Alfredo Maia:«Curso coincide com projecto sindical»

O texto integral da intervenção do presidente do Sindicato dos Jornalistas, Alfredo Maia, na sessão de abertura do Curso de Jornalismo Judiciário, ocorrida na Universidade Católica Portuguesa, a 2 de Abril.

Senhor Director da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Senhor Presidente do Movimento Justiça e Democracia

Senhor Director do Cenjor – Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas

Senhores professores e formadores

Caros formandos

1. As primeiras palavras desta modesta alocução são para a Direcção do Movimento Justiça e Democracia, à qual devemos a iniciativa que neste momento inauguramos, cujos resultados hão-de perdurar, estou certo, por largo tempo.

Em boa hora os seus dirigentes propuseram ao Sindicato dos Jornalistas a realização de um curso que, voltado, sem dúvida, para a melhoria da qualificação dos jornalistas, contribuísse igualmente para desenvolver um quadro de relacionamento entre os profissionais de Informação e os profissionais do Direito e da administração da Justiça que melhor aproveite ao cidadão.

Cliente comum do Jornalismo e da Justiça, ora enquanto objecto do processo e da notícia, ora como destinatário das contas que lhe devemos, atentas as obrigações de em nome do povo ser administrada a Justiça e ao povo ser assegurado o direito a ser informado, o cidadão constitui a referência obrigatória dos nossos deveres.

Digo que a proposta deste curso surgiu em boa hora não porque algum fortuito acontecimento impusesse a urgência da sua realização, mas porque a oportunidade de o concretizar coincide, com grande felicidade, com o projecto sindical que estamos construindo.

Este projecto assenta em dois vectores essenciais que visam o reforço da credibilidade dos profissionais do Jornalismo: a assunção sem equívocos dos seus deveres perante a Sociedade, respaldados num elenco essencial de direitos, e a aposta decidida e decisiva na qualificação profissional, suportada na formação ao longo da vida.

Perante a complexidade dos temas e problemas quotidianamente objecto do trabalho dos jornalistas e perante o crescente nível de exigência de importantes sectores do público, seja em termos de qualidade, seja em termos da expectativa cada vez maior de encontrar nos média as respostas para as suas angústias e perplexidades, o desempenho qualificado do jornalismo representa um desafio de sobrevivência no mercado e impõe-se como compromisso indeclinável para com os cidadãos.

Organização responsável e atenta ao seu tempo, o Sindicato dos Jornalistas encara a formação dos jornalistas e a sua actualização, e mesmo especialização, como um imperativo a que não deve furtar-se e no qual deve investir até ao limite da sua capacidade e da sua imaginação, sob pena de comprometer, quanto mais não seja pela omissão, o futuro de uma profissão que só sobreviverá se souber impor a si própria objectivos de qualidade e a estimular no público uma atitude permanentemente crítica e exigente.

É por isso que nos regozijamos com a aliança que este curso consubstancia, a qual se não circunscreve a uma relação circunstancial, mas que esperamos duradoura, entre o Sindicato e uma organização de magistrados, mas que se estriba em duas outras instituições: de um lado, o Cenjor – Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas, de que somos parte e em cujo dinamismo estamos empenhados; do outro, a Universidade Católica Portuguesa, que, além do seu prestígio, nos empresta o crédito da qualidade científica da sua Faculdade de Direito.

2. O que nos convoca aqui hoje é a abertura do primeiro curso de jornalismo judiciário, ou, como epigrafa o seu programa, um curso subordinado ao tema «A Justiça e o Jornalismo Judiciário», que se propõe, permitam-me que cite:

– promover um conhecimento mútuo dos sectores da Justiça e da Comunicação Social, familiarizando os participantes para os conceitos, práticas, princípios éticos e estruturas específicos;

– contribuir para uma aproximação dos profissionais de ambos os domínios, diluindo preconceitos, desconfianças e antagonismos.

Estes objectivos e as tarefas que a sua consecução desde já determina não são novos na discussão entre profissionais de actividades diferentes, mas que se entrecruzam no processo que hoje se convenciona chamar mediatização da Justiça e que foi, noutro tempo e noutra escala, mero testemunho profissional da História e do pulsar da Sociedade, quando a informação não era uma mercadoria e o valor-notícia do escândalo judiciário não tinha alcançado cotação tão elevada no mercado.

Era também o tempo em que a própria opinião pública e – por causa dela, ou em nome dela – os média não cultivavam essa estranha veneração quase ilimitada e servil pelas pessoas que a qualquer título adquirem notoriedade, enquanto se encontrassem no zénite do êxito, e não lançavam sobre estas mesmas belas e brilhantes pessoas a lama da rejeição e o anátema da culpa impressa em letra de forma ou aspergida pelas ondas hertzianas à mínima suspeita de prevaricação.

Cá se fazem, cá se pagam, diz-se. E quem são os média – logo os média, arauto máximo da liberdade e tribuna suprema do escrutínio de todos os poderes, sempre em nome e por causa da opinião pública – para se demitirem desse direito-dever de velar para que a Justiça se não cumpra fora do alcance dos olhos e dos ouvidos do povo, quer se trate de julgar os seus pequenos ídolos derruídos do seu barro e fama efémeros, rojando-os no chão da condenação pública, quer se trate de expor ao juízo universal um caso extremo e bizarro que vale apenas por si e pouco ou nada acrescenta à felicidade humana?

Nem os média podem demitir-se de tomar o seu assento na audiência, em nome do povo que a ela não pode assistir em razão da distância ou de outra impossibilidade, nem os jornalistas devem renunciar ao dever de, procurando responder às expectativas legítimas do público, ponderar sempre o real interesse dos processos para o público e transformar até a singularidade de alguns em matéria que aproveite a todos, quanto às lições que encerrem e aos caminhos que apontem.

Se é certo que os tempos são outros e que se magistrados – judiciais e do Ministério Público – e advogados e outros agentes e protagonistas do sistema judicial desempenham hoje os respectivos papéis num contexto que reclama mais transparência, sem receio de escrutínio público e sem temor da crítica, também é verdade que aos jornalistas, interlocutores do sistema judicial em nome e com o mandato da opinião pública, se exige mais capacidade de interpelar, apreender, interpretar e explicar os fenómenos.

3. Cursos como o que hoje se inicia representam ferramentas essenciais na preparação de profissionais – de Jornalismo, mas também da Justiça – , tornando-os mais capazes de compreender e interpretar os meios, formações, técnicas, práticas e até tradições e mesmo constrangimentos dos respectivos universos, apetrechando-os melhor para um desempenho mais aberto e mais humano das respectivas profissões e missões.

Com efeito, a qualificação, mesmo a qualificação especializada, não podem reduzir-se à construção de modelos de resposta despidos da capacidade de inquietar-se com o Mundo e os dramas das pessoas, pois, a ser assim, estaríamos diante de um tecnicismo porventura eficaz na satisfação das obrigações de dever, no que ao cumprimento das normas estritamente consideradas diz respeito, mas destituído da mínima pele de humanidade e por isso insensível às ofensas por vezes ínfimas à dignidade das pessoas que são objecto do nosso trabalho.

É bom que nós, os jornalistas, nos lembremos desse desiderato supremo que é o respeito pela dignidade da pessoa humana, hoje por vezes tão arredio do nosso quotidiano, mesmo quando dizemos agir em nome dela e não compreendemos que a transformamos em metal de cotação transitoriamente elevada no comércio noticioso apenas com o pretexto de que do volume das tiragens e das audiências depende o precioso salário do nosso sustento.

Os jornalistas estão hoje, porventura mais do que nunca, confrontados com a tirania das audiências e submetidos ao rolo compressor da urgência da rentabilidade das empresas, cujos horizontes quanto à expectativa do prazo de remuneração do investimento são inversamente proporcionais à gula do lucro gordo, o que cria condições objectivas para que estes profissionais se precipitem na realização de trabalhos nem sempre adequadamente sustentados e ponderados, para que cedam à facilidade e a algum laxismo ou renunciem ao direito de resistir a opções de mera oportunidade comercial.

4. Estes problemas relevam a necessidade de uma reflexão séria e um trabalho empenhado em melhorar o nosso trabalho, em colaboração com entidades como as que hoje estão connosco, em cujo universo podemos incluir a Associação Sindical dos Juízes Portugueses e a Ordem dos Advogados, que dentro de poucas semanas organizarão, com o Sindicato dos Jornalistas, um seminário dedicado ao diálogo entre os média e a Justiça.

Não vislumbramos a necessidade de, a pretexto deste ou daquele incidente, ser precipitada, por exemplo, qualquer reforma regulamentadora em matéria de tomada de imagens e sons em salas de audiências que, a ser concretizada colocaria seriamente em crise direitos constitucionais e, se me é permitida a opinião de leigo, a própria autonomia e independência da magistratura judicial.

Com efeito, o actual dispositivo processual penal confere ao juiz poder bastante para decidir sobre matéria de recolha de imagens e sons, que não é permitida, salvo se, por despacho, a autoridade judiciária a autorizar, pelo que estamos diante de um domínio que, salvo melhor opinião – e muitos dos presentes tê-la-ão mais fundamentada do que a minha – não creio carecer de qualquer regulação como parece pretender o afã legislativo de que se tomaram alguns sectores, do qual só podemos temer mais e injustificadas restrições.

A presença de câmaras de televisão e gravadores de som pode constituir, nalguns casos, um constrangimento para os intervenientes no processo, na medida em que pode inibir o depoimento ou estimular artificialmente uma exuberância despropositada, alterando as condições de serenidade, objectividade e dignidade que as partes merecem e devem exigir.

Mas tais equipamentos também podem ser instalados e funcionar sem perturbar o normal decurso da audiência, no respeito pelos direitos e garantias dos arguidos, dos autores, das testemunhas e dos diversos profissionais que intervêm no processo e como contributo para afirmar uma Justiça mais transparente.

Matéria tão sensível como esta só pode, por isso, ser dilucidada em sede de diálogo franco e directo entre os agentes que se propõem mediar a transparência – os jornalistas – e os agentes judiciários além de mais encarregados de zelar pelos direitos e garantias das partes – nomeadamente a autoridade judiciária -, pelo que será de evitar qualquer intromissão regulamentadora que faça perigar tal diálogo.

Está na mesma linha das nossas preocupações a ideia de criar serviços de informações ao público e à comunicação social nos tribunais, que, tal como a regulação do acesso de câmaras de televisão às audiências, constava do programa do partido vencedor da recente disputa eleitoral, pelo que, tão brevemente quanto possível, trataremos de aferir o seu conteúdo e alcance.

A ideia de criar uma estrutura de interface entre os jornalistas e os tribunais não é completamente nova e foi reposta na ordem do dia, há poucos meses, com o congresso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, mas o que é justo esperar é que não represente qualquer limitação burocratizante do acesso à audiência, nem qualquer filtro censório a outras fases do processo.

Disse.

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