Contra-ataque cívico ao assalto do telelixo

O jornalista José Manuel Barata-Feyo (*) publicou, no n.º 125 da revista «Grande Reportagem», de Agosto de 2001, uma crónica intitulada «Contra-ataque cívico», em que enaltece a iniciativa de um cidadão que conseguiu reunir pela Internet 20 mil assinaturas de pessoas e instituições que, como ele, se dispuseram a resistir durante um mês ao assalto do telelixo.

Junho de 2001 ficará para a história contemporânea como a data do primeiro movimento espontâneo de revolta cívica em Portugal. Nesse mês magnífico, por iniciativa de um simples cidadão, cerca de vinte mil portugueses reuniram-se, via Internet, para resistir ao telelixo e atacar os seus promotores, as televisões comerciais, é claro, mas também as empresas patrocinadoras desses programas.

Vinte mil portugueses e uma dúzia de instituições culturais ou humanitárias declaram recusar-se a ver a TVI e a SIC durante o mês de Junho, como forma de represália contra os «reality shows», onde a manipulação do indivíduo e a industrialização da boçalidade são promovidas a conteúdo, ao mesmo tempo que pressionam os patrocinadores com a ameaça de boicote aos seus produtos, levando algumas empresas a retirar o patrocínio ao telelixo.

É verdade que a batalha não passou de uma escaramuça e que as baixas inimigas não foram de monta. Nem um por cento dos telespectadores respondeu ao apelo, embora não se saiba ao certo quantos, no número dos quais me incluo, tinham já optado, de motu próprio, pelo boicote. Mas o facto é que o toque a rebate foi dado e o caminho apontado. Agora, é só segui-lo. A meta da resistência eficaz não fica longe, algures entre os cinco e os dez por cento dos telespectadores.

O telelixo surgiu com a descoberta de que a exploração dos instintos, através dos meios electrónicos de comunicação de massa – televisão e internet – permite ganhar muito dinheiro, muito mais do que a indústria cinematográfica ganhou com o porno, que nunca (até agora…) saiu de uma relativa clandestinidade. A descoberta não é de agora, evidentemente, mas as televisões sentiam que lhes faltava uma base sólida para dar o salto, sem correr o risco de provocar a rejeição de parte das suas audiências.

Essa base foi-lhes oferecida de bandeja pela doutrina emergente na última década do século XX. A deificação do mercado promoveu o lucro a religião, numa cruzada tanto mais avassaladora quanto ela recebeu a chamada «caução democrática», isto é, a ideia de que a maioria tem sempre razão no que quer, mesmo que queira bestialidade.

E como quanto maior for a maioria, maior é o mercado… Restava acautelar a hipótese da rejeição. Com a cumplicidade activa dos jornalistas ao seu serviço, as televisões desculpabilizam e importantizam o básico-vítima que aceita degradar-se nos «reality shows», ungindo-o da respeitabilidade que é suposto a informação conceder.

De «entrevista» em «directo», no interior dos espaços noticiosos, a opinião deles sobre a sua própria vulgaridade deixa de ser vulgar, porque discutida e partilhada por uma maioria composta de vulgares, mas maioria democrática. A dupla televisão-básico entra assim nos nossos usos e costumes, à semelhança dos Talibans nos dos fundamentalistas afegãos.

Os resíduos televisivos, ignorantes, incultos e violentos, são um problema bem mais grave do que os resíduos tóxicos e nucleares. «Quem nos livrará das sedimentações da estupidez secular?», interrogava-se Baudrillard, em 1992, na sua «Greve des Évenements». A questão é pertinente, mas fatalista. Antes de nos preocuparmos com a maneira de deitar fora o lixo, não será preferível impedir a sua acumulação?

Descaradamente, sem o mínimo resquício de pudor, o dinheiro tornou-se a razão de ser das televisões comerciais. A sua única razão de ser. Muito mais do que todos os discursos moralistas, uma auto-regulação sempre em devir e a impotência de legisladores timoratos, a maneira de as chamar à razão que assiste à cidadania, à dignidade e à civilização, é ir-lhes ao dinheiro.

Canais de televisão não faltam, e fabricantes de produtos publicitados também não.

E se faltarem, por muito fora de moda que seja, ainda não é proibido fazer economias.

As do nosso dinheiro e as dos nossos tempos livres.

(*) Texto reproduzido com a autorização do autor

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