Metajornalismo: a opinião de Camilo Soldado

Jornalismo sobre jornalismo

O jornalismo raramente é notícia, mas talvez devesse sê-lo mais. Parto do tema que serve de chapéu a este espaço de opinião – metajornalismo – para rever um dos princípios básicos apresentado a qualquer estudante de jornalismo: “o jornalista não é a notícia”.  

Aqui, para abreviar uma introdução que seria longa, é útil recorrer a outra passagem da tese de doutoramento de Madalena Oliveira, da Universidade do Minho, já citada logo no lançamento desta série de textos: 

“Conquanto tenha inimigos ferozes dentro do próprio meio jornalístico, o metajornalismo tem, pelo menos, a virtude de desmistificar a profissão aos olhos do público. Explicar quem são os profissionais da informação, como trabalham, como, com quem e onde buscam a informação que dão a conhecer, que faltas profissionais e que excessos ético-deontológicos cometem são, em última análise, o fundamento deste ímpeto de informar sobre os informadores”. 

Exercícios como os descritos pela autora são raros, para mais numa paisagem jornalística nacional que viu desaparecer as secções de Media ao mesmo ritmo que avançava a escassez de meios nas redacções.  

Entre os diários generalistas portugueses, há uma excepção. O Correio da Manhã tem uma secção sobre TV e Media (assim é chamada), mas os artigos que ali lemos são, na sua maioria, sobre protagonistas de televisão, audiências, algumas questões laborais, alguns desenvolvimentos internacionais e de regulação de imprensa.  

Os temas não fogem muito aos que encontramos quando abrimos o plano e olhamos para a restante imprensa portuguesa, numa lista de assuntos que fica mais composta se acrescentarmos artigos sobre prémios ganhos pela própria publicação, números de tiragem, de subscrições online, etc.

É mais recorrente que o enquadramento seja económico e mais raro que a prática jornalística em si seja o foco. O mais próximo (que conheça) desse jornalismo sobre jornalismo, é a newsletter Livre de Estilo, uma análise assinada por Bárbara Reis, no Público (jornal para o qual trabalho).  

Se é certo que os provedores do leitor, ouvinte ou telespectador desempenham uma função que escrutina as práticas dos jornalistas e procura respostas, tornando mais visíveis os processos de produção noticiosa, esse papel é necessariamente diferente. O provedor, figura cada vez mais rara, olha para dentro, muito raramente para fora. 

Esta terra de quase ninguém, deixada em aberto por grande parte da imprensa portuguesa, vai sendo percorrida pela academia, mas a discussão que daí resulta dificilmente ultrapassa a redoma do meio universitário ou o nicho de profissionais da comunicação.

Lá fora, em países onde a escala do mercado favorece outro músculo de produção, há vários exemplos de práticas deste tipo: do programa On The Media (Rádio WNYC) ao The Listening Post  (Al Jazeera), passando pelo Longform (podcast independente).  

Levado a cabo por quem conhece por dentro os mecanismos de produção da informação, um exercício crítico ajudaria a tornar essa engrenagem mais transparente. Seria também mais uma forma de lidar com a propagação de desinformação, combate especialmente necessário quando vemos crescer projectos anti-democráticos e de extrema-direita.   

Uma reflexão aberta sobre como é feita a cobertura noticiosa, dado espaço mediático a determinados actores ou escolhido certo ângulo de abordagem ajudaria a formar um público mais informado e, portanto, mais exigente. O jornalismo raramente é notícia, mas talvez devesse sê-lo mais. 

Camilo Soldado, CP nº 6801

(A partilha, o debate e a discussão permanente são condições essenciais da ética e da cultura profissionais, sem as quais qualquer deontologia não passa de letra morta e se resume a um mero instrumento ideológico para legitimar uma profissão. Convidamos, assim, todos os jornalistas a apresentarem os seus textos, que devem ter entre três e quatro mil caracteres, incluindo espaços. Os autores dos textos têm de estar todos identificados pelo seu nome profissional, fotografia e número de carteira profissional e devem enviá-los para o e-mail do Conselho Deontológico conselhodeontologico@sinjor.pt )

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