Conselho Deontológico
Queixa nº 6/Q/2025
A queixa:
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD) recebeu uma queixa sobre a reportagem transmitida pelo canal NOW, intitulada “Mãe e filha reféns dentro da própria casa em Ermesinde. Famílias ciganas ocuparam ilegalmente a habitação”.
A queixa foi enviada por Vanessa Ezequiel Lopes, presidente da Associação Rizoma, primeira signatária deste protesto, também subscrito por outros oito cidadãos individuais devidamente identificados, e cinco associações que trabalham com a comunidade de etnia cigana. Os subscritores da queixa consideram que a reportagem transmitida pela NOW “viola claramente o disposto no artigo 9.º do Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses” que rejeita o “tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual”.
Procedimentos:
- Os membros do CD visionaram a reportagem da jornalista Ana Leal transmitida pela NOW no programa Repórter Sábado, de 19 de abril de 2025.
- O CD enviou perguntas à jornalista Ana Leal e ao Diretor-Geral Editorial do NOW Canal, Carlos Rodrigues. Nos mails enviados o CD começou por enquadrar o teor da queixa recebida:
a) Os queixosos questionam a necessidade jornalística de a reportagem mencionar que estão envolvidas famílias ciganas (vide artigo 9.º do Código Deontológico dos Jornalistas). A referência é feita no título da reportagem e repetida ao longo da mesma, com alusões ao comportamento desta comunidade, sem os mesmos serem enquadrados e comprovados, nomeadamente através de dados estatísticos.
b) Qual é o valor-notícia da informação sobre a etnia? Seria diferente se fossem famílias de outra etnia?
c) Qual é a necessidade da referência repetida à comunidade cigana, incluindo a adjetivação utilizada?
d) É mencionada no decurso da reportagem “a perigosidade” dessas famílias, alusão que é consentida por um dirigente autárquico que diz ter sido informado “informalmente” pelas autoridades policiais. Há relatórios da PSP que o confirmam? - O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas entende, ainda, haver razões para esclarecer outros pontos da reportagem.
a) A reportagem não é totalmente clara quanto à relação contratual da mãe e filha que vivem no primeiro andar do prédio em questão, e a quem a água foi cortada pelas autoridades municipais, na sequência de dívidas acumuladas por causa das ligações diretas feitas pelos alegados ocupantes do rés-do-chão. Têm contrato de arrendamento? Pagam uma renda mensal?
b) É referido que as famílias em causa (que as imagens de drone mostram no piso térreo) ocuparam “ilegalmente” o andar de baixo de um prédio de rés-de-chão e primeiro andar, facto que não é provado. Ouvido o senhorio, não lhe é perguntado se as famílias do rés-do-chão ocuparam a casa. Pagam renda ou alguma vez pagaram?
c) A NOW considera que as perguntas feitas ao senhorio são no sentido de esclarecer cabalmente a questão?
d) As autoridades locais que Ana Leal interpelou – elementos da Junta de Freguesia de Ermesinde, vice-presidente da Câmara Municipal de Valongo e uma vereadora desta autarquia – evitam responder ou dão respostas que acrescentam pouco aos factos.
e) A jornalista tentou ouvir a alegada família ocupante? Exerceu o Dever/Direito ao Contraditório referido no artigo 1.º do Código Deontológico dos Jornalistas? - Carlos Rodrigues, Diretor Editorial do serviço de programas da NOW, respondeu manifestando o seu “natural interesse em responder às perguntas formuladas” pelo CD, e solicitando o acesso à queixa que a primeira signatária do protesto enviou para o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
- O CD enviou ao Diretor Editorial da NOW a queixa que lhe tinha sido dirigida pela primeira signatária da mesma e oito outros cidadãos e, ainda, outras cinco associações que afirmam ter havido violação do artigo 9.º, do Código Deontológico dos Jornalistas.
Análise:
6. Carlos Rodrigues e Ana Leal optaram por enviar um mail dirigido ao presidente do Sindicato dos Jornalistas (SJ), apesar de ambos terem conhecimento que o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas é um órgão eleito em lista autónoma da do SJ.
7. Carlos Rodrigues e Ana Leal afirmam no mail enviado ao presidente do SJ que, no seu entendimento, a jornalista Ana Leal já “não é associada do Sindicato dos Jornalistas, pelo que a sua atividade profissional não se encontra sujeita à fiscalização” de qualquer órgão que funcione no âmbito do SJ.
8. Apesar do expresso no ponto anterior, afirmam: “sublinhamos que a reportagem em causa foi elaborada com total observância dos princípios deontológicos que regem o jornalismo, designadamente os consagrados no Código Deontológico dos Jornalistas, amplamente reconhecido e respeitado no setor”.
9. “A jornalista Ana Leal reafirma que o seu trabalho se pautou pelo rigor, pela verificação dos factos e pela salvaguarda dos direitos dos visados, tendo assegurado, como faz em todas as suas reportagens, o exercício do contraditório” e, o Diretor Editorial Carlos Rodrigues, também “considera que a reportagem em questão foi transmitida com o necessário equilíbrio, isenção e respeito pela dignidade de todos os intervenientes, resultando de um processo de investigação jornalística sério, aprofundado e devidamente sustentado”.
10. O SJ reenviou o mail recebido para o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, órgão que – efetivamente – tinha enviado as perguntas para Ana Leal e Carlos Rodrigues. O CD decidiu manter o seu propósito de analisar a queixa sobre a reportagem “Mãe e filha reféns dentro da própria casa em Ermesinde. Famílias ciganas ocuparam ilegalmente a habitação”.
11. O CD decidiu enviar um novo mail para Ana Leal e Carlos Rodrigues informando que tinha tomado conhecimento do mail que ambos optaram por enviar para o presidente do SJ.
12. Sobre o conteúdo da resposta de Ana Leal e Carlos Rodrigues, o CD considera que esta é “apenas formal e não esclarece nenhuma das questões colocadas pelos Conselho Deontológico do SJ”, que “como bem sabem é um órgão independente na estrutura do SJ que se pode pronunciar e tem emitido recomendações sobre queixas que envolvem reportagens e artigos de jornalistas filiados no Sindicato dos Jornalistas ou não filiados.
13. O CD afirmou ainda neste último email que dirigiu a Ana Leal e Carlos Rodrigues que para “um melhor esclarecimento do tema, seria importante contar com os vossos esclarecimentos” às questões inicialmente colocadas. O CD reafirmou que o Conselho Deontológico é um órgão com poder recomendatório, cuja ação visa todos os jornalistas, independentemente de serem, ou não sócios do SJ.
14. Ana Leal e Carlos Rodrigues responderam a este último email, afirmando:
a) “tal como anteriormente transmitido, a reportagem em apreço foi concebida e executada com integral respeito pelos princípios ético-deontológicos que regem o exercício da profissão Jornalística. Foram assegurados, em todas as fases do trabalho, os deveres fundamentais de rigor, isenção e verificação dos factos, bem como garantido o direito ao contraditório das partes envolvidas”.
b) “A Jornalista Ana Leal desenvolveu a investigação em causa com base em fontes fidedignas, tendo pautado a sua atuação por um elevado sentido de responsabilidade editorial. O trabalho produzido insere-se no interesse público e informativo que norteia a missão do Jornalismo e por consequência do Now”.
c) O “Diretor Editorial Carlos Rodrigues reafirma a sua confiança plena no conteúdo e na linha editorial da reportagem transmitida, cujo objetivo último foi o de informar com transparência e profundidade sobre uma situação concreta e de inegável interesse público, que mereceu, por isso, cobertura Jornalística”.
Conclusão:
- Os membros do CD viram atentamente a reportagem e consideram o seguinte:
a) A menção feita pela jornalista Ana Leal à alegada etnia de pertença dos alegados ocupantes contraria o Artº 9 do Código Deontológico dos Jornalistas, e nada acrescenta à reportagem sobre a alegada ocupação de um apartamento e o corte de água por abusivas ligações diretas de que foi vítima a cidadã que residia no andar superior e cuja situação é descrita ao longo da reportagem.
b) A jornalista Ana Leal cumpriu o disposto no Artº 8 do código citado na alínea anterior, pixelizando as imagens do rosto da menor que presta declarações na reportagem. Parte do Artº 8 diz que “o jornalista não deve identificar, direta ou indiretamente, menores, sejam fontes, sejam testemunhas de factos noticiosos, sejam vítimas ou autores de atos que a lei qualifica como crime”.
c) O CD destaca a importância das perguntas feitas por Ana Leal às autoridades locais; a escassez das respostas demonstra a teia burocrática com que é confrontada uma cidadã vítima de ligações diretas ao seu contador de água municipalizada.
Recomendação:
- O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas entende que a reportagem da NOW deveria ter respeitado e cumprido o disposto no ponto 9 Código Deontológico dos Jornalistas que afirma a obrigação de respeitar e cumprir o Princípio da Não Discriminação no exercício do jornalismo: “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual”.
- O CD considera desadequadas e jornalisticamente irrelevantes as várias menções à etnia cigana dos alegados ocupantes, que são feitas ao longo da reportagem, nomeadamente no título. A alegada ocupação do apartamento (a resposta senhorio é ambígua neste ponto) poderia ter sido realizada por um cidadão ou grupo de cidadãos pertencente a outro grupo de pertença. A menção à etnia cigana contribui para estigmatizar um povo no seu conjunto, apesar de muitos dos seus elementos se destacarem nas profissões que exercem em várias áreas nomeadamente em funções governativas.
- O CD lembra ainda que o Artº 9 do Código Deontológico dos Jornalistas mais não faz do que reafirmar o que está expresso no Artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que regula o Princípio da Igualdade:
“1.Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
- O CD apela a todos os jornalistas para o respeito do acima expresso, e recorda a importância de todos os jornalistas respeitarem o princípio da não discriminação, e assim contribuírem para evitar estereótipos sociais discriminatórios.
Acresce lembrar que as comunidades ciganas estão radicadas em Portugal há mais de quinhentos anos. Apesar desta longa permanência, o risco de discriminação a que estão expostas as pessoas desta etnia mereceu a atenção de várias políticas públicas do Estado português, nomeadamente na Resolução do Conselho de Ministros nº 154/2018, onde se recorda nos parágrafos de enquadramento preambular que “apesar da evolução sentida nos últimos anos, continuam a registar-se níveis elevados de discriminação, pobreza e exclusão social de muitas pessoas e famílias ciganas, bem como um forte desconhecimento e desconfiança entre pessoas não ciganas e pessoas ciganas”.
Lisboa, 11 de novembro de 2025
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas
