pelos cidadãos não como um encargo insuportável face aos seus rendimentos muitas vezes insuficientes, mas como uma garantia da independência face ao poder económico e à ditadura da publicidade.

Tal afirmação remete também para outros problemas, relacionados com as garantias constitucionais e legais, a saber, designadamente:

– a independência, face ao poder político, embora esta garantia tenha sido diminuída com a insistência no modelo de nomeação da Administração pelo Governo, com a agravante de ter sido retirada aos Conselhos de Opinião e à Alta Autoridade para a Comunicação Social da competência para pronunciar-se sobre aquela;

– o pluralismo, já referido, no sentido de que no espaço a conceder às expressões minoritárias o chamado critério jornalístico tem menor peso;

– a universalidade de acesso pela generalidade dos cidadãos, devendo ser assegurado um dispositivo de redes que cubram todo o território nacional, bem como a diáspora;

– a diversidade da programação que exprima a diversidade da sociedade e se dirija a todos os tipos de público, promovendo o conhecimento sobre as múltiplas facetas do perfil nacional e a tolerância (ainda em relação a esta garantia, cabe sublinhar que se requer uma “programação equilibrada para a informação, a recreação, a promoção educacional e cultural do público em geral, atendendo à sua diversidade de idades, ocupações, interesses, espaços e origens”);

– a qualidade e a inovação, sendo de destacar, além do conteúdo, da forma e dos meios e técnicas inovadores, a promoção da língua e da cultura portuguesa e da identidade nacional;

– a indivisibilidade, isto é, a coerência global em relação ao conjunto de deveres e obrigações gerais do serviço público, evitando-se as distinções entre programas de mais ou menos empenhados em tal serviço.

É por demais evidente que o anterior Governo conviveu mal com estes desígnios e em vários momentos pôs em risco a imagem de independência dos jornalistas e outros profissionais ao serviço das empresas de serviço público.

No momento em que um novo Governo inicia funções, apresentando-se com um programa com propostas específicas na área dos serviços público de rádio e de televisão, há que saudar desde logo a entrega da tutela do sector a um ministro com funções de ligação ao Parlamento – a Casa das Liberdades – e não, como vinha sucedendo, ao membro do Governo que chefia a propaganda do Executivo.

Pelo menos do ponto de vista formal, parece tranquilizador, mas é indispensável que nas palavras e nos actos o Governo e o Parlamento trabalhem para restaurar a confiança dos cidadãos nos meios de comunicação detidos ou participados pelo Estado, designadamente:

– alterando a forma de nomeação das administrações, que deve ser desgovernamentalizada, passando-se a atribuir maior controlo à Assembleia da República e à Alta Autoridade para a Comunicação Social;

– restaurando os conselhos de opinião da RTP, da RDP e a Agência Lusa, reforçando as suas competências;

– face à existência de correntes que não cessam de trabalhar contra os serviços públicos, procurando incutir a ideia da sua inutilidade ou excesso de dimensão e visando a privatização de canais importantes, são urgentes sinais inequívocos de defesa e desenvolvimento dos serviços públicos.

Face ao quadro de concentração dos meios de informação privados, em particular no domínio da imprensa, e à lógica mercantil que a comanda crescentemente, pondo em risco os objectivos de serviço ao público sem constrangimentos, mais tarde ou mais cedo haveremos de falar da necessidade também de um serviço público de imprensa.

Para quem assistiu, na segunda metade da década de 80, à chamada reprivatização dos jornais portugueses como panaceia para a alegada falta de pluralismo, esta ideia pode constituir certamente uma heresia, mas não deixará de representar uma alternativa sustentável à mercantilização da informação, à omissão de realidades e valores e à guetização de propostas e opiniões, ao rolo compressor dos interesses comerciais, ao jogo das pressões e, enfim, ao jornalismo de mercado que nos comanda.

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