«Uma decisão infeliz»

Em artigo intitulado «Os jornalistas na política», saído na sua coluna dominical em 10 de Fevereiro de 2002, Mário Mesquita acha excessivas muitas das críticas feitas a Alfredo Maia, considerando no entanto que a sua candidatura política, para «caucionar» a lista da CDU no Porto, mesmo não sendo um acto reprovável, é todavia uma decisão infeliz, que fragiliza a sua posição enquanto presidente do SJ.

neutralidade@censura.pt

Quando comecei a exercer a profissão de jornalista, ao tempo de Marcelo Caetano, o meu registo era, em simultâneo, jornalístico e militante. Como seria possível ser jornalista profissional, à inglesa ou à americana (isto é, politicamente distanciado), se as próprias condições mínimas para o exercício da profissão – a liberdade de expressão e a correlata liberdade de imprensa – não estavam asseguradas?

Em todos os países que conheceram processos de transição da ditadura para a democracia a atitude dos jornalistas – à excepção dos adeptos convictos (já eram raros nos anos 70, mas ainda havia…) e dos «adesivos» do regime – começou por ser parcial, militante, defensora, pelo menos, da causa da democratização. Não se pode ser «neutral» – em nome do profissionalismo – perante a ditadura, a repressão e a censura…

Num ensaio de periodização, costumo dividir a prática jornalística nos anos refundadores da democracia portuguesa em três fases: a primeira, teria como palavras-chave «militantes e ideologias» (1974-76); a segunda, «porta-vozes e instituições» (1976-1987); a terceira, «profissionais e mercado». No período de 1974-75, jornalismo e militância andam sempre de mãos dadas, à direita e à esquerda, embora a minha tendência seja para concordar com os investigadores britânicos Jean Seaton e Ben Pimlott: «O papel dos média foi mais simbólico do que persuasivo». O poder dos média foi, sobretudo, ilusão de poder.

No período de consolidação das instituições democráticas começam a separar-se os campos e o profissionalismo emerge à tona de água. Nessa fase, muitos jornalistas-partidários (ou «revolucionários») transformam-se em jornalistas-profissionais. Alguns cometem mesmo a proeza de reconverter a pulsão militante em energia profissional, o que, por vezes, produziu, diga-se com pragmatismo, resultados positivos.

Seria hipocrisia omitir aqui a minha própria experiência. Em 1978, após três meses de exercício, verifiquei, na prática, a impossibilidade de ser, em simultâneo, director de jornal (para mais de «serviço público»), dirigente partidário e deputado à Assembleia da República.

O profissionalismo jornalístico, enquanto «ideologia corporativa» dominante, impõe-se após a adesão de Portugal à Comunidade Europeia e, sobretudo, no período dos governos de Cavaco Silva, após o movimento das rádios livres, as reprivatizações de jornais e a abertura da televisão a operadores privados. O acento tónico na ideia da «profissão» ajusta-se a uma maior autonomia (em face do poder político) do «campo mediático»

convenções@profissionais.pt

O «profissionalismo» associa-se, na origem histórica anglo-americana, à transformação do jornalismo em indústria cultural. Atrás dele surgem as ideias de «isenção» e «distanciamento» do jornalista. Deste modo, se delimita o «território» com profissões limítrofes, desde a política às relações públicas. Ninguém escapa à sua própria «visão do mundo», nem a si próprio, mas isso não retira pertinência à ideia do «distanciamento» jornalístico que, tal como a distinção entre notícia e comentário, é uma «convenção» necessária. Negar valor à ideia de «isenção» dos jornalistas ou de «imparcialidade» dos juizes equivaleria a desestruturar o espaço público das sociedades democráticas.

Isso não impede, obviamente, que o jornalista possa optar por mudar a sua actividade profissional para o «campo político», desde que o faça com «transparência». Alguns estudos de investigadores estrangeiros sobre o jornalismo português, no período anterior ao 25 de Abril (Seaton e Pimlot, 1978) tomam como sinal do reduzido prestígio da profissão a quase ausência de transferência de jornalistas do campo profissional para o terreno da política (como governantes ou parlamentares).

Após o 25 de Abril, diversos jornalistas transitaram para o Parlamento. Raul Rêgo prolongava, de algum modo, o modelo da I República. Francisco Sousa Tavares, director de jornal e editorialista de grande impacto, foi também parlamentar de relevo, embora nunca tenha visto reconhecida a qualidade de jornalista. De entre os deputados provenientes da imprensa, distingo os políticos-jornalistas, casos de Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas, dos jornalistas-políticos, como José Carlos de Vasconcelos, João Gomes, João Paulo de Oliveira, Alexandre Manuel e Manuela Moura Guedes (é provável que tenha omitido alguém: mea culpa…).

A candidatura à Assembleia de jornalistas prestigiados traduz a relevância crescente do jornalismo na sociedade portuguesa. Os casos de Vicente Jorge Silva e de Maria Elisa não suscitaram controvérsia. A candidatura de Ribeiro Cristóvão passou quase sem comentários. Sabe-se ou presume-se que todos eles separam os «campos», sem lugar para ambiguidades. Se forem eleitos, optarão, certamente, pela política, sem prejuízo do seu legítimo direito de expressão como colunistas ou comentaristas.

Mais dura foi a reacção à candidatura de Alfredo Maia, actual presidente do Sindicato dos Jornalistas, cargo em que se tem destacado pela actuação inteligente. Ao contrário dos seus colegas integrados nas listas do PSD e do PS, o candidato pela CDU no Porto não pertence, nem pertenceu nunca, à «elite» dos média. É um jornalista de base, competente e discreto, que, por mérito próprio, ganhou notoriedade enquanto sindicalista.

Não causa surpresa, por isso mesmo, que lhe tenham caído em cima todas as críticas. O que serve, desde logo, para diferenciar os “«icos» dos «pobres», os «bons democratas» dos «comunistas», a «elite» da «base», os verdadeiros candidatos a deputados do militante que se limita a referendar a lista com o seu nome, em lugar não elegível. Enquanto cidadão, Alfredo Maia tem direito a fazê-lo. Tão pouco vejo que se trate de um acto reprovável no plano ético, ou seja, perante a sua própria consciência pessoal. Outrotanto não direi no plano deontológico. A exigência de «separação» da profissão de jornalista da intervenção política é uma convenção útil, embora não integre propriamente os Dez Mandamentos da Lei de Deus ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Contudo, ao intervir politicamente, desta forma, fragiliza a sua posição enquanto presidente do Sindicato. Não é desejável que o presidente do Sindicato dos Jornalistas – símbolo de valores profissionais de isenção e distanciamento – se candidate ao Parlamento numa lista partidária. Nem me parece que tenha ponderado de forma acertada os valores em jogo: enfraquecer um bom Presidente do Sindicato – como Maia tem sido, em tempos difíceis – para «caucionar» a lista de candidatos da CDU no Porto é uma decisão infeliz.

Este ponto de vista não me leva, no entanto, a participar no linchamento, na praça pública, da pessoa honesta de Alfredo Maia. Dir-se-á que a minha posição é ambígua. Não é o caso. Não subscrevo, por exemplo, a frase excessiva de Vicente Jorge Silva: «considero intolerável, inadmissível e incompatível o facto de o presidente do Sindicato dos Jornalistas se candidatar pela CDU, mantendo-se no exercício das suas funções» (Visão, 7 do corrente). Prefiro outros termos (menos indignados e mais justos): considero inadequada e infeliz a candidatura simbólica de Alfredo Maia pela CDU.

Se a Direcção sindical em exercício provocar eleições antecipadas, decidir recandidatar-se e voltar a ganhar, limita-se a transferir para o Sindicato dos Jornalistas, no seu conjunto, o enfraquecimento resultante de uma decisão mal ponderada. Lamento muito dizê-lo, porque a experiência tem mostrado que não é fácil encontrar dirigentes sindicais dos jornalistas – votem eles na CDU ou no PSD – com o equilíbrio, ponderação e seriedade de Alfredo Maia.

Texto reproduzido com a autorização do autor

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