A intervenção de Fátima Mata-Mouros no colóquio “Os Média e a Justiça”

A juíza Maria de Fátima Mata-Mouros participou no colóquio “Os Média e a Justiça” com uma intervenção intitulada “A verdade judiciária e a verdade noticiosa – as distâncias dos espaços, dos tempos e das fontes”, título que ela própria considerou “intencionalmente provocador”.

É o seguinte o texto integral da intervenção de Fátima Mata-Mouros:

É o seguinte o texto integral de Fátima Mata-Mouros:

A verdade judiciária e a verdade noticiosa – a distância dos espaços, dos tempos e das fontes

Entre os factores que estabelecem a vitalidade da democracia conta-se, sem dúvida, uma opinião pública esclarecida e, para tanto, é necessário que coexistam um sistema de justiça credível e uma comunicação social isenta e rigorosa.

Na presente exposição procurarei reflectir sobre a distância que tem vindo a ser traçada entre o sentido das decisões judiciais e a sua interpretação, tantas vezes objecto de manipulação por parte de uma comunicação social agressiva, conquanto pouco esclarecida no que respeita às regras jurídicas, e que as práticas judiciais não menos vezes potenciam.

O título é intencionalmente provocador: de facto, a verdade é só uma e com frequência não é possível determiná-la. No entanto, quantas vezes assistimos à imposição pública de uma pretensa “verdade noticiosa”? Quantas vezes as decisões dos tribunais são incompreensíveis mesmo para os juristas?

A via social de responsabilização dos juízes, através da opinião pública, exige a verificação de pressupostos sociais e institucionais adequados, coincidindo os pressupostos sociais com os alicerces gerais da democracia, essencialmente a maturação civil e política dos cidadãos em torno das questões da justiça, e destacando-se de entre os pressupostos institucionais a motivação das decisões, sem a qual qualquer vigilância externa do poder judicial se torna impossível.

Será o povo a determinar se a decisão é “boa”, porque fundada em “boas razões”, como adverte Taruffo.

O vínculo da verdade processual é também a principal fonte de legitimação externa, ético-política ou substancial do poder judicial que, em contraste com os outros poderes públicos, não admite uma legitimação de tipo representativo ou consensual, mas apenas uma legitimação de tipo racional e legal. Ora, esta legitimidade racional do poder judicial assenta na publicidade dos processos decisórios e na possibilidade de verificação da racionalidade de cada decisão e esta só é possível através da motivação dos actos jurisdicionais, a qual, por sua vez, deverá ser construída para ser aceite não só internamente ao sistema judicial mas também pela sociedade em geral.

É a verdade e não a autoridade que faz a jurisdição (“Veritas, non auctoritas facit iudicium”, Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 544).

Não é, todavia, uma verdade qualquer, ou uma verdade a qualquer preço, a que funda a decisão judicial e, com ela, o poder judicial. Antes, a verdade possível, estabelecida no termo de um processo, minuciosamente regulado por lei e, acima de tudo, a verdade da própria decisão, isto é, a sua correspondência com a convicção do julgador e a lei invocada.

Frente ao filósofo da moral, ou mesmo ao moralista o jurista tem, porém, a vantagem de as pautas de valoração por que há-de reger-se lhe serem previamente dadas no ordenamento jurídico, na Constituição e nos princípios jurídicos por ela aceites.

Antes do mais será, pois, necessário que cada juiz, e com ele a opinião pública em geral, se convença e aceite que nem sempre a verdade (no sentido real do termo) será afirmada na decisão judicial, ela ficará, por vezes, ocultada, cedendo a sua pesquisa a direitos ainda mais elevados do que aquele desiderato. Trata-se, sem dúvida, de uma perspectiva de difícil aceitação para o leigo em Direito e, nessa medida, para o cidadão em geral. Mas também para nós juízes nem sempre será fácil lembrarmo-nos dessa realidade, imbuídos que estamos todos, enquanto seres humanos, do anseio legítimo por restabelecer a verdade especialmente no âmbito de um procedimento que nos cabe a nós mesmos conduzir.

Mesmo onde se admite o «princípio inquisitório», como no nosso Processo Penal, onde tudo parece, numa primeira leitura, permitido em nome da busca da verdade material, colocam-se certos limites à procura da verdade pelo tribunal. Estes obstáculos, será bom lembrar, servem para protecção de outros bens jurídicos reconhecidos como de grau superior, em especial os direitos fundamentais irrenunciáveis de personalidade do arguido e interesses de terceiros dignos de protecção.

As garantias processuais configuram-se não só como garantias de liberdade, mas também como garantias de verdade: de uma verdade mais reduzida, embora certamente mais controlada do que a verdade substancial mais ou menos aprioristicamente intuída pelo juiz, ensina-nos também Ferrajoli.

Aceitemos: a prova não estabelece forçosamente a verdade, confortando-nos a certeza de que, por dissidente que seja da realidade efectiva, o veredicto resultante da discussão estabelecida no processo, sempre será menos aleatório do que aquele que resulta da verdade intuída subjectivamente pelo julgador, seja ele um juiz ou um “opinion maker”.

Aqui chegados, eis-nos perante a divergência intransponível entre o fenómeno judiciário e o fenómeno jornalístico. Enquanto este oferece a verdade ditada pela quota-parte aleatória do universo focado pelos media, apresentando-a como um todo, aquele dita a verdade estabelecida pelo todo que integra o processo, necessariamente equitativo, mas que não pode fugir aos limites impostos pelo tema submetido à discussão bem como pelas regras processuais definidas na lei. O primeiro opera no imediato, apresentando-se ao público no início como sendo a palavra final, o segundo reage na dilação do tempo, publicando a sentença no termo do processo. A notícia surge no momento do facto, ou quando o facto granjeia o interesse dos media, sendo desconhecidos ou mesmo ocultos os critérios que estabelecem esse interesse, e cessa quando deixa de vender jornais ou contribuir para o aumento das audiências. A decisão judicial só pode surgir depois de percorrido todo o processo (incluindo as vias de recurso), e este, em matéria penal, é obrigatoriamente instaurado com a notícia do facto. A manchete alimenta-se de fontes que não têm de ser obrigatoriamente reveladas, a sentença faz-se de prova contraditoriamente estabelecida e criticamente analisada e só se afirma em definitivo depois de a todos os intervenientes ser dada a oportunidade de reagirem contra ela.

Não se nega que o sistema da íntima convicção, entre nós vigente no processo penal, comporta riscos consideráveis, escapando a consciência do juiz no momento da decisão inevitavelmente ao contraditório. Mas é ainda por esta circunstância incontornável na natureza humana que se impõe a motivação da decisão judicial, exigindo-se a justificação precisa e explícita para permitir um controlo eficaz (ainda que a posteriori) da apreciação do facto em cada caso pelo juiz. Na fórmula impressiva de Jean-Louis Bergel, “a legitimidade da justiça tem este preço” ( in Méthodologie juridique).

Também no universo dos media a exigência da convicção de ser verdadeira a notícia por parte do seu autor será um mínimo ético a assegurar. Todavia, bastar-lhe-á a aquisição, ainda que necessariamente firme, dessa convicção. Não se exige ao jornalista que a fundamente e demonstre. Seria impensável um tal grau de exigência imposta ao agente noticioso desde logo pela impossibilidade da sua conciliação com o ritmo mediático. Mas já será indispensável que assuma a verdade da notícia que relata, não se escondendo atrás de títulos ou sub-títulos que apelam à controvérsia dos testemunhos recolhidos, como tantas vezes se vê publicar nos jornais, apenas com o intuito de chamar a atenção do leitor e de desresponsabilizar o seu autor.

“Qual o grau de probabilidade necessário e suficiente para a fundamentação de um convencimento – os juristas falam aqui de uma «probabilidade que roça a certeza» – é algo que não pode ser indicado de modo exacto, por exemplo através de um número percentual”, como nos lembra Larenz.

Incontroverso é que também o conhecimento pessoal do juiz escapa ao contraditório indispensável na discussão a travar no processo e pode comprometer a imparcialidade do julgador, razões suficientes para dever ser totalmente afastado da decisão. Idênticas limitações não são impostas aos jornalistas. Em última análise, o juiz dita a verdade em função dos elementos que lhe são oferecidos pelos interessados legitimados no processo e que submete à discussão entre todos conferindo-lhes igualdade de armas, enquanto o jornalista oferece a um universo de leitores, ilimitado no espaço e no tempo, a verdade em que acredita para que quem por ela se interesse a discuta.

A verdade judiciária é, assim, uma verdade final.

A verdade noticiosa, uma verdade de partida.

Certo que, para além das contingências decorrentes das limitações do próprio conhecimento humano, outros obstáculos existem no processo a dificultar o estabelecimento da verdade. Desde logo a fragilidade da prova testemunhal, a forma de litigância das partes, a capacidade de argumentação dos diversos intervenientes, para destacar apenas os mais evidentes, já para não falar do direito ao silêncio do arguido em processo penal, tantas vezes mal confundido com um direito a mentir. Poderá um Estado de Direito consagrar a mentira? Mais, poderá fazê-lo precisamente no âmbito de um procedimento em que se busca a tão apregoada verdade material? «Nunca o poderemos admitir, pois tal significava aceitarmos a mentira como critério de organização da sociedade» (Pedro Barbas Homem, O que é o Direito?).

Recentes afirmações feitas na comunicação social sobre uma controvérsia gerada em torno de declarações contraditórias prestadas por magistrados, merecendo o comentário generalizado de que “alguém está a mentir” não podem deixar de nos envergonhar. Elas constituem, todavia, um dado de reflexão incontornável para o futuro, desde logo na perspectiva de saber até que ponto o pretexto de credibilidade que os juízes emprestam às instituições e conduzem à apetência pelo seu chamamento à sua direcção afectará, afinal, a credibilidade das funções que lhes são próprias. Recordo Jorge Miranda, quando de há muito chamou os “Juízes para os tribunais!” (in O debate da justiça – Estudos sobre a crise da justiça em Portugal – organização de António Pedro Barbas Homem e Jorge Bacelar Gouveia).

Mas não fica por aqui a reflexão que se impõe fazer. “O que pensar de acusações, versões, opiniões, divulgadas pelo filtro da confidência, aceitando um risco enorme de falsificação potencial da realidade?”, como interrogou o jornalista Eduardo Dâmaso a propósito dos trabalhos de uma comissão parlamentar de inquérito que decorreu à porta fechada, não sem que viessem a público afirmações descontextualizadas ali produzidas pelos inquiridos. Recentemente vi-me confrontada com a infelicidade de um arguido preventivamente preso à ordem de um processo de que sou titular ter falecido no hospital prisional o que despertou a atenção de alguma imprensa. Em vão procurei esclarecer os jornalistas, que me interpelaram a prestar esclarecimentos sobre o assunto, dentro do dever de reserva que a lei me impõe, tanto mais porque estavam em causa dados da maior intimidade de uma pessoa, chamando-lhes a atenção para o facto de as decisões que haviam sido proferidas pelo tribunal de primeira instância terem sido submetidas ao contraditório e confirmadas pelo Tribunal da Relação. Lamentavelmente, a formação profissional dos jornalistas em causa não lhes permitiu ter a correcta visão da questão, sacrificando o facto incontroverso de ser no seio do processo que qualquer questão deve ser decidida em prol da notícia que vende. E este desiderato implicou, mais uma vez, deixar no ar a suspeita de que alguém, de entre os que se prestaram a fornecer esclarecimentos sobre o assunto, não falava verdade. Este aspecto, noticiado mais de uma semana depois da verificação do óbito em causa, e que já fora divulgado num outro jornal (o “Correio da Manhã”), teve, com efeito, maior importância para um jornal com a ampla tiragem que tem o “Público”, do que o relato sintético e objectivo do caso. É que a divulgação dos factos já não era notícia, ao invés da suspeita deixada sobre a verificação de uma “polémica” apenas encontrada pela imprensa sob o sub-título “juíza e médicos contradizem-se” que mais não pretendia, afinal, do que ampliar a questão e desviá-la da sede própria do processo.

Pergunto: com jornalistas assim deficientemente preparados para colherem esclarecimentos junto dos tribunais, será mesmo possível estabelecer a ponte para fazer chegar informação útil, isenta e descomprometida junto dos cidadãos?

Esta interrogação transpõe-nos igualmente para o problema do sigilo das fontes e a credibilidade dos depoimentos prestados por quem não revela a sua fonte de informação, como será o caso do jornalista chamado a depor no âmbito de uma investigação criminal.

A Constituição da República Portuguesa garante o direito dos jornalistas, ao acesso às fontes de informação e à protecção da independência e do sigilo profissionais nos termos da lei.

Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a que o Estado português se vinculou, garante a liberdade de opinião e expressão, tal como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Mais longe foi o texto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ao sublinhar que o exercício das liberdades de expressão implica deveres e responsabilidades, podendo, pois, ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias numa sociedade democrática, para assegurar outros interesses fundamentais.

No âmbito da legislação nacional, a Lei de Imprensa – Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro – prevê entre os direitos e liberdades fundamentais dos jornalistas o direito ao sigilo profissional com o conteúdo e a extensão definidos na Constituição e no Estatuto do Jornalista. Este último, aprovado pela Lei n.º 1/99, igualmente de 13 de Janeiro, expressa que os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação, não sendo o seu silêncio passível de qualquer sanção, directa ou indirecta, ressalvando, todavia “sem prejuízo do disposto na lei processual penal”.

Só o Código Deontológico dos Jornalistas, aprovado pelos jornalistas em 4 de Maio de 1993, estabelece que o jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes confidenciais de informação, nem desrespeitar os compromissos assumidos, excepto se o tentarem usar para canalizar informações falsas.

Atente-se, todavia, que este diploma não tem força de lei.

É o art. 135º do Código de Processo Penal que estabelece o regime de levantamento do segredo profissional imposto por lei a determinadas categorias profissionais, entre as quais se contam os jornalistas, prevendo, por sua vez, o art. 132º do CPP, entre os deveres da testemunha, o de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.

Finalmente, no art. 360º do Código Penal incrimina-se a recusa de prestação de depoimento, sem justa causa, sancionando-se este comportamento com pena de prisão ou multa nas molduras ali estipuladas.

A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) emitiu um comunicado em 25 de Setembro de 2002, aprovado por unanimidade, referente à detenção de um jornalista por ter recusado a divulgação de uma fonte em juízo, no âmbito do qual, no seu ponto 6 pode ler-se:

“Pela sua própria natureza, esta limitação do direito de não divulgação da fonte pelo jornalista não pode deixar de ser interpretada de forma restritiva e de aplicação circunscrita às situações expressamente previstas no referido preceito legal (art. 135º/3 do CPP), cuja aplicabilidade ao sigilo dos jornalistas será mesmo questionável, dada a sua consagração constitucional.”

Acontece que o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 7/87, de 9/1/87, in DR., I série, de 9/2/87, no âmbito de uma fiscalização preventiva da constitucionalidade de alguns artigos do CPP suscitada pelo Presidente da República, decidiu não se pronunciar pela inconstitucionalidade do art. 135º/2 e 3.

Aquele comunicado da AACS sucedeu a um outro emitido dias antes pela Direcção do Sindicato dos Jornalistas, onde, a propósito também da detenção do mesmo jornalista, se sumariava a posição do Conselho Deontológico assumida no incidente de levantamento do sigilo profissional (suscitado perante o Tribunal da Relação), quando chamado o órgão representativo da testemunha a pronunciar-se sobre a matéria, nos seguintes termos:

“A posição do Conselho Deontológico, para além dos direitos constitucionalmente consagrados para os jornalistas, baseou-se principalmente em três razões:

– o dever de lealdade do jornalista perante a sua fonte confidencial, que apenas forneceu informação na condição de não ser identificada;

– o risco de, em caso de revelação da identidade da fonte, esta vir a contradizer a informação e accionar o jornalista por denúncia caluniosa, ainda para mais instigada pelo Tribunal – (sublinhado nosso);

– a inexistência de garantias de protecção quer do jornalista e dos seus familiares, quer da fonte e seus próximos, em caso de retaliação ou vingança”.

Sem pretender adiantar conclusões, não posso, todavia, deixar de interrogar, desde já: serão estes riscos específicos apenas da testemunha-jornalista?

Manda a verdade que se divulgue que o jornalista em causa aguarda o seu julgamento em liberdade enquanto que no termo da instrução do processo em que o jornalista recusara a divulgação da fonte, o arguido ali acusado foi pronunciado e mandado regressar à prisão, onde deverá aguardar o seu julgamento preventivamente preso.

Sobre a matéria existe ainda o Parecer n.º 38/95, do Conselho Consultivo da PGR, de 22/2/96 onde claramente se refere que no processo penal (ao invés do que se passa no processo civil) se admite a quebra de sigilo profissional, nos termos expressos no art. 135º do CPP.

Finalmente, em sede de jurisprudência internacional, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, chamado a pronunciar-se sobre a matéria, no caso Goodwin v. Reino Unido, não afastou a possibilidade de restrição da liberdade de expressão, designadamente na sua vertente de cobertura do sigilo das fontes jornalísticas, desde que tal restrição se mostre adequada e necessária para o alcance de qualquer dos fins previstos no n.º 2 do art. 10º da Convenção. O que o Tribunal Europeu considerou, foi que no caso não se verificava essa necessidade, desde logo porque os tribunais nacionais haviam emitido, a par da determinação do levantamento do sigilo, ainda uma ordem de proibição de divulgação na comunicação social do documento desaparecido o que se mostrava suficiente para acautelar os direitos do queixoso. Atente-se que com o pedido de levantamento de sigilo ao jornalista para que este revelasse a sua fonte se visava precisamente recuperar o documento desaparecido, que continha dados importantes sobre a situação económica da empresa requerente, por forma a evitar a sua divulgação pública com prejuízo económico para a mesma.

Qual será, então, a grande questão que se coloca, perante uma recusa de uma testemunha (jornalista de profissão) em divulgar a sua fonte, depois de ordenada aquela divulgação por um tribunal e esgotadas as vias de recurso?

Será ainda a questão da dimensão do direito ao sigilo profissional?

O primado do Direito encontra-se na base de todo o sistema democrático.

Depois de transitada em julgado uma decisão de um tribunal que ordena a divulgação de uma fonte, a questão transfere-se, do domínio do estatuto profissional para o domínio da autoridade devida a uma decisão judicial.

Quando uma decisão judicial adquire a força de caso julgado, isto é, depois de esgotados o exercício do contraditório e as vias de recurso, ela passa a reger-se pelo princípio executório.

E é ainda o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na sua jurisprudência ditada em outros casos, versando matérias diversas que foi chamado a decidir, que integra a execução das decisões judiciais ao direito a um processo equitativo e daqui deduz a existência de um direito fundamental à execução dos julgamentos.

De reter é, assim, que a prova em tribunal tem que permitir o contraditório e o juízo sobre a razão de ciência do testemunho. Não basta afirmar uma verdade num julgamento. Ela tem que resultar demonstrada. Um depoimento de ouvir dizer nada vale, a menos que seja também ouvida a fonte dessa afirmação. Esta será talvez a diferença mais marcante que separa a verdade judiciária da verdade noticiada.

O segredo profissional do jornalista é, todos o sabemos, uma das garantias essenciais da liberdade de imprensa. Visa garantir a liberdade na recolha de informação. Não visa, todavia, garantir a produção equitativa de uma prova para sustentar uma acusação. A notícia traz a denúncia, e quantas vezes com ela o escândalo, a perplexidade, a inquietação. Enfim, a suspeição. A sentença traz o veredicto, restabelece a serenidade, a paz social.

Será incumbência de cada jornalista preservar o seu direito ao sigilo profissional, tendo presente que a informação obtida por fonte que não quer ser identificada nunca poderá estabelecer a verdade em tribunal. Sendo assim, deverá abster-se de provocar a chamada da sua fonte a juízo e, para isso, imprescindível será que não a exponha publicamente, o que implica alguma reserva, inteligência e, acima de tudo, muita seriedade na divulgação da informação, evitando que ela afronte intoleravelmente a verdade judiciária.

E bem se compreende que assim seja. As fragilidades já acima apontadas na busca da verdade em tribunal, e tantas outras que seria fastidioso enumerar, longe de deverem desmotivar o julgador, deverão antes ser consciencializadas pelo mesmo de forma a poder ultrapassá-las, sem delegar as suas funções. Assim, não será o facto de uma testemunha afirmar uma realidade, que definirá, por si só o destino da acção. Aceitá-lo sem proceder a um juízo crítico daquelas afirmações, será agir como Pilatos, lavar as mãos depois do julgamento e erigir a testemunha em julgador. Sem ser necessário ir tão longe como Pascal ao afirmar que só acreditava nas histórias cujas testemunhas se deixariam degolar (Perelman, no seu Tratado da Argumentação, p. 282), o julgador não pode, todavia, demitir-se do julgamento crítico da prova que lhe foi oferecida, mesmo que esse juízo o conduza à convicção incómoda de não ser verdade aquilo que ouviu da boca da testemunha. Ainda nesse caso é a sua convicção que o juiz deverá afirmar na decisão, impondo-se-lhe, naturalmente, um esforço acrescido na motivação da mesma que não pode, como é evidente, resumir-se à declaração de não ter acreditado nas afirmações de determinada testemunha. A fundamentação da convicção exigível ao juiz não se basta com uma lacónica referenciação como aquela que repetidamente vemos reproduzida na imprensa e que se limita à afirmação: “segundo fontes fidedignas” ou “segundo fonte próxima da autoridade”. Tão pouco pode bastar-se com o lavar de mãos numa manchete que sublinhe a polémica contradição de versões, sem dessa contradição retirar as devidas consequências.

A crescente exigência de apreciações técnicas nas matérias que uma sociedade em permanente expansão científica submete ao veredicto dos tribunais não poderá, por outro lado, permitir que o juiz se refugie pura e simplesmente no parecer do perito, delegando a sua função jurisdicional, como nos alerta François Ost (Fonction de Juger et Pouvoir Judiciaire, p. 41).

Esta chamada de atenção é tanto mais actual entre nós, quando vemos hoje a própria imprensa fazer eco recorrente de opiniões que erigem relatórios policiais em verdades indesmentíveis, mesmo quando as suas conclusões não foram convertidas em acusação pela entidade que tem a seu cargo o exercício da acção penal perante o tribunal. E a perplexidade aumenta, quando verificamos que algumas dessas opiniões partem precisamente de juristas que no exercício da advocacia não hesitariam em demolir, numa sala de audiências, acusações acriticamente deduzidas com base em relatórios policiais.

E, todavia, são estas verdades que passam na imprensa que as selecciona e divulga livremente em momentos que escapam a qualquer controlo. Nos media não há prescrição! Tão pouco existem despachos de arquivamento!

Quando suspeitas que alcançam a importância noticiosa não chegam à barra dos tribunais, por não serem vertidas em acusação, ninguém se atreve, porém, a colocar a questão essencial: quem controla o poder de abstenção de dedução de acusação em Portugal? Será acidental o facto de os casos judiciais que maior polémica suscitaram na opinião pública consubstanciarem todos eles abstenção de dedução de acusação pelo Ministério Público?

Não se trata de apontar o dedo a determinados operadores. A crítica corporativa está de há muito desacreditada. Trata-se, sim, de questionar o sistema no sentido de o aperfeiçoar. Numa época em que se equaciona a redução legislativa do segredo de justiça, porque não começar-se pelo levantamento de tal sigilo relativamente a processos arquivados que nunca chegaram à fase de julgamento? Será que todos aqueles que foram alvo de investigações criminais inconclusivas ou determinantes da sua inocência não têm o direito de o saber?

O poder de apreciação do juiz está, em qualquer caso, e em contraste com os poderes dos demais operadores numa investigação criminal, enquadrado pelos princípios do acusatório e contraditório, bem como pela obrigação de motivar as decisões. O que significa que o juiz não tem a liberdade de tomar iniciativas ou de apreciar à sua maneira as provas que lhe são oferecidas, encontrando-se, antes, obrigado a submetê-las a um debate contraditório entre as partes.

Desde que sou juiz que me confronto com a questão da divergência entre a convicção do julgador e a prova estabelecida na audiência. Ainda há poucos dias, no âmbito de uma aula que ministrei a um curso de jornalismo judiciário, uma jornalista me interpelava a propósito de uma diligência de instrução a que assistira, afirmando que, no seu entendimento, pode haver “fortíssimos indícios” de uma prática criminosa numa investigação criminal mesmo que não haja prova no processo. Isto é, pode haver uma convicção de culpa sem que ela seja demonstrada. Confesso que sempre tive muita dificuldade em conviver com este quadro no meu quotidiano de juiz. É que não entendo como possa a convicção do julgador deixar de coincidir com o veredicto final e, se a divergência advém de posição minoritária no seio de tribunal colectivo, desejável seria que a mesma encontrasse eco na decisão, designadamente através da permissão da divulgação de voto de vencido.

Continuar a evoluir no silêncio em nome de uma apregoada força da decisão é prosseguir na irresponsabilização do julgador na maior responsabilidade que lhe deve ser exigida: a de decidir em consciência e fundamentadamente. É mesmo mais do que isso: é fomentar a não-decisão que se transpõe igualmente para o tribunal singular, onde de novo o silêncio da verdadeira, completa e clara motivação, o moldar da convicção pela Jurisprudência de casos semelhantes ou a perspectiva de reacção do tribunal superior, se substituem, afinal, ao legítimo julgador. O princípio da publicidade constitui uma dimensão constitutiva da vida política democrática e o segredo e o silêncio são inconciliáveis com esta publicidade democrática.

Não pode ser aceite que a decisão resulte de uma compreensão emocional das provas prévia ao julgamento; antes, pela fundamentação deve tornar-se claro, mesmo para o próprio autor, a persuasão segundo as imposições da lei sobre a justeza dessa justificação.

O valorar emocional predomina no dia-a-dia e dificilmente se deixa erradicar das salas de audiência. Mas a tarefa do jurista é precisamente a «materialização» das valorações. Incumbe-lhe um valorar ligado a princípios jurídicos com a ajuda de um pensamento orientado a valores, ensinou de há muito Larenz.

O juiz deve decidir e a sua decisão não pode dar lugar à dúvida! No seu efeito social o julgamento apaga a dúvida. No fim do caminho, com a sentença, não há mais dúvida, nada mais existe para além da verdade judiciária. Na verdade, não são apenas as partes que têm o ónus de convencer o juiz. Também o juiz tem o mesmo ónus em relação às partes, afirma Bergel (ob. cit.). Eu aditaria ainda em relação ao cidadão em geral.

Se um facto foi estabelecido no processo, ele deve ser tomado por verdadeiro, tal como deve ser considerado inexistente um facto que não foi provado, mesmo se isso não corresponder à realidade das coisas, acrescenta ainda o mesmo autor.

Se o juiz não se convence da culpabilidade de um arguido, se não consegue ultrapassar a dúvida razoável, deve absolvê-lo e calar-se para sempre, porque nesse preciso momento esgotou a sua jurisdição. De resto, não é a sua opinião pessoal que é exigida, quer pelos intervenientes processuais, quer pelo público em geral (ainda que este, por vezes, despertado pela comunicação social, crie uma expectativa relativamente à decisão que o apele a ansiar a interpelação pública ao juiz). É tempo de os repórteres de julgamento se convencerem que não é a opinião pessoal do juiz que devem procurar e divulgar, mas sim a compreensão da sentença. Ao exprimir a sua opinião, sem se atrever a aplicá-la, o juiz estaria simultaneamente a extravasar a sua competência e a deslegitimar a decisão que ele próprio proferira. Não é, pois, de estranhar que a imprensa não deixe passar em branco situações, ainda que felizmente raras no panorama dos nossos tribunais, em que um juiz, apesar de absolver um arguido, lhe profere uma alocução final que, de algum modo, deixa transparecer uma convicção de culpabilidade, ou, o que não é menos grave, na fundamentação da sentença de absolvição por falta de prova tece considerações que permitem ainda a manutenção da suspeição. Ainda há poucos dias se lia num diário de grande tiragem, com a citação de passagens de uma sentença de absolvição proferida num tribunal, que ficava “a triste certeza sobre (…) a pequena corruptela”, anotando o autor do artigo o seguinte remate: “Repare-se no pormenor da palavra usada: corruptela e não corrupção.” (“Triste Certeza”, Luís Costa – na sua crónica Pano Para Mangas, “Público”, 7 de Novembro de 2002).

E não se diga, como por vezes se tem ouvido inclusivamente a responsáveis políticos, que tais procedimentos manifestam um cumprimento escrupuloso do princípio vigente «in dubio pro reo».

Com todo o respeito por tais opiniões, entendo, todavia, que elas são tudo menos correctas. Na realidade, aquelas práticas escamoteiam, com o subterfúgio da aplicação de um princípio fundamental, a não-verdade da decisão ou, o que não é menos grave, esvaziam-na de toda a legitimidade.

O preço a pagar por uma justiça que não colhe a compreensão imediata da opinião pública é seguramente mais elevado na decisão dúbia e contraditória do que na decisão fundamentada, ainda que o seu sentido não vá ao encontro das expectativas criadas pelo empolamento do caso na comunicação social. Neste caso, as dúvidas iniciais geradas pelo veredicto ainda poderão ser desfeitas pela leitura atenta das razões integradoras do argumento de autoridade que o suporta. Naquele, o poder judicial ao ceder à facilidade da justificação popular, demitiu-se da sua autoridade e independência o que, a longo prazo se traduzirá no descrédito da justiça administrada pelos tribunais, e no subsequente encorajamento da justiça privada.

Pensei finalizar a minha intervenção perante esta assembleia composta essencialmente por juízes e jornalistas com a lembrança de que a justiça não pode cair na rua!

Todavia, depois de ter visto um conhecido jornalista e jurista (José Carlos de Vasconcelos) terminar a sua crónica semanal, na última edição da revista “Visão”, com a referência de que “não se pode estar à espera de decisões judiciais para tirar de factos e acusações credíveis as consequências que eles de imediato impõem, sob pena de se causarem os mais graves danos a terceiros inocentes”, num artigo publicado precisamente no mesmo dia em que perante as câmaras de todas as estações televisivas uma figura não menos conhecida do mundo da comunicação social tentava, com os olhos raiados de lágrimas, demonstrar a sua inocência relativamente a uma acusação veiculada pelos media, confesso a minha hesitação:

Será que ainda iremos a tempo?

Lisboa, 30 de Novembro de 2002

Maria de Fátima Mata-Mouros

(juiz de instrução criminal)

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