A deliberação da AACS sobre o caso da Cova da Moura

A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) decidiu arquivar uma queixa apresentada pelo Sindicato dos Jornalistas (SJ), em Fevereiro de 2002, contra a PSP, que impediu jornalistas da SIC de trabalharem na Cova da Moura. A AACS alega não poder apreciar a queixa “com os meios e competências que lhe são próprias”.

É o seguinte o texto integral da deliberação de 16 de Abril de 2003 da AACS:

Deliberação sobre queixa do Sindicato dos Jornalistas contra a PSP

OS FACTOS

Em 08 de Fevereiro de 2002, deu entrada nesta Alta Autoridade uma queixa apresentada pelo Sindicato dos Jornalistas contra a PSP, por alegada violação da liberdade de informação e do direito de acesso a locais públicos.

São os seguintes os seus fundamentos:

– Em 05 de Fevereiro de 2002, duas equipas de reportagem da SIC foram impedidas de realizar o seu trabalho por agentes policiais que se encontravam na Cova da Moura, numa operação;

– Os jornalistas foram encaminhados para a esquadra, tendo-lhes sido retiradas as câmaras, não obstante a garantia por eles dada, no decurso da acção de apreensão, de que iriam trabalhar as imagens por forma a não ser viável a identificação dos agentes que nelas figurassem.

Instado a pronunciar-se, o Departamento de Operações da PSP, responde:

– No decorrer da operação em referência, o comandante das brigadas no local apercebeu-se da presença de “alguns indivíduos que gesticulavam e gritavam repetidamente em viva voz ‘isto não pode ser, não podem utilizar assim as armas’(…)”, e gravavam os acontecimentos, tendo-lhes sido solicitado pelos agentes que parassem as filmagens, “dado não quererem que, quer a sua imagem, quer a dos suspeitos fosse divulgada”. E refere que os jornalistas foram advertidos de que tal procedimento “estaria a pôr em causa quer a operação em decurso, quer a investigação em causa”.

– Mais salienta que não foram então exibidos quaisquer cartões indentificadores nem carteiras profissionais, ou se fez menção a tratamento posterior das imagens no sentido de não serem as identidades percepcionáveis na sua difusão, se tal viesse a acontecer. E não foram também dadas garantias de que a transmissão em causa não fosse um directo.

– Segundo o Departamento, através da palavra do agente presente na operação, e autor do relatório, os dois indivíduos, juntamente com alguns outros que haviam entretanto chegado ao local e também se encontravam a filmar, foram conduzidos à esquadra de Alfragide com o respectivo material de filmagem, que permaneceu intacto, não tendo sido “retirada qualquer cassete ou visionada qualquer filmagem”.

– Só após solicitação da identificação e notificação verbal da necessidade de tratamento das imagens captadas e alguns contactos telefónicos entretanto por si efectuados, se identificaram, exibindo as respectivas carteiras.

– Alega ainda o mesmo Departamento que não houve qualquer intenção de apreender câmaras ou filmagens, tão pouco de ocultar a forma de actuação dos polícias envolvidos, mas tão somente a de não prejudicar a acção e a investigação em processamento, assim como a de preservar a imagem dos agentes, “precavendo—se contra possíveis ameaças à sua integridade física e até da vida”.

APRECIAÇÃO

Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 3º da lei nº43/98, de 6 de Agosto, é esta Alta Autoridade competente para apreciação da matéria.

Queixosos e visados invocam, nas peças em análise, normas constitucionais e legais para legitimação das respectivas actuações.

Protesta o Sindicato dos Jornalistas que foram violados os direitos à informação (artigos 37º e 38º da CRP) e acesso a locais públicos (artigo 9º do Estatuto dos Jornalistas), indicando a existência de obstrução ao exercício do direito de acesso (artigo 10º do diploma acabado de citar) e, por último, desrespeito pelo preceito aplicável à proibição de apreensão do material utilizado (nº 3 do artigo 11ºda mesma Lei).

A PSP ancora a sua posição no direito à protecção da imagem e segurança dos agentes intervenientes na operação, convocando, respectivamente, os artigos 26º e 27º da Constituição da República, e o Código Deontológico do Jornalista, quanto à falta de identificação dos jornalistas, conforme o seu nº 4, in fine, aludindo ainda à possibilidade de, com os comportamentos detectados, se acabar por pôr em causa o êxito da actuação e das investigações a que, na dependência de um processo, se procedia.

Verifica-se, pois, a colisão de direitos para cuja resolução entende a doutrina ser necessária a ponderação dos interesses jurídicos em causa, de acordo com os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade.

Recorde-se, antes de mais, que a própria Constituição regula a matéria, primeiramente ao possibilitar a restrição de direitos , liberdades e garantias (nº2 do artigo 18º), e, em conexão, quando comete ao direito criminal e ao procedimento contra-ordanacional o dirimir e julgar eventuais infracções perpetradas no âmbito das liberdades de expressão e de informação (nº3 do artigo 37º).

De acordo com o estabelecido no nº2 do artigo 18º da Lei Fundamental, os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados apenas poderão ser restringidos, sublinhe-se, na estrita medida do necessário, designadamente para salvaguarda de outros direitos e interesses com idêntico estatuto. É o que se aduz da exercício de diligências policiais no quadro de um processo-crime, de índole reservada. Só a audiência de julgamento – e nem sempre – é pública. Mas, legalmente parametrada, toda a constrição terá que ser conforme às exigências a que se fez menção.

O nº1 do artigo 9º da Lei nº1/99, de 13 de Janeiro, estipula, entretanto, que os jornalistas “têm direito de acesso a locais abertos ao público desde que para fins de cobertura informativa”., sendo que o artigo 10º, nºs 1 e 2, impõe que estes “não podem ser impedidos de entrar ou permanecer nos locais referidos no artigo quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional, sem outras limitações além das decorrentes da lei”, sendo que “para a efectivação do exercício do direito previsto no número anterior, os órgãos de comunicação social têm direito a utilizar os meios técnicos e humanos necessários ao desempenho da sua actividade”.

O nº3 do artigo 11º, logo adiante, relativo ao sigilo profissional, dispõe que “os jornalistas não podem ser desapossados do material utilizando ou obrigados a exibir os elementos recolhidos no exercício da profissão, salvo por mandato judicial e nos demais casos previstos na lei”.

Num tal enquadramento, o caso em apreço faz emergir, para além das questões de facto, um problema de atrito e hierarquização de direitos constitucionais: o elenco dos que asseguram a liberdade de imprensa versus o direito à segurança – conceito-quadro onde se integram os direitos à realização de justiça e à vida, à preservação da integridade física, e, entre outros , à imagem, bem como os que se situam a montante da manutenção da ordem pública.

Incontroversamente, o direito de informar deve ser exercido de modo a não exceder a responsável amplitude da lei, em ordem a garantir o rigor, a isenção, a independência dos conteúdos, e, desse modo, assegurar, no domínio que lhe cabe, o interesse público.

Afigura-se inarredável, para entendimento que aqui se visa, a presença das cláusulas que tutelam, na ordem democrática, a intervenção das forças policiais em operações como a descrita. Tanto na vertente que recusa o arbítrio, a desproporção e inadequação das condutas, a sonegação de informações devidas ou a obstrução ao livre exercício de faculdades do teor das que se afeiçoam à actividade jornalística, como na que recobre valores e procedimentos legítimos, direitos pessoais, incluindo os ligados aos agentes em acção de investigação, repressão do crime, reacção ao flagrante delito ou salvaguarda da paz e tranquilidade da vida comunitária. Decerto que a cobertura noticiosa de operações assim, qualquer que seja a sua tipologia, se vinculará sempre, na sua dimensão essencial e estruturante, aos normativos vigentes, e já em súmula explicitados.

No que aos factos se reporta, é, contudo, patente a existência de versões contraditórias que, mesmo quando escalpelizadas, não permitem, com os meios ao alcance da Alta Autoridade e no âmbito das suas competências, apurar, de forma inequívoca, o que ocorreu.

Sustenta a queixa, num aspecto nevrálgico, ter havido uma compressão injustificável do direito de informação por, no decurso das filmagens, terem sido apreendidas as câmaras, não permitindo a recolha das imagens, pressupondo que nenhuma interrogação subsistisse quanto ao estatuto credenciado e na conjuntura comprovado dos profissionais que crê atingidos. Contrapõe, a tal propósito, o relatório da PSP:

“Não tendo sido feita a exibição de qualquer carteira profissional de jornalista, nem tão pouco sido feita qualquer afirmação no sentido de serem dadas garantias de que não estava a haver transmissão em directo nem que as filmagens seriam editadas de forma a evitar que a imagem dos intervenientes fosse divulgada, os agentes acabaram por lhes retirar as respectivas câmaras”.

E, mais adiante, na redacção do mesmo graduado, já após o incidente no local, quando no interior da 64ª Esquadra – Alfragide: “Foi-me recusado pelos indivíduos a cedência de qualquer dado identificativo, afirmando não terem que fazê-lo e às ordens de um dos srs. ali presentes limitaram-se a exibir à distância uns cartões que diziam ser as carteiras profissionais continuando a não ser perceptível a leitura de qualquer dado.

Nessa altura o mesmo indivíduo que então tinha ordenado aos outros não fornecessem qualquer dado identificativo recebeu uma chamada telefónica via telemóvel na sequência da qual afirmou ‘olhe nós não queremos falar mais sobre este assunto, vem a caminho o advogado da firma que tratará de tudo’, retirando-se todos para o exterior da Esquadra.

Passados alguns minutos voltei junto dos mesmos e solicitei-lhes que me dissessem pelo menos o primeiro e último nome de um deles por forma a poder informar a minha hierarquia com quem estava a tratar, sendo que nesta altura e após receber nova chamada via telemóvel, o mesmo indivíduo que antes havia assumido as conversações disse ‘bom, Sr. Subcomissário já sei como é, nós damos-lhe as identificações e você dá-nos o material’, tendo identificado como José Carlos Costa, jornalista, com a carteira profissional nº 3407 e os restantes como Joaquim Franco, jornalista, com a carteira profissional nº 2692, Filipe Ferreira, jornalista, com a carteira profissional nº 3315, Pedro Falé, jornalista, com a carteira profissional nº 4612.

Por último, acrescente-se que nunca houve intenção de apreender as câmaras ou as filmagens. Nunca houve também qualquer intenção de ocultar a forma como se estava a actuar. Houve tão só no local da ocorrência a tentativa de impedir o prejuízo das investigações, bem como se verificou por parte dos agentes a defesa da sua imagem, precavendo-se assim contra possíveis ameaças à sua integridade física e até da vida.”

Na posse destes elementos, não é possível aproximar a análise, concludentemente, do que seria axial para efeitos de determinar se sim ou não foram contundidos princípios consignados, na Constituição e na lei, para efectivação do direito de informar.

Sendo patente que um jornalista como tal se identifica através da sua carteira profissional e que, nas diferentes circunstâncias, o momento da sua exibição deve ser moldado por critérios de necessidade, pertinência, formalismo, tempestividade, não se vê como concluir aqui, face aos dados disponíveis, pela escorreiteza procedimental dos queixosos, nem pelo contrário, com o que daí adviria para o que neste processo releva, ou, na mesma linha e não esgotando no raciocínio todas as possibilidades, por uma conduta isenta de erros, não ferida de traços ilegais, do corpo policial destacado para a operação da Cova da Moura.

Outrotanto se dirá sobre o que concerne ao exercício do direito de acesso e à proibição de apreensão de material utilizado, em tese difícil de coonestar à margem de uma incerteza forte quanto à identidade dos seus portadores. O que, como se viu, não pode esta Alta Autoridade dilucidar. Se o Sindicato dos Jornalistas entende, à revelia de quaisquer preocupações probatórias, agredidas “normas legais que garantem a livre circulação dos jornalistas em locais públicos” e impedem a retenção de instrumentos e suportes de reportagem, bem como do que nestes se acha recolhido, a PSP assegura que tais medidas, adoptadas na ausência aludida da identificação pessoal e profissional de quem conduziu à esquadra, se contiveram no mínimo, cobertas pelo carácter não público da actuação na esfera de um processo-crime e visavam proteger, como é lícito, a imagem, segurança e reserva da vida privada dos presentes, entre os quais, os polícias em intervenção. Conforme assinalam, os materiais apreendidos e a breve trecho devolvidos não foram danificados nem adulterados, de tal modo permanecendo passíveis de utilização a todo o tempo, num pressuposto de legalidade.

Consequentemente, relevando o assento constitucional nuclear do direito à informação e insistindo na reafirmação das regras segundo as quais a sua eventual restrição apenas pode decorrer nos termos apertados que a legislação prescreve, não se encontram reunidas, perante as zonas de obscuridade e névoa dos factos, as condições indispensáveis a uma decisão que se pronuncie pela procedência ou imprudência da queixa, mormente em quanto releva nos domínios sensíveis que ficaram rastreados e tendo em conta que à Alta Autoridade para a Comunicação Social não cabem poderes de inquérito ou produção de prova.

Com estes precisos contornos de posicionamento institucional, importa deliberar.

CONCLUSÃO

Tendo apreciado uma queixa do Sindicato dos Jornalistas contra a PSP, fundada em alegadas violações da lei aquando de uma operação por esta última levada a cabo na Cova da Moura, designadamente, nos termos da exposição feita, ao impedir a livre circulação de dois jornalistas em locais públicos e apreender instrumentos de trabalho, bem como elementos recolhidos de informação, a Alta Autoridade para a Comunicação Social, no quadro das prerrogativas que lhe são conferidas pela lei nº43/98, de 6 de Agosto, determina o arquivamento do processo, uma vez que do quadro de versões contrapostas que pôde apreciar, com os meios e competências que lhe são próprias, não resultou apurável, habilitando opção diversa, matéria de facto ao abrigo de indeterminações que só outros órgãos e instâncias por completo dissipariam.

Esta deliberação foi aprovada por maioria com votos a favor de José Manuel Mendes (Relator), Armando Torres Paulo (Presidente), Artur Portela, Sebastião Lima Rego, João Amaral, Manuela Matos, Joel Frederico da Silveira, Maria de Lurdes Monteiro e Carlos Veiga Pereira e abstenção de Jorge Pegado Liz.

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