A intervenção de António Marçal no colóquio “Os Média e a Justiça”

“O império da lei não pode continuar a matar o princípio fundamental da Justiça”, disse António Marçal, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, no colóquio “Os Média e a Justiça”, numa intervenção onde defendeu a necessidade de os tribunais redefinirem o modo como estão organizados.

É o seguinte o texto integral da intervenção de António Marçal:

Constrangimentos

Infelizmente o termo não poderia ser mais actual. As dificuldades do exercício da aplicação da justiça são por demais evidentes e cada vez mais revelam a dificuldade de adaptação aos ritmos da sociedade actual.

Naturalmente, tais circunstâncias acabam por se manifestar e de certo modo inquinar o relacionamento entre os vários actores judiciários.

O papel do oficial de justiça em toda esta cena é sem dúvida aquele que maior constrangimento acarreta. Os oficiais de justiça têm uma identidade profissional própria, cuja dignidade o próprio legislador quis realçar, atribuindo-lhe estatuto profissional próprio – o Dec. Lei 343/99, alterado pelo Dec. 175/00, por entender que exerciam funções que se não confundem com outros intervenientes e aos quais não devem estar hierarquicamente submetidos.

Para melhor se entender o que afirmamos, será conveniente concretizarmos alguns entendimentos.

O Tribunal é uma unidade complexa, com múltiplas acepções, onde se cruzam e entrecruzam competências e atribuições.

No sentido estrito da lei, Tribunal é o órgão de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo – cfr. A CRP – o que equivaleria a dizer que Tribunal é o Juiz investido nas funções de julgar (juiz ou juízes, no caso dos colectivos ou juízes e jurados, no caso muito especial dos tribunais de júri)). Noutra acepção o tribunal é toda a organização que sustenta e possibilita o acto final de julgar. É nesta acepção que iremos utilizar o termo Tribunal.

Em todos os Tribunais coexistem dois poderes públicos – o poder judicial e o poder do ministério público – titulados por juízes e por magistrados do MºPº, respectivamente. Ambos são auxiliados por uma componente funcional directamente afecta a essas duas áreas – os oficiais de justiça.

Coexiste também uma representação do poder da “Administração”, isto é, do poder administrativo do Estado, corporizado pelos Secretários.

Aos Secretários compete zelar pelo cumprimento das obrigações de todos os agentes enquanto servidores do Estado (conceito de entidade politicamente organizada que tem como atribuições entre outras a justiça), sendo o responsável pelos processos burocráticos implícitos na prestação de serviço na administração pública, a que os juízes, embora não sendo funcionários públicos no sentido restrito do termo, estão também obrigados (a assiduidade, a comunicação do período de férias, a justificação de faltas por doença, etc., etc.). A este funcionário, actualmente o topo da carreira de oficial de justiça, compete também zelar pelo normal funcionamento do Tribunal, no que diz respeito a instalações e serviços que por este são utilizados, bem como pela verificação dos meios ao serviço deste colocados. Compete-lhe entre outras coisas, elaborar e executar o orçamento do Tribunal.

Nos edifícios onde se concentram vários Tribunais, é também a um Secretário, normalmente secretário-geral, que estão cometidas as tarefas de gestão e conservação dos “espaços de utilização comum” dos Tribunais. Quando existem é também aqui, nas secretarias-gerais (ou secções centrais comuns) que se realizam os procedimentos de distribuição dos processos, sobre a presidência de um juiz (diariamente no que concerne à jurisdição penal, às 2.as 5.as-feiras na jurisdição cível), procedimento de máxima importância que visa assegurar a aleatoriedade sobre o julgador, impedindo a distribuição “a favor”, não obstante permitir que uma mesma secção/juizo seja sobrecarregado com vários processos de enorme complexidade, enquanto outros não sejam contemplados com nenhum, na distribuição em processo penal, atento os prazos de tramitação, fazem duas distribuições – uma de processos com arguidos presos e outra com arguidos não sujeitos a prisão à ordem do processo em distribuição. Na primeira instância, os processos são distribuídos pelas secretarias judiciais (pelas secções ou juízos)

Distribuídos, são remetidos às secretarias judiciais ficando à guarda e sob a responsabilidade do Escrivão de Direito. É, nas Secretarias, que se vão desenvolver “fisicamente” os processos.

Começa aqui propriamente a função dos oficiais de justiça, separando os processos que exigem a intervenção imediata do juiz daqueles que requerem o cumprimento oficioso de diligências ou actos processuais a cargo da secretaria.

Na fase de julgamento, o primeiro contacto com os intervenientes é feitos na altura da distribuição, sendo-lhes dado conhecimento do Tribunal (sentido estrito) que passou a conhecer do processo.

Assim a primeira face visível do Tribunal julgador é o oficial de justiça. Em situações normais o contacto – físico – dos intervenientes com o juiz ocorre apenas na audiência de julgamento, uma vez que todos os actos requeridos o são através de requerimentos entrados na Secretaria. A consulta de qualquer processo é possível nas secretarias judiciais mediante a autorização do oficial de justiça que atende o pretenso interessado na consulta. Esta autorização do oficial de justiça é feita ou porque resulta da lei atento o estatuto do requerente (por exemplo o mandatário) ou por delegação do Juiz (caso normal dos requerimentos de consulta feitos por jornalistas).

A tramitação dos processos na secretaria decorre segundo os preceitos da lei, no cumprimento dos prazos nela fixados, segundo um critério de isenção e imparcialidade, não se podendo dar seguimento a uns em detrimento de outros. Tanto assim é que mesmo aos Juizes os processos são presentes segundo os prazos do acto que exigem e mediante os preceitos legalmente prescritos. Por exemplo o termo de apresentação ao juiz faz-se lavrando no processo o termo “Conclusão” apondo-lhe também a data em que tal é presente ao magistrado, devendo este ordenar o que tiver por conveniente, datando esse despacho, de molde a verificar-se um cumprimento atempado e assegurando-se que não há detrimento de uns processos em favor de outros. Esta garantia, que se revela importante para a própria fiabilidade e credibilidade do sistema judicial é possível porque entre funcionários judiciais e magistrados. Não há uma relação de dependência hierárquica, mas tão só funcional. Ou seja, o magistrado não pode ordenar ao oficial de justiça que não lhe apresente este ou aquele processo, quando a lei impõe esse magistrado nele se pronuncie. Evitam-se assim os extravios e os atrasos injustificáveis a que alguns processos estariam sujeitos, mormente pela sua complexidade.

Convém aqui salientar que a actuação do oficial de justiça tem duas vertentes – uma a de técnico de processado, com as suas funções e obrigações directa e estritamente vinculadas pela lei de processo, e outra, a de auxiliar nas diligências presididas pelo magistrado, em que, para além das obrigações que lhe são impostas pela lei, está sujeito às obrigações determinadas pelo magistrado no uso dos poderes discricionários que essa mesma lei e este confere. Realce-se que este poder discricionário é o que a lei concede, e não aquele que alguns magistrados entendem, designadamente quando pretendem realizar diligências muito para além do horário normal de funcionamento das secretarias, quando tal não decorre directamente da lei.

Outra faceta do oficial de justiça é a de executor (material) das decisões judiciais, que se

manifesta mais visivelmente nos actos de despejo, penhora ou arrolamento.

Feita esta apresentação sumária, vejamos como se define o papel dos funcionários judiciais face aos outros actores judiciários (magistrados e advogados) e os vários públicos, nomeadamente um público muito especial – os jornalistas – cada vez mais com um papel interventor e já não passivo como outrora, condicionando de forma indelével a acção da justiça.

O que pode um funcionário dizer.

Que respostas dar a perguntas tão simples como : Está marcado o julgamento? A que horas é? Os arguidos estão notificados? Fulano A é testemunha?

Acresce que muitas destas questões são colocadas telefonicamente, não se podendo aquilatar da identidade de quem as efectua. Mas, por exemplo o autor ou o assistente tem ou não direito de saber se o réu ou o arguido se encontra ou não notificado.

São questões, tão simples como estas, que não têm tido uma resposta uniforme. As atitudes perante os vários públicos e os vários actores não tem uma resposta única, variando inclusive dentro de um mesmo Tribunal. Atente-se a propósito no exemplo paradigmático do Tribunal da Boa-Hora.

È que, para além do entendimento de um magistrado diferir do outro, o próprio magistrado estabelece regras diferentes consoante o nível de interesse mediático do caso em concreto.

Perante isto, o funcionário é, muitas vezes colocado perante a situação de não saber o que dizer, tanto mais que não tem formação especifica na área. Isto é, aos oficiais de justiça é apenas ministrada, e de forma deficiente, formação na área processual. Todas as outras vertentes são por e simplesmente apagadas.

Ora, é ao oficial de justiça que as magistraturas incumbem a função de dizer não pode colher imagem, nem som, ou tão somente de não poderem consultar os autos e, mais uma vez, de forma avulsa. Não existem gabinetes de imprensa, e os acessos aos gabinetes das magistraturas são regulados pelo respectivo titular, o que na prática significa que nem todos os intervenientes estão em pé de igualdade. Resultado: sobra para o funcionário a demonstração de revolta e indignação dos vários interessados, quer seja na simples comunicação da não realização da audiência ou de outra qualquer decisão.

A tudo isto acresce a inadequação da maior parte dos edifícios onde se albergam os serviços.

Em suma, para uma correcta articulação dos vários actores e públicos da justiça, é necessário redefinir a organização dos Tribunais e as leis de processo, adaptando-as á sociedade actual, sem preterir, nunca, a serenidade e a ponderação que a aplicação da justiça requer. Mas, para que isto aconteça com efectiva compreensão dos reais destinatários, há que agilizar e descodificar linguagens e comportamentos. Na nossa modesta opinião, é tempo de dizer que o império da Lei não pode continuar a matar o principio fundamental da Justiça.

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