Jornalismo de qualidade é resposta à intolerância

“O desafio que, em múltiplas frentes, se coloca hoje aos jornalistas é o de responder com um jornalismo de qualidade à propagação da intolerância e ao alastramento do conflito”, disse o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Alfredo Maia, na sessão de abertura do primeiro Curso de Segurança e Defesa para Jornalistas.

É o seguinte o texto integral da intervenção do presidente do SJ, na primeira sessão do Curso de Segurança e Defesa para Jornalistas, que decorreu a 17 de Setembro, no Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa:

“Permitam-me que comece por agradecer ao Instituto da Defesa Nacional, e em particular ao seu director, senhor general Garcia Leandro, a oferta da sua disponibilidade e da qualidade dos seus quadros, formadores e assessores para auxiliar o Sindicato dos Jornalistas a desempenhar uma das suas missões estatutárias – «promover o aperfeiçoamento profissional, através de cursos de reciclagem e outras formas de actualização» (Cfr. n.º 11 do Art.º 5.º dos Estatutos do SJ).

“A qualidade e o prestígio do IDN representam uma garantia de que o Curso de Segurança e Defesa especificamente desenhado para jornalistas alcançará o objectivo que o seu director e a Direcção do Sindicato creio partilharem desde o primeiro momento da relação entre as duas instituições – dotar os jornalistas de ferramentas de conhecimento e análise dos complexos temas da defesa e da segurança que melhor os capacitem para desempenhar a sua missão profissional.

“Agradeço também ao Cenjor – Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas, na pessoa do seu director, o nosso camarada Fernando Cascais, pela adesão sem reservas a este novo projecto de formação que aprofunda uma experiência inovadora iniciada há alguns meses, com o lançamento do primeiro curso de especialização de profissionais em jornalismo judiciário.

“No que diz respeito ao Sindicato dos Jornalistas, gostaria de sublinhar a importância de iniciativas como esta, na medida em que encaramos a formação profissional – melhor, a formação ao longo da vida – não como uma mera satisfação de obrigações estatutárias, mas como um investimento estratégico decisivo.

“Trata-se, sobretudo, de contribuir de forma activa e consequente para a qualificação continuada de um grupo profissional cujas especiais responsabilidades na formação da opinião pública reclamam um desempenho mais informado, mais esclarecido e mais exigente.

“Com efeito, a democratização do ensino, o aumento generalizado da escolaridade e a progressiva elevação dos padrões de exigência do público, traduzida na apetência por uma cada vez mais vasta gama de assuntos e na capacidade de aferição da qualidade e do rigor das informações que lhe são disponibilizadas, impõem à nossa actividade a necessidade de responder com um nível igualmente crescente de competência e de rigor.

“Em matéria de formação contínua, o Sindicato dos Jornalistas tem vindo a empreender e a aprofundar uma intervenção em frentes tão importantes como o Cenjor e a promoção partilhada de acções ou a contratação colectiva e a valorização da qualificação na progressão das carreiras profissionais.

“Sem enjeitar a legítima aspiração da valorização individual, que deve traduzir-se em carreiras profissionais mais aliciantes e mais gratificantes, o Sindicato não encara a formação contínua apenas como um direito ainda insuficientemente plasmado nas leis e nos instrumentos de contratação colectiva e parcamente reconhecido pelas empresas, mas sim como um dever indeclinável que trabalhadores e empregadores devem partilhar com determinação.

“Trata-se de um dever duplo – na perspectiva do interesse da empresa, é certo, mas com extraordinário efeito para a comunidade – na medida em que, ao mesmo tempo que a qualificação dos recursos humanos aumenta a qualidade das publicações e eleva o grau de credibilidade junto do público, contribui de forma decisiva para habilitar os cidadãos a melhor formarem a sua opinião e a participar esclarecidamente na discussão e na resolução dos problemas do quotidiano do seu país e até do concerto das nações. Além da liberdade de expressão e de imprensa, os cidadãos civicamente empenhados reclamam hoje imprensa de qualidade.

“A abertura do Curso de Segurança e Defesa para Jornalistas ocorre, significativamente, numa altura em que os cidadãos de todo o Mundo são confrontados, no decurso das últimas horas, com uma torrente dramática de informações e antevisões sobre a possibilidade de um novo ataque militar anglo-americano ao Iraque e com um crescendo de angústia acerca das suas consequências.

“Com o seu infindável desfile de termos técnico-militares, definições e conceitos de estratégia, argumentos político-diplomáticos, suspeições e ameaças, de descrições aparentemente detalhadas de meios e tácticas, os média confirmam que, mesmo não sendo de hoje a espiral que oprime duas dezenas de países, o Mundo já não é o mesmo de há um ano e que órgãos de informação e jornalistas desempenham cada vez mais um papel essencial na condução das lógicas de confrontação.

“Do ponto de vista daquilo que para os jornalistas é mais importante – a liberdade de imprensa – não há dúvidas de que as condições objectivas para o seu exercício estão fortemente condicionadas por um contexto internacional complexo que alegadamente justifica tentativas de instrumentação dos média e medidas restritivas das liberdades dos cidadãos e dos profissionais de informação.

“Um recente relatório da Federação Internacional de Jornalistas sobre os efeitos do «11 de Setembro» na liberdade de imprensa e do trabalho dos profissionais de informação evidencia a preparação, nos Estados Unidos da América, Canadá, Rússia, Austrália e vários estados da União Europeia, como o Reino Unido e a França, de nova legislação sobre a liberdade de movimentos e controlo e vigilância de telecomunicações e da Internet, que permitem recear uma grave crise para o jornalismo e as liberdades, a pretexto do combate ao terrorismo.

“Como sublinha a introdução do relatório da FIJ, «a declaração de uma “guerra ao terrorismo” pelos EUA e pela coligação internacional criou uma situação perigosa em que os jornalistas se tornaram ao mesmo tempo vítimas e actores chave no relato dos acontecimentos», desenvolvendo igualmente e numa escala sem precedentes «uma atmosfera de paranóia» que fragiliza o espírito de liberdade e de pluralismo.

“O desenvolvimento da crítica dos média, quer pelos especialistas, quer no seio da classe, e a abordagem – inclusivamente ética – aos seus processos de produção e às condições de realização do trabalho jornalístico permitem hoje exercer maior vigilância sobre as tentativas e práticas de imposição de normas e condições que façam perigar o desiderato essencial do jornalismo livre, que é o de procurar informar com a maior isenção possível e com honestidade.

“Mesmo assim, e voltando ao mesmo relatório da FIJ, que registou os problemas dos jornalistas de várias dezenas de países no pós-11 de Setembro, «os média e os jornalistas precisam de resistir às pressões dos políticos que estão dispostos a sacrificar as liberdades civis e a liberdade de imprensa para ganhar a batalha da propaganda».

“Advertindo, ainda há dias, para o perigoso «cocktail» de intolerância e propaganda belicista que pode comprometer o jornalismo independente, o presidente do comité Directivo da Federação Europeia de Jornalistas chamava a atenção para as inúmeras tentativas de interferência com vista a uma cobertura favorável a uma acção militar e pressões para orientar os média no debate sobre a acção militar contra o Iraque.

“Expectante e angustiada, a opinião pública aguarda o desenlace e exige respostas claras para as dúvidas que a atormenta. Seremos capazes de as dar?

«Os acontecimentos do 11 de Setembro nos Estados Unidos», segundo conclui a FIJ, «foram um profundo teste ao profissionalismo dos jornalistas de todo o Mundo e, à parte as inevitáveis banalidades e algumas excepções bizarras, a cobertura (jornalística) foi geralmente contida, inteligente e informada».

“Isto não significa que os jornalistas devam limitar-se a corrigir os erros porventura cometidos, a melhorar o desempenho imediato e a seguir em frente.

“Hoje, espera-se de nós muito mais do que o mero registo dos factos que animam ou oprimem o quotidiano dos povos, pois, mais do que testemunha profissional da História, o jornalista é chamado a procurar compreender e explicar qualificadamente os factos no seu contexto, sob pena de contribuir para reduzir as sociedades modernas e democráticas a um imenso mosaico amorfo e acrítico de espectadores passivos ou, na pior das hipóteses, gozosos do sofrimento alheio.

“Quando pensamos na cobertura jornalística dos conflitos, a primeira imagem que nos ocorre é a do papel honroso dos jornalistas que, no terreno, arriscam a sua integridade e pagam até com a vida um heróico tributo pela liberdade de imprensa, e consideramos não dever desperdiçar uma oportunidade que seja para prestar-lhes justa homenagem.

“Além dos riscos inerentes à natureza dos teatros de operações em que realizam o seu trabalho, enfrentando toda a sorte de provações, os repórteres de guerra defrontam também os obstáculos e desafios decorrentes das regras e dos condicionalismos impostos pelas forças em confronto em cujo terreno se encontrem, da natureza, do estilo e do mercado em que operam as publicações para as quais trabalham e, ainda, do seu escrúpulo profissional e dos ditames da consciência ética.

“Por sua vez, os jornalistas que asseguram, nas redacções, a retaguarda noticiosa enquadrando os despachos dos enviados com as novidades provenientes de muitas outras fontes, as análises de especialistas e os comentários e decisões dos quadros e dirigentes das partes beligerantes, enfrentam um copioso caudal de informação e contra-informação cuja destrinça nem sempre é fácil e cuja complexidade reclama um cada vez maior nível de competência.

“Quantas vezes anónimo ou menos heróico e aparentemente confortável e seguro, mas frequentemente sujeitos a pressões no sentido de favorecer esta opção a favor de uma das partes do conflito ou ceder àquela tendência de mercado mais voraz pela tragédia do que interessada em construir um futuro mais positivo, também o papel destes jornalistas convoca a nossa solidariedade e a nossa homenagem, justamente porque lhes cabe dar a forma editorial que molda a opinião do seu público.

“O desafio que, em múltiplas frentes, se coloca hoje aos jornalistas é o de responder com um jornalismo de qualidade à propagação da intolerância e ao alastramento do conflito, um jornalismo informado que habilite os cidadãos a participar e a gerar a consciência colectiva em que os governos devem fundar as suas decisões.

“É justamente nesse sentido que vai o Prémio Jornalismo para a Tolerância lançado no passado dia 11 pela FIJ, proclamando o jornalismo de qualidade como a chave para a paz e o entendimento globais, objectivo que o Sindicato dos Jornalistas portugueses evidentemente subscreve.

“Creio que ajudamos concretizá-lo com a realização de acções como a que agora inauguramos.”

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