«Cabe a cada um de nós definir a sua intimidade»

Socióloga francesa, autora de importantes obras de análise sobre o fenómeno da invasão da intimidade pela televisão, Dominique Mehl esteve em Portugal para intervir nos Cursos da Arrábida que se realizaram em Agosto de 2001. Nessa oportunidade concedeu uma entrevista a Felisbela Lopes, para a revista «JJ – Jornalismo e Jornalistas».

Quando se fala de «reality-shows», o nome de Dominique Mehl é uma referência obrigatória. Autora de livros como «Le Fênetre et le Miroir» e «La Télévision de l’Intimité», esta socióloga do Centre d’Études des Mouvements Sociaux de Paris esteve, de 27 a 31 de Agosto, nos Cursos da Arrábida para falar da «vida privada no espaço público». Em conversa com a «JJ-Jornalismo e Jornalistas», traçou o percurso feito pela televisão até aos dias de hoje, explicou o que leva as pessoas a procurarem o pequeno ecrã para falarem da sua vida íntima, defendeu uma reformulação do espaço público e deixou ainda as suas impressões sobre o programa que revolucionou a televisão em França: o «Loft Story», versão francesa do «Big Brother». Da conversa sobressai uma ideia particular sobre o significado da intimidade numa sociedade que se pensa ser cada vez mais «psi».

JORNALISMO E JORNALISTAS (JJ): Quando fala de televisão, utiliza frequentemente a expressão «a janela e o espelho» («La fênetre et le miroir» é, aliás, o título de um dos seus livros). Abraham Moles defende, por exemplo, que a «televisão não é uma janela aberta para o mundo; é antes um periscópio no oceano social». Muitas vezes o pequeno ecrã mostra coisas perfeitamente dispensáveis e realidades construídas de forma questionável…

DOMINIQUE MEHL (DM): Essas palavras devem ser encaradas como imagens. A verdadeira definição que dei é uma definição para mostrar que a televisão tem diferentes formas de se situar em relação ao mundo exterior e à sociedade. Trata-se sempre de uma maneira de olhar e de se ser olhado. De uma maneira de agarrar o mundo e de ser agarrado por ele. São conceitos.

JJ: Eliseo Veron defende que a «televisão janela» corresponde à primeira fase da televisão durante a qual o poder político impôs aos telespectadores uma determinada visão do mundo….

DM: Nesse ponto não estou muito de acordo com ele. Posiciono-me mais na linha das definições de Umberto Eco e de Francesco Cassetti em relação à periodização que fazem da televisão, dividindo-a em dois grandes períodos: a paleo-TV e a neo-TV. Historicamente essas formas estão mais em consonância com aquilo que se passou diacronicamente. No entanto, eu tendo mais a pensar a televisão em termos de modelos de comunicação e de contratos de leitura. Assim, num primeiro período, o dos primórdios, teríamos a chamada «televisão janela», através da qual o pequeno ecrã se abriu ao mundo exterior decalcando um modelo que designei por «televisão mensageira», mais vocacionada para as emissões educativas, culturais e documentais em que a vertente informativa era muito forte. Esta forma de fazer televisão não termina com o surgimento da segunda fase, a da «televisão relacional», em que o laço com as pessoas – que estão no «plateau», em casa ou apenas dentro da cabeça daqueles que participam nos programas – organiza a mensagem. É óbvio que continuamos a ter o modelo da «TV mensageira» nos programas informativos, mais centrados na mensagem do que na relação. É por isso que prefiro os modelos a uma visão estritamente histórica.

JJ: Fala também da “TV actriz”. Trata-se de um terceiro modelo?

DM: É um terceiro modo de acção que pode coabitar com os outros modelos. Os «reality-shows» dos anos 80, portanto antes do fenómeno «Big Brother», integravam-se na TV relacional: destacavam a relação das pessoas com elas próprias, com o seu sofrimento, com aqueles que lhes eram próximos, com o apresentador e com o público. Mas algumas dessas emissões quiseram ter uma acção social. Por exemplo, encontrar desaparecidos. Actualmente em França, o «Loft Story» (formato do «Big Brother») insere-se naquilo a que chamo «TV actriz».

JJ: Neste caso, a televisão transcende a sua função mediadora para influenciar o curso normal da vida das pessoas. No entanto, defende que a diluição entre espaço público e a esfera privada é mais um fenómeno social do que um fenómeno provocado pelo pequeno ecrã.

DM: É sempre muito difícil saber de quem é a iniciativa ou quem a impulsiona. No caso dos programas em que as pessoas vêm contar a sua vida, isso inscreve-se num fenómeno social que encontramos no interior das associações, nas conversas no espaço privado ou na conversação no espaço público. A televisão provavelmente ampliou isso. No caso da «TV actriz», reconheço que tudo é criado pelo pequeno ecrã. Ninguém vem a uma estação dizer: «encontrem o meu filho desaparecido», «reparem esta injustiça da justiça», «recuperem o meu casamento que está em crise». Aqui encontramos a televisão a agir sobre a crise de certas instituições e sobre fenómenos sociais, tornando-se uma espécie de actor de certas vidas.

JJ: Diversos estudiosos, como Arendt, Senett, Lasch e Lipovetsky, temeram que a nova era da mediatização matasse o debate público e a consciência colectiva. A sua posição é menos radical. Prefere, antes, falar de remodelação. O que caracteriza, pois, esse novo espaço público?

DM: Para mim ele é caracterizado pela narração da experiência. Ele já não é dominado pela confrontação de ideias, de saberes e de opiniões argumentadas por conhecimentos, mas pelo relato de histórias de vida. A experiência torna-se um argumento, qualquer coisa que nos faz reflectir, que alimenta o debate privado ou público que se desencadeia num tempo pós-televisivo.

JJ: Supõe-se que os telespectadores adoptem uma atitude afectiva perante aquilo que vêem…

DM: Isso supõe muitas coisas. A emoção é sempre preponderante ou mesmo estruturante da narração e é também uma condição da recepção. Em primeiro lugar, a pessoa que conta uma história dramática deve comover-se com aquilo que apresenta. Em segundo lugar, temos de adoptar uma modalidade de recepção por identificação.

JJ: E essa é uma modalidade que pode levar à reflexão? A comoção pode ser um caminho de aprendizagem?

DM: É mais uma forma de libertação. De repente, vejo no pequeno ecrã um problema completamente individual igual ao meu. Coisas que, no limite, achamos patológicas porque as vivemos em segredo e cremo-las um tabu, por exemplo a minha demência ou daqueles que me são próximos. Entrevistei muitas pessoas que me disseram que tinham ido à televisão contar coisas que não conseguiam dizer em casa. Os telespectadores que assistem a esses testemunhos pensam, por seu lado, assim: «eis alguém como eu. Então a minha história não é assim tão estranha como isso; posso também falar dela». Temos aqui uma libertação pela palavra.

JJ: Estamos muito longe do ideal de espaço público apresentado por Habermas…

DM: Sim, mas o ideal de espaço público de Habermas tem de ser situado na sua época. Aqui não temos um espaço público fundado nem na razão nem na afectividade, mas na relação da experiência. É um espaço público em que a distinção entre público e privado se dissolve.

JJ: Na investigação que desenvolveu a propósito de questões bioéticas (por exemplo a infertilidade), concluiu que a imprensa dá a palavra aos especialistas enquanto a televisão recorre mais ao cidadão comum. Se pensarmos que a TV é o principal meio de informação, não podemos ver aqui o fim do debate público?

DM: Há uma grande diferença na mediatização das questões bioéticas feita pela imprensa e pela televisão. Os jornais concedem um grande espaço à opinião, recorrendo, em termos de fontes de informação, aos «experts» ou aos intelectuais. A TV procura vulgarizar essa informação científica. Os debates não são feitos com intelectuais ou políticos, mas com médicos de um lado e pacientes do outro, colocando-se no centro da discussão a experiência que ambos os lados apresentam nessas matérias. Enquanto os primeiros expõem a sua experiência terapêutica e científica, os segundos contam a sua trajectória pessoal.

JJ: … o que significa que a televisão dá uma grande visibilidade aos resultados e deixa na penumbra as causas de problemas bem complexos, o caso, por exemplo, da fertilização medicamente assistida.

DM: Não, não estou de acordo. Reconheço que este tipo de debate tem vantagens e inconvenientes. Quando comecei esta investigação, li muita coisa sobre esterilidade, falei com muitos médicos que defendiam que essas mulheres apresentavam muitos problemas que eram mais do foro psíquico do que orgânico, sendo, por isso, impensável sujeitá-las a um tratamento médico pesado, quando o seu problema era mais a nível psíquico. Foi depois de ouvir algumas mulheres que se sujeitaram a tratamentos sucessivos a falar do seu desejo de terem filhos que percebi melhor o problema da esterilidade. Restituir-lhes o direito a falar da sua experiência é restituir um espaço à voz destas pessoas que, mesmo nos países democráticos, não encontram associações com um grau de desenvolvimento suficiente para as ajudar. A televisão serve, neste caso, de canal de expressão para ampliar a acção associativa que tem as suas limitações, mas que é capaz de fazer aparecer palavras escondidas.

JJ: Em Portugal, o espaço para a chamada «grande informação» tende a desaparecer dos canais generalistas, principalmente depois da chegada das chamadas «novelas da vida real». Em França também acontece o mesmo?

DM: Em França a informação não se modificou muito com esse tipo de programas. O telejornal é difundido à mesma hora e não se notam grandes alterações ao nível do tratamento da informação. Os programas de grande informação mantêm-se. Houve apenas uma redução do debate de questões puramente políticas que deram lugar às questões sociais.

JJ: Nota-se também um aumento de visibilidade da vida privada das pessoas que vão, de forma voluntária, à televisão contar os seus infortúnios. Porquê fazem elas isso?

DM: Convém, antes de mais, dizer que se há pessoas que vão à TV falar da sua vida privada é porque há uma oferta específica nesse campo e essa oferta tem uma boa receptividade da audiência. Mas também procurei saber o motivo disso, entrevistando pessoas que viveram essa situação e encontrei quatro tipo de motivações. Em primeiro lugar, temos aquilo a que chamei «mensagem pessoal»: trata-se de testemunhos de pessoas que experimentam uma dificuldade relacional com aqueles que lhe são próximos. Apresentam normalmente um problema que acham ser tabu (por exemplo a sida ou a homossexualidade) que condiciona toda a sua existência. Antes de apareceram na TV, procuraram partilhar isso com alguém, não encontrando ninguém disponível para ouvi-los. Entrevistei uma pessoa seropositiva que participou no programa «Bas les Masques» que me disse que todas as tentativas feitas para falar com os pais foram infrutíferas. O seu testemunho televisivo foi um modo de contornar as dificuldades de uma conversação interpessoal, utilizando um canal de comunicação impessoal. O recurso à televisão não tem aqui nada de lúdico: é antes dramático. Não traduz um desejo ou um prazer de se mostrar, mas manifesta sobretudo uma profunda angústia.

O segundo tipo de motivação é o que designo por «palavra terapêutica». As pessoas não estão bem e procuram a televisão com uma espécie de ilusão de que vão ser ajudadas. A terapia faz-se, nestes casos, através da palavra, não a palavra do apresentador ou do psicólogo da emissão, mas através do discurso da pessoa que conta os seus infortúnios. Conversei com várias pessoas que viveram esta situação que me garantiram que a sua passagem pela TV lhes fez bem. Cumpre-se aqui uma espécie de catarse através da palavra. O terceiro tipo de motivação é aquele a que chamo «palavra identitária»: as pessoas inserem o seu discurso privado num debate mais geral. Temos novamente indivíduos à deriva, mas que, contando a sua história e escutando a de outros, conseguem construir um sentido para sua existência: para o seu casamento, para o seu divórcio ou para a educação dos seus filhos. Finalmente, temos a «mensagem colectiva», feita na primeira pessoa, mas que reflecte uma colectividade, exprimindo sempre uma ideologia de grupo que pode ser, por exemplo, uma associação.

JJ: Nessas entrevistas, reparou também, segundo julgo saber, que dessa exposição não resultam, a médio e longo prazo, nem efeitos psicoterapêuticos nem efeitos socioterapêuticos. Como se pode então justificar o sucesso dessas emissões e a procura que têm por parte do cidadão comum?

DM: De facto, essa participação não implica modificações da estrutura social nem tão pouco grandes alterações na vida pessoal. Um ou dois meses depois da prestação televisiva, se não se recorrer a outro tipo de apoio, os problemas mantêm-se. No entanto, as pessoas que entrevistei, para além de me garantirem que no momento em que deram o seu testemunho se sentiram melhor, asseguraram-me que isso também lhes permitiu sair do isolamento em que estavam. Esse testemunho minimiza também a situação de telespectadores que vivem situações análogas. Há uma experiência vicária partilhada. Estamos aqui perante uma «TV espelho».

JJ: Essa «TV espelho» explica o sucesso de «Loft Story»? As pessoas encontram ali uma espécie de identificação?

DM: Os jovens talvez, até porque os participantes desse programa pertencem a essa faixa etária. Nas entrevistas que fiz, os adolescentes asseguraram-me que os concorrentes do «Loft» eram como eles: tinham as mesmas preocupações e os mesmos gostos. Muitos adultos viam o programa, porque os seus filhos também seguiam as emissões. Alguns pais disseram-me que era uma forma de compreender o universo dos mais novos. Para além da identificação, há também outra forma de recepção importante que este programa incentiva que é a da interactividade e da participação, o que o diferencia dos outros «reality-shows». Cultivam-se laços com os participantes que são fomentados pelos “sites” que promovem discussões em torno da personalidade dos concorrentes. Tudo isto provoca uma adesão à intriga e mantém a ligação entre o programa e os telespectadores.

JJ: Essa exposição da vida privada dos concorrentes não mata a intimidade?

DM: Em primeiro lugar, penso que devemos sublinhar a especificidade da versão francesa. Não sei muito bem o que se passou noutros países, mas em França tudo é muito, muito pudico. No «Loft Story», apenas houve uma cena, no terceiro dia do programa, que mostrava um casal dentro da piscina, mas onde apareciam apenas os seus rostos. Nunca vimos qualquer acto sexual, qualquer rapaz ou rapariga despidos. Eles representam um papel, mas esse papel é o da sua própria vida. Nota-se uma certa autenticidade. O único concorrente que tentou representar foi rapidamente expulso. É evidente que todos têm consciência da presença das câmaras. Por exemplo, quando dançam, fazem-no voltados para os sítios onde sabem que existe uma câmara. Quanto à exibição da intimidade, para mim este tipo de programa é muito menos revelador da vida íntima das pessoas do que os «reality shows» que os antecederam. Não sabemos nada sobre a vida dos concorrentes, sobre a sua família, sobre os seus sentimentos…

JJ: … o mesmo já não se passa no programa «Les Aventuriers de Ko Lanta», (formato de «Survivor») difundido na TF1.

DM: Esse programa é muito diferente. Não se trata de um jogo relacional.

JJ: Mas há o mesmo cuidado na apresentação de cenas mais ousadas?

DM: Até agora tem havido algum cuidado. A França chegou a este tipo de programação com muita prudência e alguma hipocrisia… Nunca se sabe aonde pode chegar.

JJ: Isso leva-nos a pensar que estamos cada vez mais à deriva acerca do que consideramos ser a vida privada de inquestionável inviolabilidade. O que se entende hoje por vida íntima?

DM: Penso que essa pergunta não pode ter uma resposta linear, na medida em que as respostas devem ser pessoais. Como legitimamos a entrada de elementos da vida pessoal no espaço público, ninguém pode dizer, por exemplo, que a sexualidade pertence à vida privada e a educação à vida pública. Hoje para algumas pessoas a sexualidade pode ser debatida no espaço público enquanto que os problemas dos filhos são reservados ao espaço privado; para outras a situação pode ser a inversa: recusam-se a falar da sua vida conjugal no espaço público, mas querem discutir aí a educação dos seus filhos. Portanto, cada um deve definir o que reserva para si próprio, o que guarda no espaço privado e o que mostra aos outros através do debate público.

JJ: E cada um é capaz de decidir isso por si?

DM: Nunca se decide sozinho. As fronteiras são delineadas em função do olhar que a sociedade lança sobre cada um e em função daquilo que cada um está em condições de aceitar em relação a esse olhar social.

JJ: Imagine então que eu sou uma pessoa extremamente liberal, que não conhece qualquer tabu. Quais serão os limites?

DM: Não haveria limites.

JJ: Também podemos pensar numa pessoa «naïf», que fala abertamente com os jornalistas sem saber calcular os efeitos dessa exposição…

DM: As pessoas não são assim tão inocentes. Elas sabem que, quando falam com os jornalistas, eles estão ali como mediadores e não como confessores. Para os casos mais graves, há leis que garantem a confidencialidade, o bom nome, o direito à imagem…

JJ: Face a estas tendências da programação, a TV pública encontrará aqui a legitimação da sua existência se se assumir como uma alternativa?

DM: Ainda estou à espera que me definam o que se espera dos canais públicos em termos de programas.

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