Reestruturação tecnológica aumenta despedimentos

Cerca de 350 jornalistas portugueses foram levados a rescindir os contratos de trabalho durante processos de reestruturação realizados entre 2000 e 2005, tendo sido mais atingidas por despedimentos as redacções onde a alteração tecnológica foi mais profunda, segundo as conclusões do projecto de investigação europeu “A Digitalização no Sector da Comunicação: Um Desafio Europeu”, apresentadas, no dia 20 de Setembro, em Barcelona, Catalunha.

Os jornalistas mais atingidos pelas reestruturações tinham mais de 50 anos de idade e mais de 20 de profissão, enquanto os menos afectados tinham idades abaixo dos 30 anos e menos de seis de actividade.

Os segundos eram, “obviamente, os que tinham salários mais baixos”, enfatizou o presidente da Mesa da Assembleia Geral do Sindicato dos Jornalistas (SJ), José Luiz Fernandes, que integrou a equipa de investigadores do projecto, também conhecido pelo acrónimo “Media DigIT”.

Falando na Jornada Anual de Jornalistas da Catalunha, na qual foram apresentados os resultados, José Luiz Fernandes sublinhou que “a tecnologia digital afasta das redacções os jornalistas mais experientes, os jornalistas com memória histórica; e os jornalistas com noção da responsabilidade social da profissão”.

Redução da crítica interna nas redacções e dos níveis de exigência ética e deontológica, bem como o “esquecimento do passado que ajuda a compreender o presente e a perspectivar o futuro” são consequências da “limpeza” das redacções, acrescentou.

O representante do SJ no projecto criticou o “milagre” do aumento da produtividade baseado no sacrifício do emprego e avisou que a “ tecnologia digital facilita que se ponha em causa a identidade profissional do jornalista, desqualificando o seu papel de mediador na organização social”.

Participaram no projecto, co-financiado pela Comissão Europeia, através do Programa Leonardo da Vinci, o Sindicato português, o Colégio e o Sindicato de Jornalistas da Catalunha, o Sindicato dos Jornalistas do Chipre e quatro instituições de educação e formação profissional: o CENJOR (Portugal), o Fundo de Formação da Zona Mediterrânica (Catalunha), o Centro de Educação e Formação de Rogaland (Noruega) e o Centro para o Desenvolvimento e Inovação na Educação (Roménia).

Intervenção de José Luiz Fernandes na íntegra

Quais são, para os jornalistas, as consequências do uso da tecnologia digital nos média? A minha pergunta de partida não é sobre as consequências para o jornalismo, porque isso implicaria um questionamento demasiado vasto para o tempo que temos. Limito a questão, sendo certo que ao falar das consequências para os jornalistas não poderei deixar de falar de algumas consequências para o jornalismo e para os cidadãos.

Procurarei respostas a partir duma breve análise da situação em Portugal, mas sem esquecer o que se passa na Europa e noutras partes do mundo.

Num estudo feito no âmbito do projecto Media DigIT, concluímos que em Portugal, de 2000 a 2005, cerca de 350 jornalistas tiveram o contrato de trabalho rescindido durante processos de reestruturação. As redacções onde houve maior número de despedimentos foram aquelas onde a reestruturação tecnológica foi mais profunda, com a substituição de equipamentos analógicos por equipamentos digitais ou a introdução de software novo.

Primeira resposta à questão inicial:

– A tecnologia digital provoca desemprego nos jornalistas.

Analisando o perfil sociodemográfico destes jornalistas portugueses, conclui-se que o número de homens é quase o dobro do número de mulheres. Isto deve-se à maior presença de homens na profissão, à qual as mulheres começaram a aceder só nos anos 70 e com um maior ritmo no final dos anos 80.

Conclui-se também que os jornalistas mais atingidos pelas reestruturações têm idades a partir dos 50 anos e têm mais de 20 anos de carreira profissional. Inversamente, os jornalistas menos afectados têm idades abaixo dos 30 anos e menos de 6 anos de permanência na profissão. Obviamente, eram os que tinham salários mais baixos.

Segunda resposta, a tecnologia digital afasta das redacções:

– Os jornalistas mais experientes;

– Os jornalistas com memória histórica;

– Os jornalistas com noção da responsabilidade social da profissão.

Daqui advém outra consequência, esta para o jornalismo:

– Redução da crítica interna nas redacções;

– Esquecimento do passado que ajuda a compreender o presente e a perspectivar o futuro;

– Redução dos níveis de exigência ética e deontológica.

A “limpeza” (o termo não é demasiado forte) das redacções impede esses jornalistas, que são os mais bem preparados, de comunicarem com os cidadãos que deviam continuar a servir, como agentes activos do direito à informação.

Daqui resulta um outro efeito, este atingindo directamente os cidadãos:

– Abaixamento da qualidade da informação jornalística.

Há uma retórica, utilizada para tentar conferir legitimidade à ”limpeza” das redacções, que apresenta a tecnologia digital como a solução redentora de todos os males. Além do mais, propagandeiam, é uma tecnologia apolítica, neutra e independente – ocultando que é a mesma que é utilizada nas modernas máquinas de guerra e nos sistemas de vigilância que devassam a nossa privacidade. E, maravilha das maravilhas, é uma tecnologia que opera o milagre de aumentar a produtividade, apesar de provocar desemprego. Neste ponto, dum modo geral, o discurso sofre uma inflexão pois torna-se difícil explicar para que serve o aumento da produtividade para além de incrementar o lucro que engrossa os dividendos dos accionistas da indústria da comunicação.

Esta retórica é acolhida acriticamente por muitos jornalistas, sobretudo pelos que ocupam cargos na hierarquia e pelas figuras do star system. Tal como é acolhida pelos milhares de jovens que tendo obtido uma formação em ciências da comunicação aspiram a um emprego nesta indústria. Não querem concretamente ser jornalistas, querem legitimamente um emprego!

São estes jovens, agradecidos por um emprego que já desesperavam de obter, mesmo precário e mal pago, que corporizam o papel do jornalista peça dum sistema tecnocrático. O jornalista que obedece sem reflectir no que faz, o jornalista que não investiga, que copia e adapta o que outros fizeram, que valoriza temáticas de mero entretenimento ou contaminadas pelo marketing, o jornalista sem autonomia editorial. O jornalista que se tornou uma espécie de robot e que é substituído, a qualquer momento, por outro preferencialmente mais vulnerável e controlável.

Eis uma outra resposta para a questão inicial:

– A tecnologia digital facilita que se ponha em causa a identidade profissional do jornalista, desqualificando o seu papel de mediador na organização social.

Hoje, ainda não estamos a falar dos computadores que farão as notícias que são feitas pelos jornalistas, mas não se admirem se falarmos deles na sessão de encerramento de um próximo projecto, daqui por dois anos.

Contudo, confrontamo-nos com várias formas de desqualificação do jornalismo profissional inclusive através da valorização da actividade de amadores associada à utilização da tecnologia digital. É o caso do “jornalismo do cidadão”.

Também nos confrontamos com a prática cada vez mais alargada da divulgação duma peça noticiosa em múltiplas plataformas do mesmo grupo ou conglomerado de empresas. A concentração – horizontal, vertical e transnacional – é, também, motivo e consequência da digitalização.

É legítimo apontar mais uma consequência, para o cidadão e para a qualidade da democracia que supostamente tem como seus pilares o pluralismo e o direito à informação:

– Há uma crescente homogeneização da interpretação e representação da actualidade, sendo proposto ao cidadão um “produto branco”, totalmente padronizado, “embalado” em diferentes embrulhos digitais.

Os direitos de autor dos jornalistas, morais e materiais, parecem não constituir problema para a indústria. Nalguns países, onde vigora o copyright anglo-americano, já não são problema. Noutros, inclusive na maioria dos países da Europa, a indústria tem a cumplicidade do poder político para modificar a legislação, como acontece em Portugal. Enquanto isso não se concretiza, a indústria pura e simplesmente não paga direitos de autor.

É tempo de terminar esta tentativa de encontrar respostas para uma questão que no conduz, afinal, a outra interrogação: o que podem fazer os jornalistas para preservar a sua profissão e a responsabilidade social que lhes está atribuída?

As respostas – não A Resposta, pois as circunstâncias concretas de cada situação continuarão a existir – têm ser encontradas fora de um quadro de catastrofismo mas com a noção da força e dos processos dos opositores. Com a consciência de que esses opositores não são, somente, a hierarquia, a empresa ou, mesmo, o conglomerado transnacional em que estamos envolvidos. Com a noção de que o processo de desqualificação do jornalismo, associado à imposição da tecnologia digital, é algo que vem sendo teorizado, testado e praticado desde há muitos anos.

Será conveniente recordarmos que foi em 1969 que Sr. Zbigniew Brzezinski, em “Between Two Ages. America’s Role in the Technetronic Era”, formulou a teoria de como a informação e a electrónica influenciariam decisivamente a humanidade de uma forma não coerciva. E que foi em 1994 que irrompeu a Internet, faz já treze anos, peça fundamental da estratégia chamada global information dominance.

O que está em causa é muito mais do que as relações do jornalismo com a tecnologia digital, ou vice-versa. O problema é o da hegemonia mundial. Face a ele o que podem fazer os jornalistas? Antes de tudo e como condição para fazerem algo é imprescindível ter consciência da raiz do problema. E terão? Com esta nova pergunta termino e agradeço a atenção com que me escutaram.

Barcelona, 20/09/2007

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