A formação de jornalistas na área da Justiça e a criação de gabinetes de Imprensa nos principais tribunais e nos Conselhos Superiores de Magistratura foi defendida pelo procurador-adjunto António Pais de Faria, no colóquio “Os Média e a Justiça”
António Pais de Faria integrou o painel subordinado ao tema “Direitos das partes no processo, princípio de publicidade e direito à informação e o príncipio de reserva do juíz”. Eis o texto integral da intervenção do magistrado no colóquio interprofissional “Os Média e a Justiça”, que decorreu a 30 de Novembro, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.
Direitos das Partes no Processo, Princípio da Publicidade e Direito à Informação e o Princípio da Reserva do Juiz
“A transparência, no que se refere ao funcionamento das instituições próprias de um Estado de direito democrático e ao processo de relacionamento entre o povo, em quem reside a soberania, e os órgãos do Estado, é um dos principais pilares da democracia moderna e um dos seus pressupostos essenciais.
“Permitir que o cidadão conheça, perceba, discuta e critique livremente o processo de decisão dos órgãos do Estado (em qualquer nível da sua intervenção) é, não só, um imperativo de natureza constitucional, mas constitui, sobretudo, a essência da própria democracia.
“É por isto que a existência de zonas “cinzentas” ou “obscuras” na actividade do Estado é sempre vista com desconfiança por parte dos cidadãos, criando, com demasiada frequência, a ideia de que nem tudo se processou de forma correcta ou justa.
“Há poucas décadas, em Portugal, inexistia, na prática, qualquer meio válido de controlo da actividade própria dos órgãos da administração pública.
“O aparelho do Estado estava fechado à sociedade, decidia-se no segredo dos gabinetes, vedava-se o acesso à justiça e, principalmente, negava-se a liberdade de expressão e de informação.
“Com a instauração da democracia, surgiu, inevitavelmente, a liberdade de expressão, de opinião e de informação, com a devida consagração constitucional.
“Mais recentemente, com o acréscimo de concorrência na comunicação social e com os meios tecnológicos de que esta dispõe, gerou-se uma espécie de “frenesim informativo”, criando-se a ideia de que tudo é notícia, tudo deve ser do conhecimento público e que todos os meios, desde que sirvam para fornecer “a notícia” ao público, são legítimos.
“Mas, deverá ser assim?
“Tudo deverá ser conhecido e publicável?
“O tema deste colóquio conduz-nos à análise desta questão no âmbito da actividade dos Tribunais e no seu relacionamento com a comunicação social e com a sociedade no seu todo.
“Nos termos da Constituição, os Tribunais são um órgão de soberania e administram a justiça em nome do Povo.
“Muito se tem dito e escrito sobre a legitimidade dos magistrados para o exercício das sua funções (que não se submetem, em Portugal, a qualquer sufrágio) e dos mecanismos de controlo democrático da sua actividade.
“Poder-se-á sempre dizer que, na sua actividade, os magistrados (sem prejuízo da sua independência) submetem-se ao controlo (nomeadamente disciplinar e inspectivo) dos respectivos Conselhos Superiores, que são órgãos de consagração constitucional e em cuja composição estão representados os órgãos eleitos do Estado.
“Mas, parece-me que a forma, por excelência, de controlo e fiscalização democráticas da actividade dos Tribunais e dos magistrados deverá residir no próprio exercício da cidadania.
“Isto é, cabe à sociedade, em geral, fiscalizar a actividade dos tribunais e determinar se, em cada momento, essa actividade é aquela que melhor serve os seus anseios, satisfaz as suas necessidades e cumpre os desígnios constitucionais.
“Para tal, obvio se torna que existe um verdadeiro direito à informação e à transparência nos procedimentos. Só assim, se pode exigir aos restantes órgãos democráticos (nomeadamente os que resultam do sufrágio universal) que criem as condições e procedam às alterações necessárias ao bom funcionamento dos Tribunais e a uma verdadeira administração da justiça.
“Por isso, os vários instrumentos legais e, desde logo, a Constituição da República, consagraram o princípio da publicidade dos processos judicias e dos respectivos actos. É este o princípio regra.
“Razões de ordem diversa e nem sempre bem compreendidas, levaram a impor restrições e compressões a tal princípio.
“É hoje pacífico que na jurisdição de menores vigore, como regra geral, o secretismo do processo. Os valores em causa são consensuais na sociedade e facilmente percebidos por todos.
“No entanto, tal não sucede em todas as áreas de intervenção dos Tribunais.
“Obviamente, é no processo penal que a questão se coloca de forma mais sensível.
“A democratização do regime político português, a criação de mecanismos que permitiram a actuação independente (do poder executivo) dos Tribunais e dos seus magistrados e a própria globalização das sociedades modernas conduziu a uma alteração profunda no fenómeno do combate à criminalidade.
“Por um lado, surgiram novas forma de criminalidade, altamente organizada (ligadas, por exemplo, ao tráfico de pessoas, à imigração clandestina, à criminalidade informática, etc.) e de cariz internacional.
“Por outro lado, os mencionados meios permitiram iniciar, ou reforçar, o combate a um tipo de criminalidade (como é o caso da corrupção) que, embora sempre tenha existido, se encontrava oculta e os seus agentes impunes.
“É por isso que não constitui hoje grande surpresa ver no “banco dos réus” pessoas com notoriedade social, “poderosas” ou ligadas às próprias instituições do Estado, ao contrário do que se passava ainda há pouco tempo, em que a actividade dos Tribunais se dirigia quase exclusivamente à repressão da pequena criminalidade e à punição dos “pequenos” delinquentes.
“Este fenómeno gera, naturalmente, curiosidade. E, muito mais do que isso, gera um legítimo interesse público nos assuntos da justiça e na actividade dos Tribunais.
“Desnecessário se torna, assim, sublinhar o papel primordial que os média assumem neste campo. Eles são, na sociedade actual, um dos principais “elos de ligação” entre o cidadão e as instituições do Estado, onde se incluem os Tribunais.
“Mais do que esta “ponte” entre Estado e cidadão, diria que os meios de comunicação social são, hoje, verdadeiros impulsionadores da actividade do Estado.
“Não raras vezes assistimos à publicação de notícias que constituem a denúncia do crime e da actividade criminosa.
“Quantas vezes as “investigações” jornalísticas ou das televisões avançam mais rapidamente e de forma mais profícua do que a dos próprios órgãos do Estado, burocratizados e “pesados”?
“É, talvez, por tudo isso que os média são, hoje, considerados como o 4º poder.
“E, é precisamente porque a comunicação social é um verdadeiro “poder” que o mesmo, como todos os outros, em democracia, não pode ser absoluto e ilimitado.
#O direito a informar e a ser informado tem necessariamente de ser “comprimido” ou ajustado, quando conflitue ou choque com outros direitos constitucionalmente consagrados.
“No direito processual penal democrático estão em “jogo” interesses fundamentais, quer do Estado, quer dos cidadãos, individualmente considerados.
“Desde logo e em primeira linha, está em causa o interesse da realização da justiça. O Estado de direito democrático tem o dever de realizar a justiça. Tem a obrigação de prevenir e de combater a criminalidade, de punir todos aqueles que praticam crimes e proporcionar às vítimas os necessários meios de ressarcimento.
“Este é, na minha opinião, verdadeiramente, “o interesse” em causa no direito penal e processual penal.
“Necessariamente numa segunda linha, deparamo-nos com diversos direitos, que embora legítimos e constitucionalmente consagrados e, por isso, merecedores de tutela jurídica, se repercutem na esfera individual dos intervenientes processuais, como sejam os arguidos, os ofendidos e as testemunhas.
“Neste plano estão em causa valores como a identidade pessoal, a honra e o bom nome e a reserva da vida privada.
“Foi por isso e atendendo a tais valores, que se sentiu a necessidade de imposição de limites ao atrás referido princípio da publicidade do processo penal.
“Assim, instituí-se o tão já debatido segredo de justiça (principalmente na fase de inquérito e de instrução), bem como algumas restrições à publicidade da audiência.
“O segredo de justiça surge, numa fase inicial, como um instrumento de salvaguarda das diligências de investigação criminal. Só mais tarde se considerou que o mesmo também abrangia a tutela do bom nome dos intervenientes processuais, a reserva das suas vidas privadas e o princípio de presunção de inocência do arguido.
“O debate sobre o segredo de justiça, cíclico na nossa sociedade, tem, em minha opinião, sido minado por perspectivas imediatísticas e casuísticas do problema.
“Na verdade, numa primeira fase, alguns sectores do poder (económico e político) instituído, receosos da intromissão do poder judicial em áreas até então imunes à investigação criminal, entenderam, que erigindo o segredo de justiça a princípio absoluto, se subtraíam mais facilmente ao chamado “julgamento da opinião pública”.
“Surgem, em consequência, iniciativas legislativas, de que o actual C.P.P. poderá ser um exemplo, no sentido de que, sob o pretexto de salvaguarda do êxito das investigações criminais, a regra da publicidade do processo penal se torna em completa excepção.
“Num momento posterior, que se estende para a actualidade, confrontados com o facto de que o segredo de justiça era sistematicamente violado (e que, portanto, não atingia o objectivo pretendido), os mesmos sectores passaram a avaliar a possibilidade de, afastando tal princípio, inverter o actual sistema, conduzindo, na prática, ao fracasso das investigações criminais e, em última instância, à impunidade.
“Penso que aqui, como em tudo, há que encontrar uma solução de equilíbrio. Julgo que não repugnará a ninguém consagrar, de forma efectiva, a publicidade como princípio fundamental do processo penal.
“Tal princípio deverá, no entanto, ceder, na medida do indispensável, quando se investiguem determinados tipos de crime (elencados por lei) ou quando, pela natureza das diligências a efectuar, a autoridade judiciária competente, por despacho fundamentado, assim o determinar.
“O mesmo recuo do princípio da publicidade deverá ocorrer, também na medida do necessário, quando, estando em causa os já mencionados direitos à honra, ao bom nome e à reserva da vida privada dos intervenientes processuais, os mesmos o requeiram à respectiva autoridade judiciária.
“Há que, de uma forma efectiva, observar o princípio de presunção de inocência do arguido, evitando que o mesmo seja antecipadamente julgado pela opinião pública e em fóruns de discussão em que os seus direitos de defesa poderão não ser (e não o são muitas das vezes) devidamente garantidos.
“É neste quadro que, em minha opinião, se deverão inserir os órgãos de comunicação social.
“A divulgação de actos do processo será sempre legítima quando não ponha em causa o êxito das investigações, não viole, de forma intolerável, os direitos ao bom nome, à honra e à reserva da vida privada dos intervenientes processuais e não ponha em causa o princípio da presunção de inocência do arguido.
“Tal será melhor conseguido se se alterarem as formas de relacionamento entre os Tribunais e os meios de comunicação social, o que poderia passar, nomeadamente, pela criação de gabinetes de imprensa nos principais Tribunais e nos Conselhos Superiores das Magistraturas.
“Também a formação especializada de jornalistas para a área da justiça trará, sem dúvida, um contributo decisivo para este objectivo.
“Por último, há que não esquecer que uma das mais graves violações dos direitos dos diversos intervenientes processuais decorre da morosidade da justiça e do arrastamento indefinido de muitos processos, o que causa danos irreparáveis nos mesmos.”