Palavras do presidente cessante

No acto de posse dos novos corpos directivos do Sindicato dos Jornalistas, eleitos em Outubro de 2000, o presidente cessante, João Isidro, ao usar da palavra antes do seu sucessor, pronunciou um discurso a que deu o título «Um voto de esperança».

Em discurso de fim de mandato, é incontornável o uso da primeira pessoa do singular, à semelhança da forma que a Diana Andringa utilizou, em 7 de Junho de 1998, quando me transmitiu a pasta. A minha passagem pela presidência do Sindicato dos Jornalistas tem também tudo a ver com a Diana e com a tarde de um sábado – creio que era sábado – quando recebi um telefonema inesquecível. A Diana disse-me mais ou menos isto: “Estamos aqui reunidos, vamos profissionalizar a presidência do Sindicato, queremos que sejas o próximo presidente”. E passou a uma série de explicações sobre os motivos que tinham conduzido a Direcção em funções a avançar o nome do chefe de redacção do PassaPalavra para cabeça de uma lista já congeminada.

Nunca estive de acordo com profissionalizações de cargos sindicais e argumentei nesse sentido. Apesar dos Estatutos e para a salvação do Sindicato, à data em perigo, como de costume, acabei por desempenhar o papel de cereja no topo de um bolo cozinhado de antemão, apesar dos avisos de amigos contra tal reviravolta dada na minha vida, aos 48 anos de idade. Conhecia pouco ou desconhecia as e os camaradas de Direcção que me foram sendo apresentados. Apenas com um tinha trabalhado, na mesma Redacção, durante menos de um ano. Devido a alarmes avulsos lançados por um jornal e acompanhados pelo Oscar Mascarenhas e pela Diana, acabei com a avença que me ligava à Agenda Cultural da  Câmara Municipal de Lisboa, já com a minha campanha eleitoral em curso.

A Câmara proibia-me de escrever sobre as suas realizações, dava-me toda a liberdade de mandar imprimir o que quisesse. As minhas transgressões à regra de deixar de lado as realizações da CML foram duas ou três, em três anos. Porque achava que o mérito excepcional de certas iniciativas não podiam ficar de fora.

Houve, enfim, o meu embarque num desses alarmes agora muito em voga, agitações convulsivas que colocam, volta e meia, o Sindicato dos Jornalistas à beira de apocalipses não especificados em quaisquer escrituras. Ouvi recentemente alarmes similares, a propósito da apresentação de uma candidatura ao Conselho Geral, mas sempre fomos pensando, entre integrantes e apoiantes da Lista B, que na primeira qualquer cai e na segunda cai quem quer.

Desta não caímos.

Em 1998, a lista que encabecei para a Direcção foi a votos, teve um resultado inferior ao obtido pela Direcção de Diana Andringa e algo superior à que saiu do sufrágio do passado dia 16. A saber: A lista encabeçada por Diana Andringa teve 1067 votos, a que eu encabecei teve 914 e a que hoje aqui toma posse teve 705.

A continuar esta tendência, é de ponderar a modificação urgente dos Estatutos no sentido que a Lista B para o Conselho Geral apontou. É que se trata de uma deriva, essa sim, alarmante.

Nascido em 1950, jornalista profissional desde 1973 e leitor compulsivo desde 1955, considero hoje imperdoável o esquecimento parcial do que Balzac dizia dos estagiários: “Essa bonomia aparente que seduz os recém-chegados e não impede qualquer traição, que se permite e justifica tudo, que se queixa em voz alta de uma ferida e a perdoa, é um dos caracteres distintivos do jornalista. Essa ‘camaradagem’ (entre aspas, a camaradagem)… corrói as mais belas almas; enferruja-lhes o orgulho, mata o princípio das grandes obras e consagra a cobardia do espírito”.

Pouco importa analisar aqui e agora as razões que me distanciam da “bonomia aparente” que “não impede qualquer traição” e acaba por justificar tudo, segundo o autor da “Comédia Humana”, falecido há 150 anos. Nem por isso deixa de ser interessante destacar uma das razões que enferrujam o orgulho de uma classe inteira. Refiro-me ao instrumento de contratação colectiva que a força das circunstâncias e a nossa boa vontade negocial me levaram a assinar com a Associação da Imprensa Não-Diária, a AIND. Tinha ao meu lado o Dr. Serra Pereira, concordámos em não prolongar mais um processo complexo, arrastado e medíocre, antes de sairmos com a garantia da prática de remunerações não inferiores ao salário mínimo nacional.

Parece mentira, mas não é.

No Ministério do Trabalho, também na companhia do Dr. Serra Pereira, participei numa reunião conciliatória, tristonha e falhada com a Associação da Imprensa Diária, a AID, que pelos vistos adiou para as calendas gregas a celebração hipotética de um acordo de contornos tão pindéricos como o que se obteve com a AIND.

Valerá a pena persistir em negociações destas?

À primeira vista, parece que não. E é verdade. A grande questão é que existem situações laborais bem piores, entre os profissionais da Informação, sobretudo os mais jovens e os menos habituados à estabilidade no emprego, que ainda há poucos anos identificavam a luta pelas carreiras com o puro e simples carreirismo. Saliente-se que os mais fracos contaram, não raras vezes, com acções da Inspecção Geral do Trabalho, que tem sido impecável na mobilização dos poucos meios que dispõe para acorrer às redacções onde as tropelias se cometem, e são praticamente todas.

Ignorar a IGT nesta intervenção seria injusto, apesar de se exigir muito mais a um Estado de Direito que desregulamentou tudo mal e depressa, neste sector, como noutros.

Pouco mais de um mês de ter tomado posse como presidente da Direcção, há dois anos, fui confrontado com o despedimento selvagem de jornalistas e outros trabalhadores do “Semanário”, da revista “Factos” e do “Só Visto”. Cento e vinte pessoas foram corridas de um dia para o outro, com base em explicações confusas e na arrogância de um patrão que decerto acreditava que ainda vivíamos todos no princípio do século XIX. As desregulamentações várias abriram as portas a estas aventuras e a luta que entretanto se travou teve contornos no mínimo esquisitos, na medida em que os jornalistas se dividiram quanto à oportunidade de desencadearem acções de rua. Lá se conseguiu arrancar, um bocado a ferros, com uma concentração ao sol de Agosto, acção que, apesar de tudo, cumpriu os objectivos que se propunha, abrindo o caminho à entrada em cena do cumprimento das leis que regem o País. Ainda hoje considero espantoso o facto de assalariados que todos os dias informam sobre questões laborais e formas de luta mais radicais adoptadas por outros trabalhadores, ou pelos estudantes, para apenas citar dois exemplos, acharem de mau tom agirem em conformidade, quando insultados daquela maneira. Do ponto de vista sindical, constatamos que os jornalistas representados pelo nosso departamento jurídico ganharam o que havia a ganhar no meio da hecatombe e que outros despedimentos colectivos, com destaque para o da revista “20 Anos”, foram resolvidos de forma tanto quanto possível satisfatória, na perspectiva dos jornalistas, se é que pode haver formas satisfatórias em despedimentos colectivos.

Quando era necessário dar uma resposta imediata e firme ao “diktat” da empresa do “Semanário”, fiquei algo aturdido, repito, com o comportamento de camaradas nossos de profissão, postos sem explicações no olho da rua, sem quererem manifestar nessa rua o repúdio pela tratantice de que eram vítimas, talvez convencidos que integravam uma classe à parte no mundo dos assalariados, quando se tratava de defender direitos laborais mínimos. 

Também quanto aos direitos laborais mais específicos do nosso ofício, achei que a classe e alguns dos seus mais credenciados representantes se  comportaram de forma sofrível, quando se tratou dos direitos de autor dos jornalistas, para os quais alertei a classe quando era responsável pelo PassaPalavra, em todas as edições, mais tarde, quando me candidatei à presidência do nosso Sindicato e ainda no discurso de posse. 

Bastava ler.

Houve logo quem tirasse a brilhante conclusão que aquilo dos direitos de autor era mais ou menos uma mania minha, que sem o chamariz de vantagens pecuniárias à vista ficaríamos sós no terreno. Ainda na legislatura anterior, abandonámos o Palácio da Ajuda com uma garantia solene, da parte do representante do então Ministro da Cultura: as nossas pretensões nunca seriam acolhidas pelo Parlamento. E depois foi o que se viu: o Estatuto do Jornalista, incluindo os direitos de autor, obteve a unanimidade da Assembleia da República. E porquê? Porque paralelamente às acções mais públicas foi feito um trabalho de convencimento discreto, mas sem dúvida eficaz, que resultou numa primeira vitória. Cedo se tornou claro que a segunda vitória, a da regulamentação da Lei nº1/99, seria também difícil de obter. Para além dos instrumentos clássicos de luta neste terreno, que já utilizámos e devemos continuar a utilizar, será pura cegueira sindical deixar de aproveitar a turbulência política que o País vive para avançar com outro trabalho de convencimento discreto, adaptado às circunstâncias presentes. Se desejarmos, como é bom de ver, conseguir efectivos avanços na dignificação da profissão, em vez de guardarmos com carinho mais uma causa de descontentamento para disparar, volta e meia, sem resultados mas com estampido. Combato essas tácticas de pólvora seca desde que me conheço na actividade associativa e sindical, até porque não desconheço que, da outra trincheira, a resposta é a doer, por via de regra.

É nestas alturas que devemos avançar com o poderzinho que temos, que como sabemos não é o chamado “quarto poder” inventado pelo patronato para nos dizer, com uma palmada nas costas: “Pois é, nós pagamos pouco, mas vocês podem muito”.

Em mais de um quarto de século de profissão, só uma vez vi esse quarto poder funcionar em pleno, em circunstâncias irrepetíveis. Foi na campanha por Timor Loro Sae. Não posso esquecer aquele sábado, 4 de Setembro de 1999, quando nesta casa a Maria João, o marido dela, o Hélder, e eu próprio desencadeámos uma desesperada ofensiva telefónica em todas as direcções, desde os poderes públicos portugueses até ao Hotel Mahkota, passando pela Federação Internacional dos Jornalistas. Conseguimos chegar à fala com o Hernâni Carvalho, primeiro, com a Maria José Garrido, depois. E nunca mais perdemos o contacto com os nossos camaradas que se encontravam na terra mártir de Timor Loro Sae.

Quando anunciei à grande concentração perto da missão das Nações Unidas, em Lisboa, que os nossos camaradas Hernâni Carvalho, Jorge Araújo, José Vegar e Luciano Alvarez tinham ficado em Díli, depois da evacuação de funcionários da ONU e de jornalistas, a ovação que ouvi ainda hoje ecoa nos meus ouvidos, sobretudo quando leio sondagens que dão o nosso ofício como o mais prestigiado em Portugal. É a eles que a classe deve esse estatuto, disso não tenho dúvidas.

Também não posso esquecer a abnegação e a militância do Miguel Mauritti, que com o Osvaldo de Sousa, da Humorgrafe, lançou a campanha internacional e nacional que, partindo dos Caricaturistas por Timor, teve repercussões mundiais de tal ordem que contribuiu para a mudança de 180 graus da posição dos Estados Unidas quanto a este assunto.

Ainda no plano internacional, creio que é a altura de explicar em público que me recusei a ir a Havana, ao VI Encontro Ibero-Americano de Jornalistas, devido à posição tomada pelas autoridades cubanas perante a luta heróica de um povo que resistiu nas montanhas de uma ilha durante 25 anos. Não faria sentido eu ter dado a cara nas grandes manifestações por Timor Loro Sae e depois viajar até Cuba. Acresce que por aquelas bandas não floresce a liberdade de expressão, porque ainda há quem cogite que os bloqueios comerciais externos se combatem com bloqueios mentais internos.

Muitos outros assuntos merecem referência, mas o que aqui nos reúne não é a apresentação de um relatório e contas.

Quero sublinhar, entretanto, o bom relacionamento que tivemos com responsáveis governamentais que nos solicitaram colaboração, como foram os casos dos ministros da Justiça e da Solidariedade, ou que apoiaram iniciativas nossas, como o Secretário de Estado da Comunicação Social, que se mantiveram em contacto com o Sindicato dos Jornalistas para tratar de assuntos que interessam à classe e ao País. Nem a nossa independência foi posta em causa, nem a autoridade do Estado se comprometeu. Penso, aliás, que ambas -independência e autoridade – ganharam com o facto de termos debatido assuntos de inegável interesse público.

Seria injusto não referir aqui os apoios recebidos da Câmara Municipal de Lisboa, da Fundação Calouste Gulbenkian, da McCann Imagem e da Motorola.

Uma palavra muito especial de apreço vai para a Alta Autoridade para a Comunicação Social, que sempre esteve ao nosso lado na defesa de causas que todos considerámos justas, como os direitos de autor dos jornalistas, ou na análise de fenómenos bizarros, como a holding que há dias foi discutida na Assembleia da República.

Para terminar, um muito obrigado muito grande aos serviços do Sindicato dos Jornalistas, que como já várias vezes referi continuam a ser a primeira linha do contacto com os associados, da defesa dos direitos dos profissionais das redacções e da dedicação a esta casa. Durante anos, e através de conjunturas quase sempre adversas, os funcionários do SJ mantiveram um nível de desempenho a todos os títulos louvável. Só espero que os sócios tenham a iniciativa de adequar Sindicato aos novos tempos e às novas tarefas, porque do lado dos serviços podemos contar com a colaboração de sempre, com resultados tão positivos como os que se registaram na formação do recente núcleo dos free-lancers.

 

Estou certo que o movimento sindical, em Portugal e no resto do Mundo,  está em vias de encontrar as formas adequadas de travar novos combates. Sob pena de se repetir como farsa a tragédia que sofreu nos anos 30, longe vá o agoiro. E faço votos para que o Sindicato dos Jornalistas continue a ter a invejável taxa de sindicalização que tem, atraindo cada vez mais jovens, e olhando à volta, para constatar o que acontece a estruturas laborais anquilosadas, cá e lá fora.

Daí o voto de esperança que hoje exprimo.

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