Fundado pela família Seara Cardoso em 1854, O Comércio do Porto é evocado, numa fase da sua longa história, por um jornalista que encontrou, na sua redacção, uma atmosfera de liberdade verdadeiramente invulgar no período anterior ao 25 de Abril. Texto de Armando Pereira da Silva.
Este teimoso representante da grande imprensa portuguesa dos séculos XIX/XX diz-me alguma coisa. Ou diz-me muito. Primeiro, na minha juventude inquieta vivida intensamente em Aveiro, habituei-me a ler no velho “Comércio” o mais brilhante e livre exercício regular de crítica literária feito no País, assinado por figuras de grande envergadura como Óscar Lopes e Mário Sacramento. Não é por acaso que cito este exemplo: na década de cinquenta do século XX, era necessária coragem e uma grande abertura intelectual e política para assumir a publicação de tais autores. Depois, aconteceu que foi nesse jornal (delegação de Lisboa), que em meados da década de sessenta me profissionalizei, que o mesmo é dizer, me sindicalizei, única forma de adquirir o direito à carteira de jornalista.
Nesse tempo, eu já trabalhava na revista Vida Mundial, densíssima experiência que terminaria numa demissão colectiva, em 1969, pouco antes da fantochada eleitoral desse mesmo ano. Nunca mais se falou de tal acto, inequivocamente incómodo e muito raro na história da nossa classe. E no entanto ele foi, a meu ver, um dos marcos fundamentais do despertar da classe para a urgência da conquista da sua dignidade. Mas são contas de outro rosário. O certo é que, na época, só os jornais diários permitiam a profissionalização com direitos. E os baixíssimos salários impunham, por norma, o segundo emprego, que nem sempre, ou raramente, era o jornalismo.
No meu caso, foi. O chefe da delegação de O Comércio do Porto em Lisboa era um homem digno e grande jornalista, mais conhecido pela sua colaboração desportiva na RTP, de seu nome José Alves dos Santos. Foi ele que me convidou para a Redacção do CP. Jovem e, se se quiser, algo ingénuo, pus-lhe imediatamente uma condição: «Aceito, desde que não tenha de fazer fretes». Por fretes, entenda-se o cumpliciamento profissional com o regime político e económico de então. «Do que menos precisamos aqui é de gente que faça fretes», respondeu-me aquele profissional honrado, já falecido, que me viria a instruir, de forma modelar, sobre os perigos e ciladas a que estávamos sujeitos. E que de grande utilidade me foram na desmontagem das armadilhas que nesses anos de chumbo nos eram estendidas.
O Comércio do Porto ainda se inseria no grupo dos tradicionais jornais «de família». Continuava nas mãos de um dos troncos familiares dos seus fundadores, a família Seara Cardoso. O velho patriarca acabara de entregar a direcção do jornal a um dos filhos, a administração a outro. Mas continuava atento, velando para que o «Comércio», tendo de viver com o regime político, a ele não se vergasse; e, sobretudo, que defendesse e respeitasse o seu público, aquilo a que hoje se chamaria a sua «franja de mercado». Coisa de que, anos depois, muitos, ou quase todos os velhos jornais se esqueceram. Dramaticamente.
Não era perfeito, longe disso, o velho «Comércio». Mas mantinha uma forte ligação aos leitores, e conhecia-os. De certo modo, continuava a ser um jornal de causas, mesmo que localizadas, e mantinha uma notória actividade de assistência social que os tempos justificavam. Desde cedo convidado para colunista do jornal, aqui declaro que nunca em lado algum escrevi com mais liberdade. E que essa liberdade foi assumida e incentivada pela direcção do jornal: vistos os cortes sucessivos e em muitos casos irremediáveis da censura nos meus textos, foi-me dito mais ou menos o seguinte: «Os serviços de Censura, no Porto, fecham às onze da noite. Passa a mandar os artigos depois dessa hora. Nós assumimos a responsabilidade da sua publicação». E assim se fez.
Já em plena Assembleia Nacional da era marcelista, cujos trabalhos acompanhei para O Comércio do Porto, um conhecido e influente falcão transmontano do ideário salazarista, incomodado com a cobertura das sessões parlamentares, mandou à direcção do «Comércio» uma carta em que o mínimo que exigia era o meu despedimento. Do Porto chegou-me o original da missiva com uma nota do director: «Se quiser responder a isto, publicamos a carta e a resposta. Se achar que não vale a pena, lixo com ela».
Poderia multiplicar os exemplos de dignidade e apoio profissional que aquela velha casa me prodigalizou. Até que, no princípio da década de setenta, o jornal não resistiu mais ao assalto dos Bancos. A exemplo de quase todos os outros, caiu na carteira de um deles, o Borges & Irmão, que nele mandava quando aconteceu o 25 de Abril. Antes disso, eu tinha saído e voltado. E voltei a sair, envolvido noutros projectos, mas sempre com uma carta de regresso na mão.
Fragilizado pelas diversas crises que sobre a velha imprensa confluíram, ainda por cima orfão do suporte da coerência que o seu passado familiar lhe permitia, O Comércio do Porto começou a vogar ao sabor das ondas. Nem sempre as melhores. Agora, quando escrevo esta crónica, balança entre o encerramento definitivo ou a venda, sabe-se lá para quê, a um qualquer grupo ignorante da sua história.
Receio que esteja a concretizar-se um dos últimos golpes contra a nossa memória colectiva. Exactamente quando mais se justifica um esforço de recuperação da mesma, sem a qual estamos ameçados de perder o futuro.