Os limites da responsabilidade
O organizador de um evento queixava-se a mim recentemente que não via responsabilidade da parte de quem com ele trabalhava. Entre conversas por Zoom e telefonemas, perdiam-se horas preciosas na análise das minudências de questões secundárias e, por vezes, fúteis, sendo que para os assuntos verdadeiramente estruturais quase ninguém se mobilizava, ou então relegava para a ação do dito organizador. No final, de um cartaz enorme de parceiros e colaboradores, contava-se apenas o trabalho efetivo de duas ou três pessoas.
O desabafo fez-me lembrar a discussão que a filósofa alemã Hannah Arendt coloca em torno do conceito de “responsabilidade”. Para a autora, só somos realmente capazes de ser responsáveis se pensarmos no que estamos a fazer, ou seja, nas implicações das nossas ações para nós próprios e para o coletivo plural. E “qual é o assunto do nossa pensamento? Experiência! Nada mais!”, terá afirmado ela, segundo cita a mais recente biografia de Samantha Rose Hill. Pelo que se não vivermos experiências plurais e procurarmos aprender algo com elas, ou tentarmos ir ao encontro da experiência alheia, a nossa noção de responsabilidade será sempre bastante limitada e em grande medida presa aos nossos próprios interesses, pelo que não será responsabilidade de todo. Se não há pensamento, não há consciência e sem consciência há um indivíduo isolado em si próprio, a lutar pela sobrevivência num mundo que se lhe apresenta como uma selva, onde impera a lei do mais forte.
Serve esta introdução para lançar uma discussão que se me apresenta como fulcral no atual cenário jornalístico.
Nos primórdios da pandemia, um dos críticos da abordagem dos confinamentos como protocolo para gestão de pandemias começou a usar o termo “jornalixo” nas redes sociais. A pessoa em causa, que tinha algum currículo académico na área da epidemiologia, procurava com a expressão descrever um jornalismo irresponsável, feito sem o rigor, em particular científico, que tanto apregoava. A expressão caiu no vácuo das redes sociais e começou a ser usada indiscriminadamente pelos conspiracionistas, perdendo parte do seu sentido original.
Os críticos da gestão da pandemia e os conspiracionistas não foram, pelo menos numa fase inicial, as mesmas pessoas. Viram-se, porém, a ser misturados no espaço público mediático, até se transformarem numa massa indistinta que parecia partilhar a mesma narrativa. Hoje, embora os dois grupos continuem a não defender os mesmos princípios, houve uma inevitável aproximação do discurso.
Entender esta diferença e o porquê deste cenário enquadrava-se, pelo menos em teoria, na responsabilidade jornalística de esclarecer a opinião pública, dentro do espírito de defesa da democracia que está inscrito na sua ideologia profissional. Tal não sucedeu devido a um conjunto de fatores que não interessa agora dissecar, tendo-se criado, em consequência, uma confusão generalizada em torno de alguns temas centrais da pandemia.
Para os conspiracionistas a narrativa é simples: existe o mal, que é o sistema – “Eles” – que quer dominar o povo comum em benefício de uma elite gananciosa; e existe o bem, os poucos que conseguem ser iluminados o suficiente para terem consciência dessa manipulação e contorná-la.
Para os críticos da gestão da pandemia o que está em causa é um conceito mais lato de “saúde” que o defendido nos últimos dois anos. Aqui, tem-se em conta não só o corpo (com os seus diferentes níveis de fragilidade), como também a parte psicológica do indivíduo e os efeitos de longo prazo de medidas tecnológicas aplicadas precocemente e sem o devido respeito pelos ritmos da natureza e da própria ciência. Nesta versão, a narrativa é altamente complexa, uma vez que tem em conta um sem número de variáveis, exigindo que o ouvinte tenha vários conhecimentos medianos de biologia, matemática ou de psicologia para conseguir acompanhar a discussão. Por tal, na tentativa de simplificação para uma população com uma reduzida literacia científica e médica, a narrativa acabou por perder-se no discurso, parecendo aproximar-se da conspiração.
Mas os críticos da gestão da pandemia nada têm contra o sistema, pelo contrário: fazem parte dele e apelam, curiosamente, à responsabilidade. Os conspiracionistas, em contrapartida, vivem à margem desse mesmo sistema, o qual frequentemente não compreendem e acabam a diabolizar.
Durante bastante tempo fui crítica dos jornalistas por não saberem distinguir onde estava a notícia falsa (ou o realismo mágico) e a opinião assente numa leitura divergente dos mesmos dados, com a qual podemos perfeitamente não concordar. Como se toda uma comunidade profissional de repente fosse incapaz de perceber que estamos a lidar essencialmente com o fator humano e não é por uma parte da população estar, manifestamente, confusa com a complexidade da realidade, que estará completamente errada ou intencionalmente a querer enganar o vizinho para fins políticos.
A frustração deu entretanto lugar à resignação. Porque a responsabilidade tem, efetivamente, os seus limites na experiência. Pensar o que estamos a fazer exigiria que o jornalista se aventurasse naquilo que Albert Camus chamou de “absurdo” e soubesse conviver, em paz, com as suas dissonâncias cognitivas sem se deixar arrastar pela depressão. No tempo em que a precariedade e a exploração laboral dentro do seio jornalístico batem de frente com uma democracia fragilizada pela ascensão dos algoritmos, os jornalistas armaram-se para defender a sua casa. Mas num habitat em vias de extinção, não havia lugar para a abstração de um tema que, embora tenha sido apelidado de “guerra”, estava muito longe de ser um confronto de trincheiras. Por tal, restaram o bem e o mal padronizados dos fenómenos bélicos.
Hannah Arendt dizia que pensar é perigoso, mas não pensar é ainda mais perigoso. Se a responsabilidade acaba por ser um valor inerente a um coletivo, conforme discutiu, exigia-se uma tomada de consciência de toda a classe profissional para que os jornalistas, na sua individualidade, pudessem trabalhar sem culpas. Exigia-se um alargar da experiência. Essa consciencialização ainda está por fazer, uma vez que os jornalistas, enquanto comunidade, continuam presos ao século XIX, deslumbrados com as maravilhas da eletricidade e a contribuir para os mesmos vícios do capitalismo que tanto criticam. Por tal, os temas de debate sobre ética e deontologia continuam os mesmos de há um século, assim como o eventual cinismo que fica entre os românticos desencantados.
Mudar este cenário implica ir muito além de uma mudança de modelo de negócio. Implica mudar a forma de pensar a comunicação e a informação.
Cláudia Gameiro, Carteira Profissional 5827A.
(A partilha, o debate e a discussão permanente são condições essenciais da ética e da cultura profissionais, sem as quais qualquer deontologia não passa de letra morta e se resume a um mero instrumento ideológico para legitimar uma profissão. Convidamos, assim, todos os jornalistas a apresentarem os seus textos, que devem ter entre três e quatro mil caracteres, incluindo espaços. Os autores dos textos têm de estar todos identificados pelo seu nome profissional, fotografia e número de carteira profissional e devem enviá-los para o e-mail do Conselho Deontológico conselhodeontologico@sinjor.pt )