A sanha vingativa dos tablóides britânicos

Com o título «Crime e Reabilitação» (*), o escritor Salman Rushdie escreveu um artigo (publicado em Portugal na excelente e infelizmente extinta revista «Livros» n.º 23, de Agosto de 2001), no qual se insurge contra o sensacionalismo abjecto dos tablóides britânicos, a propósito da libertação de dois jovens que, quando tinham dez anos, foram autores da morte de outra criança.

Qual personagem de tragédia grega, uma mulher – Denise Fergus de seu momentaneamente famoso nome – carrega simbolicamente o cadáver do filho assassinado, James Bulger, e clama por vingança. Os assassinos estão prestes a ser libertados da prisão, e a mãe acha que é injusto.

«Para onde quer que eles vão», grita ela, «alguém estará à espreita. Vasculharemos cada recanto da Terra.»

(…)

O caso, ocorrido em 1993, em Merseyside, na Grã-Bretanha, em que o pequeno James Bulger, de dois anos de idade, foi assassinado pelos também pequenos Robert Thompson e Jon Venables, de dez anos de idade, desde o início que suscitou importantes questões. O facto de os próprios assassinos serem também crianças e de se ter tratado de um crime invulgarmente violento e cruel, fez com que nos interrogássemos acerca da natureza do mal, uma questão profunda, inevitavelmente tornada frívola pela comunicação social, para quem o mal parecia ser uma qualquer espécie de manifestação do imaginário dos filmes de terror, do tipo de «Demon Seed («A Semente do Diabo»).

Houve, de facto, quem sugerisse que Venables e Thompson teriam sido influenciados por um filme de terror que eles afinal nunca tinham visto, como depois se veio a apurar. Mas quem pensou nos velhos estereótipos dos filmes de terror não foram os assassinos. Foi a imprensa britânica.

Por causa do horror do assassínio, muita gente claramente não consegue aceitar que Jon Venables e Robert Thompson tenham sido reabilitados com êxito. Para muitos, o seu alegado arrependimento não passa de um estratagema perverso. Na famosa história de Evelyn Waugh, «Mr. Loveday’s Little Outing» («O Passeio de Mr. Loveday»), um assassino que, durante muitos anos, foi o mais plácido, o mais afável, o mais cândido dos prisioneiros, por fim é autorizado a sair em liberdade condicionada e, imediatamente, volta a matar. Esse medo da reincidência é constantemente alardeado pelos opositores da libertação de Venables e Thompson, e é nessa pequena fogueira que os jornais britânicos tanto se afadigam a deitar as suas achas.

E, no entanto, todas as fontes mais esclarecidas nos têm andado a dizer que Jon Venables e Robert Thompson mudaram realmente; que são verdadeiros símbolos da eficácia da reabilitação. Mark Leech, da Unlock, uma associação de solidariedade para com os ex-condenados, por exemplo, diz que «não há qualquer perspectiva de que eles venham a reincidir». Assim, temos agora que nos confrontar com uma decisão muito séria do tipo «’ou bem que/ou então». Ou bem que acreditamos que a reabilitação é possível, o que significa que temos de aceitar a opinião dos especialistas que nos dizem que estes são casos de sucesso – ou, então, rejeitamos essa opinião e, nesse caso, deixemos de andar a tentar reabilitar pessoas e decidamos, de uma vez por todas, que as penas de prisão são a vingança da sociedade sobre os criminosos, e que estes devem ser tratados como causas perdidas e fechados, para sempre, a sete chaves, em péssimas condições. Se as pessoas não podem melhorar, se um lobo é sempre um lobo e a má rês não se pode tomar boa, então, limitemo-nos a mandá-Ios para o açougue.

(…)

«É por se tratar de um assunto tão importante e tão complexo que o comportamento incendiário de muita da imprensa britânica pareceu particularmente abjecto, e que as velhas acusações acerca do total descontrolo da imprensa pareceram invulgarmente pertinentes. Algumas pessoas, incluindo alguns dos mais respeitados defensores da liberdade de opinião, têm dito que o comportamento dos tablóides britânicos torna o argumento da liberdade de opinião cada vez mais difícil de sustentar – que um princípio democrático inestimável está a ser posto à prova pelos ataques demolidores da imprensa sensacionalista.

O circuito fechado que liga os acontecimentos ao relato que deles se faz é agora tão apertado, tão rápido, que os órgãos de comunicação social acabam por se tornar nos principais protagonistas das notícias que relatam; e, no caso particular desta notícia, estão a tentar subverter todos os mais elementares princípios de justiça das sociedades civilizadas e estão a criar nos seus leitores uma mentalidade de pelotão de linchamento, que até pode acabar por levar realmente à morte de alguém.

Algo de terrível está a acontecer, um qualquer tipo de degradação generalizada da reacção pública, provocada por anos e anos de exposição aos valores dos tablóides. Conta-se que os jornais espanhóis estão dispostos a pagar uma soma avultada por informações acerca do paradeiro de Venables e Thompson – não porque os leitores espanhóis estejam particularmente interessados no assunto, mas porque é Verão e a Espanha está cheia de «bifes». A Internet, esse bordeI de irresponsabilidade, já começou a divulgar a informação, e muitas mais transpirarão nos próximos tempos. Jon Venables e Robert Thompson podem até fugir, mas é provável que não consigam escapar, e, numa Grã-Bretanha que cada vez mais se comporta como Dodge City ou Tombstone nos seus piores tempos, estes jovens terão muita sorte se não acabarem em Boot Hill (cemitério dos fora-da-lei, no velho Oeste americano). Só nos resta esperar que tal não lhes aconteça, porque os rapazes arrastam, na fuga, uma outra visão da Grã-Bretanha, em que a moderação tem mais valor que o melodrama, a compaixão é melhor que a vingança, e a dignidade é merecedora de ser mantida por bem mais de oito anos.

(*) Reprodução não integral, autorizada pela ex-directora da extinta revista «Livros», Teresa Coelho

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