Pressões sobre cidadãos para se exporem é inaceitável

O Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas relembra aos jornalistas a sua obrigação de defenderem “a privacidade de todos os cidadãos” e recomenda-lhes que se abstenham de oferecer qualquer compensação a pessoas vítimas de crimes, a troco da exposição mediática da sua privacidade, mesmo verificando que para tal existe predisposição dos visados ou de familiares destes. O CD apela aos Conselhos de Redacção no sentido de actuarem para impedir esse tipo de «negociação».

A constante repetição de casos em que é exposta a privacidade e a intimidade de pessoas socialmente desfavorecidas, levou o Conselho Deontológico a recomendar aos jornalistas que mantenham “como ponto de honra a obrigação de defender a privacidade de todos os cidadãos, em especial os envolvidos em crimes infamantes e em muito particular os casos que vitimizam crianças, deficientes mentais ou marginalizados”.

De acordo com a recomendação, os Conselhos de Redacção (CR) devem não só ter um papel activo para “impor internamente a recusa frontal a qualquer tipo de «negociação» entre o jornalista a as vítimas de agressões hediondas”, mas também “denunciar – publicamente e através do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – as situações detectadas” e genericamente referidas na recomendação do CD.

“O dever de lealdade não se trafica por baixo da mesa nem fica resolvido através de nenhum golpe de mão”, refere a análise do CD, sublinhando que estes procedimentos “relevam gravíssimas agressões aos mais elementares códigos de conduta por parte de agentes sociais – jornalistas e/ou a hierarquia em que se enquadram – que, precisamente por força da profissão que exercem, são cidadãos duplamente responsáveis”.

É o seguinte o texto integral da recomendação do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas:

Conselho Deontológico

Recomendação 1/R/2002

Assunto: Pressões sobre cidadãos comuns para “aceitarem” a exposição pública

Exposição:

“1. Estão a repetir-se casos em que foi, de forma irresponsável, posta em causa a privacidade e a intimidade de pessoas socialmente desfavorecidas, vítimas de crimes infamantes.

Em alguns deles, os órgãos de informação resguardam-se na desculpa de que a divulgação de tais “histórias” terá sido “autorizada” pelos intervenientes, a troco de uma fugaz notoriedade ou até contrapartidas materiais.

“2. Por vezes, o noticiário escabroso chega a envolver crianças e os órgãos de informação sentem-se livres de publicar apenas porque os pais ou tutores, apesar de ignorantes ou negligentes quanto aos efectivos direitos e deveres, assim o consentem.

Nos casos em apreço e na ausência de qualquer justificação por parte dos jornalistas envolvidos – embora solicitada – haverá indicações – ou até fortes suspeitas – de que a notícia de uma determinada cidadã, vítima de crime hediondo, teve direito a manchete e fotos “autorizadas” pela própria a troco não se sabe de que compensação.

“3. Já em 05/Nov/96 (Recomendação 4/96), por ter verificado negligências graves nesta matéria, o Conselho Deontológico tinha alertado a classe para situações em que, manifestamente, “os cidadãos comuns só podem ser objecto de notícia se fizerem alguma coisa para o serem e, mesmo assim, se os termos da notícia lhes não violarem os direitos à imagem, ao bom nome e à reserva da intimidade”.

Então se lembrava que “os jornalistas (…) devem respeitar, em todos os casos, o direito à imagem, ao bom nome e à reserva de intimidade dos cidadãos comuns (…) efectuando uma abordagem leal”.

Mais se recordava a particular responsabilidade que cabe aos Conselhos de Redacção na “vigilância crítica constante no sentido de impedir a prática de deslealdades no relacionamento de jornalistas com as pessoas contactadas”.

Análise:

“1. Tais procedimentos revelam gravíssimas agressões aos mais elementares códigos de conduta por parte de agentes sociais – jornalistas e/ou a hierarquia em que se enquadram – que, precisamente por força da profissão que exercem, são cidadãos duplamente responsáveis.

Esta deslealdade cometida por jornalistas contra pessoas desfavorecidas parte de uma leitura perversa das normas éticas, entendendo que “toda a autorização é autorização”, que justifica e isenta o jornalista de usar o escrúpulo como instrumento de trabalho.

“2. Assiste-se a uma espécie de “variante” às obrigações descritas nos n.os 7 e 9 do nosso Código Deontológico.

Ainda que a vítima tenha dado o acordo para que ela própria viesse a ser despudoradamente exposta à luz do dia, o dever de lealdade do jornalista para com a sociedade e para com a vítima sobrepõe-se claramente ao outro.

O dever de lealdade não se trafica por baixo da mesa nem fica resolvido através de nenhum golpe de mão.

“3. Ao avançar para tais processos, o jornalista manda às urtigas um dever social superior que é o de não contribuir para o descrédito dele próprio, do órgão de informação que serve ou do exercício saudável de uma profissão nobre, ao invés de ser vista como um mero comércio.

“4. Nos infelizes casos onde a vítima “autorizou” a exposição pública, na mira de benefícios materiais, o jornalista esquece que qualquer inqualificável proposta de “compensação” – ainda que “negociada” – vai atingir um cidadão social e economicamente desfavorecido e como tal dependente de “benefícios”, por modestos que se revelem.

O exercício do privilégio de quem “tem dinheiro para pagar tudo” é uma vil forma de domínio.

Pior ainda, não raro, a “reportagem” surge envolvida numa aura de comiseração hipócrita para com o cidadão-vítima, tanto ou mais miserável ainda do que os comportamentos miseráveis que deram origem à divulgação.

Assim, entende o Conselho Deontológico emitir a seguinte

Recomendação

“1. Os jornalistas devem manter como ponto de honra a obrigação de defender a privacidade de todos os cidadãos, em especial os envolvidos em crimes infamantes e em muito particular os casos que vitimizam crianças, deficientes mentais ou marginalizados.

“2. Ao actuar desta forma, os jornalistas abstêm-se de oferecer qualquer “compensação” às vítimas para que “se deixem expor” ainda que para tal sejam, por hipótese, orientados e até obrigados pela(s) chefia(s).

“3. Verificando que as vítimas ou familiares destas deram – ou estarão disponíveis para dar – “autorização” para que a privacidade delas seja exposta ao olhar mórbido de quem procura tais “histórias”, os jornalistas devem fazer prevalecer, antes de tudo o mais, o inalienável dever de respeito pelos destinatários e o indiscutível respeito por si próprios, de forma a tudo fazer para que a classe e os jornalistas fiquem cada vez mais prestigiados.

“4. Cabe aos Conselhos de Redacção, a bem do mais elementar bom senso, vigiar as formas de contacto entre os jornalistas e cidadãos, impor internamente a recusa frontal a qualquer tipo de “negociação” entre o jornalista e as vítimas de agressões hediondas e, acima de tudo, denunciar – publicamente e através do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – as situações detectadas e aqui genericamente referidas”.

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