“O jornalismo cão há-de merecer um mundo-cão”

Se jornalistas e leitores não cuidarem de defender um jornalismo íntegro, com memória e profundidade, estarão a contribuir para que se cumpra a velha sentença do escritor Mário de Carvalho, de que “o jornalismo cão há-de merecer um mundo-cão”, afirmou o jornalista Miguel Carvalho durante a entrega do 11º Prémio Orlando Gonçalves de Jornalismo, a 30 de Setembro, na Amadora.

Afirmando-se “honrado” por receber prémio, instituído pela Câmara Municipal da Amadora com o nome de um homem com um percurso cívico e profissional que deveria “servir de bússola a qualquer cidadão e jornalista nos tempos que correm”, Miguel Carvalho estendeu-o aos seus camaradas da revista “Visão” e também “àqueles que, no Porto, diariamente, pagam o preço – por vezes, literalmente – de trabalhar longe dos holofotes e dos círculos influentes de Lisboa”.

O jornalista aproveitou a ocasião para provocar o debate acerca de temas sobre os quais reflecte e se pronuncia desde há muito, como a concentração dos média, a reduzida diversidade de pontos de vista, a importância da memória, o papel activo dos leitores, o jornalista-multimédia, o jornalista-cidadão e o fenómeno do “giro”, que definiu como “típico da actualidade sempre apressada e ligeira”.

“Pelos vistos, mesmo a mais ignóbil das situações humanas, tem de ser retratada a partir de um ângulo ‘giro’. Instalou-se a confusão entre emoção e informação”, afirmou, criticando a concentração dos média e as preocupações imediatistas pelo atropelo dos valores profissionais.

Frisando que “só pode haver bom jornalismo, bons jornalistas, com leitores exigentes”, Miguel Carvalho instou os cidadãos a não se demitirem desse papel e a tomarem medidas como protestar, criticar e escrever para os média sobre o que acham bem e acham mal.

O jornalista, de 37 anos, questionou ainda sobre “que espaço resta para as histórias cruciais” num cenário de junção dos jornais e revistas em grupos, “com uma visão cada vez mais estreita dos acontecimentos e menos investimento nas narrativas de grande fôlego”, e em que se tenta exigir aos jornalistas que saibam “tudo sobre digitalização de imagens e sons, câmaras fotográficas e vídeo, podcast e coisas que tais”.

Para o premiado, “nenhuma técnica, nenhum acelerar da tecnologia, substitui as condições essenciais para se ser bom jornalista: vocação, talento, capacidade de relacionamento com o outro, responsabilidade social, criatividade, memória, bons livros, bons arquivos, cheiro da rua, carácter e humanidade. Coisas que não se ensinam nas escolas nem se aprendem nas faculdades hoje ditas de Ciências da Comunicação. E que sobrevivem à evolução tecnológica. Ou melhor, são o melhor trunfo para andar de mão dada com ela”.

Não obstante o olhar crítico que lançou sobre o panorama actual do jornalismo, Miguel Carvalho considera que “nem tudo está perdido” e explica:

“A cada dia, surgem novos talentos, gente da geração digital aferrada a valores que não têm época porque são de sempre. Gente que não se transfigura, que não se prostitui e está disposta, mesmo na mais absoluta precariedade, a motivar os mais acomodados através de fartas transfusões de sonho, criatividade, empenho e dedicação. Gente que faz do jornalismo causa.”

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