Dr. Rui Rangel: Os riscos de uma «mentalidade de cruzada»

O texto integral da intervenção do dr. Rui Rangel, coordenador científico do curso «A Justiça e o Jornalismo Judiciário», na sessão de abertura, dia 2 de Abril, na Universidade Católica.

O presente curso tem como objectivos estratégicos, promover o conhecimento mútuo dos sectores da Justiça e da Comunicação Social, através da familiarização e descodificação dos conceitos práticos e teóricos, princípios éticos; contribuir para uma aproximação dos profissionais de ambos os domínios, diluindo ou atenuando preconceitos, desconfianças e antagonismos; e contribuir para melhorar a imagem da Justiça e garantir a imparcialidade e objectividade do jornalismo, segundo princípios essenciais de independência, de publicidade e reciprocidade.

Como sabemos, as relações entre a Justiça e a Comunicação Social, nos países onde existe liberdade de imprensa, têm sido pautadas por conflitos que não são fáceis de resolver e que, não servem os desígnios de uma sociedade que se quer mais plural, mais verdadeira e mais justa. Contribuíram para essas relações difíceis factores que se encontram ligados à democratização da justiça e ao aparecimento gradual de uma cidadania mais esclarecida e reivindicativa.

É sabido que o Jornalismo vive e move-se em ciclos temporais mais voláteis e curtos, enquanto que a Justiça, necessita de tempo para amadurecer e desenvolver a sua acção.

A necessidade de servir o cidadão e de aproximar a Justiça deste, faz, por um lado o Jornalista romper as restrições no acesso à informação e, por outro, a Justiça a fechar-se e a praticar o secretismo, defendendo-se deste invasor alheio. Não é seguramente este o caminho que deve ser trilhado para ajudar a dignificar a Justiça e o Jornalismo, sabendo nós, que hoje em dia, qualquer destes dois poderes, devem ser dignificados e respeitados nas suas várias componentes jurídicas, éticas e sociais, não podendo, no caso da Justiça ser banalizada como por vezes tem acontecido.

O enfraquecimento do Estado e de Justiça e a formidável tribuna que oferecem os Média, podem despertar uma mentalidade de cruzada que fere gravemente princípios fundamentais, tais como: o segredo da instrução, a presunção de inocência e os direitos de personalidade na sua vertente especifica do direito de imagem, do bom nome e da honra de qualquer cidadão que seja apanhado nestas malhas. Na verdade, tudo é tornado público, nas piores condições, já que, em muitas situações, é a Imprensa, em última instância, que define quem é culpado e quem é inocente.

A imensa plateia mediática em que o mundo contemporâneo está transformado, obriga-nos a corrigir as práticas perversas que são evidenciadas diariamente, o que só se consegue, não procurando culpados, mas introduzindo uma nova cultura e uma nova pedagogia que facilite esta aprendizagem mútua que todos nós temos que fazer, em que cada um saiba exactamente qual o seu papel e tenha os conhecimentos necessários para o desenvolver, de forma rigorosa e com bom senso. Numa democracia, ninguém pode exercer um poder exorbitante se não lhe for reconhecida uma responsabilidade equivalente, sendo que, entre nós é exactamente no domínio da responsabilidade e, de certa forma da ausência de determinados conhecimentos que este edifício mostra sinais de estar a ruir. O poder crescente dos Média sobre a vida colectiva é, sem dúvida, um dos maiores factos políticos deste fim de século. Nada mais pode escapar ao controle dos Jornalistas. A vontade, de tudo dizer e de tudo mostrar pode ser errada e, enfraquecer a Justiça e os Média, na medida em que, é preciso saber o que se deve dizer, como é que se deve dizer e, como é que se deve mostrar. O enfraquecimento do Estado e, consequentemente da Justiça, que à pouco falei e o desmoronamento simbólico do Homem e da sociedade civil, não podem servir de palco a uma Comunicação Social que seja indiferente ao cumprimento de regras deontológicas que transformem, na expressão feliz de Garapon: “aquilo a que se chama de Jornalismo de investigação num de Jornalismo delação”.

Como sabemos, nada voltará a ser como era dantes, depois de o país mais poderoso do mundo ter demonstrado, uma surpreendente e inquietante fragilidade e vulnerabilidade, perante aviões comerciais que foram transformados em verdadeiras bombas. Até há pouco tempo a Justiça era percebida e compreendida no recato dos corredores dos Tribunais, sabendo nós que hoje em dia as coisas já não se passam assim, pelo que, numa cultura de responsabilidade, importa nesta sociedade de informação e de comunicação estabelecer uma relação séria e rigorosa, com os meios de informação e de comunicação social e, não fazendo a política da avestruz, como se nada estivesse a passar.

Só esta cultura de responsabilidade e de aproximação faz amadurecer e fortalecer os laços de confiança recíprocos que são necessários para eliminar problemas, tensões e excessos.

É numa lógica de compreensão mútua que o relacionamento entre a Justiça e a Comunicação Social deve ser encarado e, não com comportamentos adversariais, como se de inimigos se tratassem. É urgente regulamentar as relações entre a Justiça e a Comunicação Social, criando códigos éticos de conduta que definam com clareza e objectividade essas relações.

Tudo isto só se consegue dando ao universo dos Jornalistas que tratam as questões da Justiça, os conhecimentos necessários e suficientes que lhes permitam, abordar estas questões com seriedade e o rigor adequado. E, descodificando a linguagem hermética e erudita praticada pela Justiça que não serve o cidadão enquanto seu destinatário principal, linguagem e discurso este, que não são compatíveis com o discurso utilizado pela Comunicação Social.

Para bem do cidadão a Justiça e a Comunicação Social, estão obrigadas a entenderem-se por meio de métodos sérios, honestos e rigorosos, pois, os Tribunais, só ganham com a presença equilibrada da Comunicação Social, por ser essencial para a divulgação das questões da Justiça. Em democracia todos os poderes devem ser escrutinados pelo público.

É com este propósito que o presente curso se apresenta, tendo a consciência de que muito há a fazer neste domínio, na medida em que, nas Universidades e nas Escolas de Comunicação Social, nada ou quase nada é ensinado, sobre Jornalismo Judiciário, o que é uma lacuna grave, omissão esta, que encontramos igualmente nas redacções dos vários órgãos de Comunicação Social, pois não existe qualquer ensinamento ou reflexão consistentes sobre a deontologia na cobertura da questão judicial.

O Curso tem no mapa dos seus conteúdos matérias estáticas, relacionadas com o fenómeno e a orgânica judiciária, na sua vertente institucional e formal e, matérias dinâmicas que se prendem com a relação, entre o fenómeno judiciário e a actividade jornalística. Agradecendo a pronta resposta e iniciativa da Universidade Católica, Faculdade de Direito, na pessoa do Prof. Dr. Germano Marques da Silva (Director da Faculdade de Direito), do Sindicato dos Jornalistas, na pessoa do Dr. Alfredo Maia (Presidente do Sindicato de Jornalistas), do Cenjor – Centro de Formação de Jornalistas, na pessoa do Dr. Fernando Cascais (Director do Cenjor) e do Movimento de Justiça e Democracia, na pessoa do Dr. Raul Esteves (Presidente do Movimento Justiça e Democracia), enquanto coordenador do curso, agradeço a participação de todos os senhores Jornalistas, candidatos a Jornalistas, Licenciados em Comunicação Social e em Direito e outras profissões aqui presentes que aderiram a esta iniciativa, esperando que este curso seja profícuo e útil para a actividade de cada um o que será, estou certo, garantido, face à sabedoria, ao conhecimento e à enorme experiência dos formadores e, que marque um espaço que, no futuro possa abrir caminhos para iniciativas análogas, com carácter reiterado e continuado.

Bem Hajam

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