O futuro dos jornais e hemerotecas na era digital

Para aumentar o peso da língua portuguesa na Internet, os jornais deveriam colocar os seus arquivos históricos online, preferencialmente de forma gratuita, defendeu Álvaro de Matos, director da Hemeroteca, no final do debate “O futuro dos jornais e das hemerotecas na era digital”, realizado ao início da noite de 4 de Dezembro no Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luís, em Lisboa.

Organizada pela Hemeroteca Municipal de Lisboa e pelo Clube de Jornalistas (CJ) – que celebra o seus 25.º aniversário –, a iniciativa contou com uma assistência de cerca de 25 pessoas para ouvir as palavras do sociólogo José Luís Garcia, do jornalista José Vítor Malheiros e do director da Hemeroteca, Álvaro de Matos, num debate moderado por Ribeiro Cardoso, do CJ.

“O jornalismo nasceu da necessidade de conversação pública das comunidades e da vontade de deixar um registo, uma memória histórica dessa comunicação. As hemerotecas são as guardiãs dessa memória pública”, disse, logo no início da sessão, José Luís Garcia, relembrando a importância de conhecer o passado para poder projectar o futuro.

No tempo presente, os principais desafios ao jornalismo e às hemerotecas residem nas transformações técnicas – como a emergência do digital – e nas ideológicas, devido aquilo a que chamou “o capitalismo da informação ou capitalismo jornalístico, isto é a visão da informação como mera mercadoria”.

“O que interessa é fazer notícias que vendam”, constatou, considerando que essa lógica cria “uma tendência de assalto à essência da actividade e conduz à paulatina perda da missão pública do jornalismo e dos jornais. Fica tudo no indistinto mundo dos média, onde não se distingue o que são conteúdos, entretenimento ou jornalismo”.

“Produz-se jornalismo como se produz salsichas”

Também José Vítor Malheiros alertou para a confusão frequente entre média e jornalismo: “O cinema, a publicidade, até a produção científica, tudo isso é média. O jornalismo é apenas uma parte desse mundo. E o que o distingue não é o suporte nem é a técnica – um assessor de imprensa usa as técnicas jornalísticas para construir um comunicado – é um ethos, um compromisso ético”.

Criticando o facto de hoje “se produzir jornalismo como se produz salsichas”, o jornalista do “Público”, fez notar que no jornalismo, mas também na investigação científica, “as empresas olham para as suas ‘unidades de produção’ como se estivessem numa fábrica, e isso tem efeitos perversos”.

“No fundo, tudo isto decorre da ideia de que, numa democracia liberal, a sabedoria está no mercado”, resumiu, dando como exemplo a Wikipédia, que usa todos os dias: “É um projecto populista de um libertário de direita, fundado na crença de que o contributo de muitas pessoas é preferível ao de alguns especialistas”.

“A lógica é mais ou menos esta: ‘Para que são precisos especialistas, que nem sequer foram eleitos, para definir o que é bom ou mau, o que é certo ou errado? Deixe-se o mercado funcionar!’. Eu não partilho dessa ideia. O que de melhor se tem feito na sociedade humana é da responsabilidade desses especialistas, cada qual com o seu ethos profissional”, concluiu.

Uma hemeroteca digital à mão

Sobre os desafios que a Internet coloca às hemerotecas, José Vítor Malheiros afirmou que, enquanto leitor, o que quer é uma hemeroteca digital à mão. Porém, sabe que para tal “não basta digitalizar os jornais antigos”, pois além das questões relacionadas com a introdução de metadados para facilitar as pesquisas, há ainda o facto de o objecto específico, o papel, passar mais informação do que um microfilme, por exemplo.

Álvaro de Matos aproveitou a deixa para falar do projecto Hemeroteca Digital, que a Câmara Municipal de Lisboa tem em funcionamento e que, apesar de contar com apenas quatro funcionários, tratou cerca de 100 títulos que caíram no domínio público ou cujos direitos pertencem à autarquia, disponibilizando-os online, em formato PDF, no sítio http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt.

“Só este ano, até Novembro, já tivemos a visita de 80 mil utilizadores, que consultaram três milhões de páginas”, sublinhou o director da Hemeroteca, que encara com optimismo as alterações que a tecnologia pode trazer aos jornais e às hemerotecas, “apesar dos desafios de armazenamento colocados pela actualização contínua dos jornais do futuro, em papel electrónico”.

Para melhor preparar esse futuro, Álvaro de Matos considera que é necessário haver uma revisão urgente da lei do depósito legal, “que é anacrónica e geradora de despesa e desperdício”, e uma mudança na atitude predominante de “desleixo do Estado pela preservação da memória colectiva”.

Nichos versus públicos generalistas

No caso da Hemeroteca Digital, Álvaro de Matos garantiu que esta será sempre de acesso livre e gratuito, uma tendência que, prevê, se aplicará a muitos produtos jornalísticos, havendo contudo “sempre espaço para o jornalismo de referência, pois as elites vão pagar esse bom jornalismo”.

Para José Luís Garcia, o problema reside precisamente nessa lógica de nicho, por oposição ao objectivo de chegar ao público em geral. Salientando que “o espaço de conversação que era dos jornais está a ser transferido para a blogosfera”, o sociólogo realça porém que essa “não tem o ethos do jornalismo” e que, “num mundo hipersaturado de informação, serão sempre necessárias pessoas com um ethos profissional como o do jornalista, para seleccionar o que é interesse público”.

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