Televisão e justiça em conflito

A conflitualidade entre a informação televisiva e o meio judiciário, à luz do que se passa entre a TV americana e o Supremo Tribunal dos EUA, é o tema do livro «Television News and the Supreme Court – All the News That Fit To Air», de Elliot E.Slotnick e Jennifer A.Segal, ed. University Press, Cambridge,1998. Recensão crítica de Carla Baptista.

Este livro estabelece um objectivo claro : analisar o modo como a televisão «cobre» o Supremo Tribunal norte-americano enquanto fonte de notícias e lugar de produção de «estórias» jornalísticas.

As conclusões são expressas de forma taxativa: a combinação da lógica televisiva, descrita como «fortemente dependente de histórias dramáticas e visuais», com a própria natureza fechada de actuação do Supremo Tribunal, traduz-se numa cobertura noticiosa «pouco frequente, breve e, em muitos casos, simplesmente errada».

Sendo a televisão um elo fundamental de ligação entre a instituição e o grande público, é fácil concluir que as consequências, em termos de informação dos cidadãos, são dramáticas.

A informação que «escorre» desse terceiro ramo do poder político nos Estados Unidos – o sistema judiciário, a par do Presidente e do Congresso – é praticamente «arrancada a ferros», vem envolta em ambiguidades e mistério e frequentemente é deturpada, contribuindo mais para a incompreensão geral do que para o esclarecimento do público.

Tomando como certo que os «mass media» são o principal veículo de contacto entre elites políticas e cidadãos, contribuindo decisivamente para que estes formem um determinado retrato do mundo, desocultando aspectos, legitimando outros, dando maior visibilidade a umas questões do que a outras, nem sempre segundo critérios transparentes ou objectivos, os autores esforçam-se por delinear os contornos dessa específica forma de comunicação política transmitida pela televisão.

Além da sua hegemonia – para a maioria dos norte-americanos, a televisão é a principal e muitas vezes a única fonte de informação sobre temas políticos – este livro salienta ainda a propensão televisiva para o dramatismo, a simplificação e a vulnerabilidade em relação ao sensacionalismo.

Pelo contrário, o Supremo Tribunal é uma instituição formada por juizes não eleitos, e portanto libertos da sujeição à vontade popular, que não autoriza câmaras na sala do tribunal e cultiva um manifesto menosprezo pela relação com os média.

A relativa escassez de fontes, a ritualização dos procedimentos jurídicos, o carácter hermético da linguagem usada, além da falta de «competências jurídicas» da maioria dos jornalistas, (embora o livro também faça justiça ao profissionalismo de muitos jornalistas que esbarra com as exigências comerciais das estações televisivas para as quais trabalham) dificultam a abordagem mediática da instituição e tendem a conferir-lhe um estatuto de «baixa prioridade» no «ranking» noticioso das televisões.

O ponto de vista dos autores é que isso afecta negativamente a própria qualidade da democracia nos Estados Unidos porque, justamente, a importância da informação televisiva é aqui ainda mais decisiva, dado tratar-se de uma instituição onde outras fontes colaterais de conhecimento são particularmente escassas.

A grande originalidade do livro é que além de analisar em concreto a cobertura noticiosa de alguns casos judiciais, põe em confronto a percepção que os jornalistas que cobrem o Tribunal têm da instituição, e a percepção que juizes e funcionários do Tribunal fazem dos média. São visões inconciliáveis e marcadas até pela mútua hostilidade.

Em resposta à pergunta sobre o treino mais adequado para um jornalista encarregue de noticiar a instituição, por exemplo, os jornalistas tendem a valorizar as competências próprias da sua profissão (perspicácia, capacidade de síntese, rapidez na construção do sentido da história), mesmo aqueles que possuem formação específica em Direito, enquanto os juizes acusam genericamente os jornalistas de ignorância em relação aos procedimentos mais banais do Tribunal.

A «insularidade» cultivada pelo Supremo Tribunal, o seu relativo isolamento, apesar da sua legitimidade também depender do reconhecimento e aceitação pública das suas decisões – já que a credibilidade da instituição depende da qualidade da relação de confiança – têm amputado sucessivamente os esforços das televisões para aceder a informação mais substantiva. Esta atitude tem servido para formar uma espécie de veneração respeitosa da instituição baseada no desconhecimento e na «neblina» informativa que a rodeia.

As televisões, por seu turno, têm esquecido o princípio de que, em sistemas democráticos, informar mal é pior do que não informar e o livro defende a ideia de que grande parte da informação veiculada está errada e contribui para percepções incorrectas da aplicação da Lei.

A responsabilidade de ultrapassar esta situação cabe tanto ao Tribunal como aos média. O livro termina justamente com um apelo, que reconhece «idealista», à cooperação entre os dois, lembrando que o propósito de existência de ambos é o mesmo: servir (bem) melhor o interesse público.

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