A intervenção de António Nunes Girão no colóquio “Os Média e a Justiça”

A criação de gabinetes de imprensa junto dos tribunais foi defendida pelo presidente da direcção nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, juiz conselheiro António Nunes Girão, na sua intervenção no colóquio “Os Média e a Justiça”.

É o seguinte o texto integral da intervenção de António Nunes Girão:

«Os Media e a Justiça – Colóquio Interprofissional»

Perfez um ano no dia 8 do corrente mês de Novembro desde que se realizou em Aveiro o VI Congresso dos Juizes Portugueses sob o tema Justiça & Opinião Pública.

Evento levado a cabo pela Associação Sindical dos Juizes Portugueses, revelou-se um momento importante de debate, com uma participação excepcional dos congressistas, tanto na quantidade de afluência como na qualidade da generalidade das intervenções.

Intervenções que, muitas delas, suscitaram alguma polémica pelo tom um tanto desabrido – há que, com toda a honestidade, o admitir – com que foram proferidas, nomeadamente, no subtema dedicado ao relacionamento entre a «Justiça, Tribunais e Comunicação Social».

É que, na altura, atingia o seu clímax a visão redutora e simplista de os juizes serem apontados, em termos mediáticos, como os «bodes expiatórios» de todos os males que afligem a Justiça.

Não obstante este arroubo catártico, motivado por um recíproco e quase autista desconhecimento dos respectivos campos de actividade – que deverão ser sempre de complementaridade e nunca de sopreposição -, nunca deixámos de intuir que o caminho a trilhar teria de ser, como salientou o Senhor Presidente da República na sessão solene de abertura do referido Congresso, o da organização de formas institucionalizadas de reflexão e de debate que permitam a todos (juizes, demais agentes da Justiça e profissionais da comunicação), «em cada momento, confrontar-se com as questões e os desafios que são postos pela indispensável compatibilização entre aplicação e mediatização da Justiça».

0 relacionamento entre a Justiça e os meios de comunicação social não é de agora e não tem sido fácil, pois que são diferentes os tempos, os meios e os interesses por que se regem cada uma das actividades.

A actividade judiciária actua dentro de uma estrutura normativamente rígida e propõe-se um fim ideal – o de realizar Justiça através do Direito.

Em contrapartida e salvaguardando a independência, a isenção e a ética de serviço público por que se rege a generalidade dos jornalistas, não se pode escamotear a realidade de que o lucro é o objectivo primordial dos proprietários dos meios de comunicação social, dado que a maior parte destes meios pertence a empresas ou grupos económicos, que dependem de uma forte concorrência entre si para sobreviverem.

Por isso que, se é certo que a comunicação social constitui um excelente instrumento de controle dos poderes públicos, incluindo o judicial, não é menos verdade que esta sua nobre função não pode deixar de ser adulterada por virtude daquela – natural — motivação economicista dos donos dos media.

Neste delicado interrelacionamento Media/Justiça e para uma eficaz administração da justiça complementada por uma informação pública rigorosa, torna-se fundamentalmente indispensável que sejam respeitados três direitos:

1°—0 direito dos suspeitos de actividades ilícitas à presunção da sua inocência até à decisão judicial definitiva;

2°—0 direito dos juizes a estudar os casos e a decidir com serenidade, sem pressões populares ou mediáticas;

3°–0 direito da sociedade a receber uma fiel e actualizada informação.

Ora, o que se verifica, em especial nos casos criminais de maior visibilidade pública, é que todos estes direitos não são, por regra, respeitados.

A imparável expansão dos meios de comunicação social – e a sua crescente influência na opinião pública determinam juízos paralelos, uma vez que a averiguação e o tratamento dos factos em que estes juízos assentam se regem por critérios completamente distintos dos da actividade judiciária.

Enquanto na justiça institucionalizada há um apertado e rigoroso ritualismo formal de triagem probatória, que determina, muitas das vezes, uma total dissonância entre a verdade material e a verdade judiciária, a comunicação social propende, naturalmente, a dramatizar a factualidade noticiosa, transmitindo versões e projectando conjecturas que despertam a curiosidade imediatista do público.

Os exemplos actuais e no nosso país, em especial na área televisiva, sucedem-se, como no recente caso de alegada pedofilia ocorrido num instituto público de apoio a crianças, em que o estimável direito/dever de informar e de denunciar situações da mais abjecta e condenável ilicitude coabita perigosamente com extremismos noticiosos potencialmente ofensivos de importantes direitos de personalidade, como são o direito à presunção de inocência, o direito à imagem e o direito à privacidade.

É claro que, para este estado de coisas concorre também o hermetismo que caracteriza o mundo judiciário, resultante, muitas das vezes, de interpretações demasiado literais, ou até erradas, das normas que regulam o sigilo processual.

Continuamos convictamente a defender o principio que ficou a consubstanciar a 111 conclusão do nosso último Congresso no sentido de que a credibilização da justiça e da comunicação social perante a opinião pública implica a criação de gabinetes de imprensa junto dos tribunais, de modo a assegurar uma informação isenta, objectiva e responsável, assim preservando o dever de reserva dos juizes.

Contudo continuamos igualmente a entender que, como em tudo na vida, há muitas situações que podem e devem ser resolvidas com o simples bom senso.

Podem estabelecer-se, por lei ou por acordo, as mais pormenorizadas regras comportamentais, as quais, porém, não passarão de inútil letra morta se não prevalecer o bom senso e a vontade de cooperar.

Perante isto, temos todos – agentes judiciários e jornalistas — um formidável, mas não menos interessante, desafio pela frente, qual é o de encontrar consensos para um harmónico desempenho das nossas actividades, por forma a que estas saiam mais beneficiadas e respeitadas.

Para tanto torna-se indispensável que nos conheçamos melhor, o que só se conseguirá com jornadas de trabalho comum como é o caso do presente Colóquio, em boa hora proposto pelo Sindicato dos Jornalistas à ASJP, logo por nós aceite, e que conta com a indispensável colaboração do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, da Ordem dos Advogados e do Sindicato dos Funcionários.

E como há muito mais pessoas, de inquestionável maior qualificação do que a minha, para falar sobre os vários e interessantes temas que constam do programa, é altura de terminar, não sem que, como muito gosto, agradeça:

–a todas Vossas Excelências a vossa imprescindível presença.

–ao Sindicato dos Jornalistas a honra concedida à ASJP de integrar a parceria organizadora deste Colóquio;

–ao Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, à Ordem dos Advogados e ao Sindicato dos Funcionários Judiciais a sua prestimosa colaboração;

–à Fundação Calouste Gulbenkian as excelentes condições logísticas concedidas;

–a todos os ilustres conferencistas, moderadores e intervenientes dos painéis que se dignaram participar e enriquecer-nos com o seu saber e experiência.

Bom trabalho!

Lisboa, 30 de Novembro de 2002

O Presidente da Direcção Nacional

António Nunes Ferreira Girão

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